Valter Hugo Mãe

A Senhora Luísa


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

A Literatura acontece em todos os sentidos e não se inibe perante verdades ou mentiras. Usa tudo, como alarve sem limites senão os da sua própria imaginação, a vontade de se instalar como substituta absoluta da vida. Por vezes, a Literatura tange a vida como se até nós nos confundíssemos, baralhados entre o que é verdade e o que parece verdade, seguindo por vias paralelas, permitindo viver numa fantasia cujo aparato nos apetece ou mais conforta.

No dia em que o meu novo romance chegou às livrarias partiu a Senhora Luísa Reis Abreu, a quem dediquei o livro, mulher amiga que me levou a inventar aquela história e, mais que isso, a criar a impressão que constrói o clima, a maravilha que busquei ao contar o que contei. A Senhora Luísa, mãe de meus amigos, uma mulher da Madeira, sempre me convenceu de que saber era caminhar para o silêncio, uma aceitação circunspecta da queda. A fé com que viveu, a fé na transcendência, quero dizer, era-lhe uma prática franca, sem resistência e sem folclore. Não fazia notícia. Exercia em sua frontalidade, que era como acreditar sem hesitação nem vergonha. Para mim, aparecia uma beleza gigante na sua conduta, porque seguia impávida e incólume às dúvidas dos demais. Era diante do mistério de Deus como se de verdade O pudesse ver adiante. Como se O visse e não necessitasse de qualquer outra prova.

A Senhora Luísa era de boa-fé e, para mim, a santidade devia ser aferida deste modo, através da verificação da boa-fé. Certos ou errados, santos haveriam de ser aqueles cujos gestos nunca quiseram o mal. Santos haveriam de ser aqueles cujo golpe veio apenas do tormento, da perturbação do corpo, do modo como se acaba em desamparo pela cabeça morrendo muito antes de se deter o coração.

No meu livro, a Senhora Luísa está como eu a via, aquela que poderia educar o próprio Deus, aquela em que Deus deixaria a prova dos milagres, a virtude acertaria por seus mandos como os relógios acertariam pela passagem do Sol, as voltas do Planeta. No meu livro, de algum modo, a Senhora Luísa, como um pouco todas as mães, estará para sempre, personagem de fortuna infinita e esplendorosa, e não cessará jamais sua tarefa discreta, humilde, mas fundamental: a de exercer a boa-fé. Exemplo lindo do sagrado.

As personagens, ao contrário de cada um de nós, não morrem. Têm uma cidadania desimportada com essa coisa cansativa e traiçoeira que é o corpo. As personagens trazem essa alegria. A de repetirem a vida para sempre. Porque algumas vidas são sentidos bravos, lúcidos, nos caminhos dos outros.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)