Joel Neto

A menina em ti


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Este ano havia um menino. Fazia serpentear fitas no ar, amparava bolas coloridas com as omoplatas, brandia arcos que se poderiam fazer rolar na estrada, com a ajuda de um pauzinho, e que de vez em quando trespassava com o seu próprio corpo, num gesto súbito e elegante.

Pronto, nem tanto. É um menino iniciado ainda, aceite apenas porque em Espanha começaram a integrá-los. Ou então já está a tornar-se uma bandeira e eu nem sei: um manifesto em defesa de um lugar para os rapazes na ginástica rítmica. Sempre foi um desporto de meninas: não será tempo de acabar com esse esforço de exclusão, estigmatizante para uns e para outros, e aliás injusto (além de comercialmente estúpido)?

Mas, pronto: isso é outro problema. Penso sobretudo no Artur, muito mais do que na higienização de uma modalidade que, de resto, durante muito tempo compensou ela própria uma menoridade. E se o meu filho se interessasse pela ginástica, um dia? Quanto não poderiam dar-lhe aqueles pivôs, saltos e ondas – os equilíbrios e riscos, as sincronias, os efeitos e os passos de dança?

É que nem sequer é bem uma modalidade desportiva, a ginástica rítmica: é muito mais uma escola de estoicismo. Há no infinito labor por detrás do aperfeiçoamento de um daqueles esquemas todo um edifício de deliberação, esforço, resistência e superação que ultrapassa, inclusive, alguns sistemas filosóficos mais rudimentares. E depois ainda há aquela expressão corporal.

Quer dizer: aqueles gestos fluidos e aqueles supetões. Aquele diálogo com a música e aquela recusa a ceder a ela. Aquela fúria e aquela hesitação. Aquela beleza e até aquela fealdade – como não admirar o modo como as raparigas se expressam, meninas ainda ou jovens mulheres já, dialogando com o tapete, e com as bancadas, e com o altifalante, e com essa estranha ressonância dentro de si próprias a que, às vezes, quase acedem? E porque não poderia um menino tentá-lo também?

Comove-me sempre, ver as ginastas, e no fim-de-semana passado lá estivemos de novo, o Artur e eu, a aplaudir as atletas da mamã. Apeteceu-me mesmo vê-lo ali também, um dia, sobre o praticável. Quão à frente da sua versão mundana não está o rapaz que sabe dançar? Que à-vontade não tem? Que conhecimento não possui? Que emoções não antecipa?

Talvez não se interesse por nada disso, o nosso Artur. Se fosse machão, fazia-lhe um bem danado. Se não fosse, também não lhe fazia mal nenhum. Mas vai-me sair futebolista, não vai? Daqueles que passam a tarde de domingo a pontear uma bola contra a parede, à espera da hora de dar o Sporting? Não é que eu não mereça.