Yuri Fernandes, o vidraceiro do Barreiro que se passou para o oculto

Yuri Fernandes é o único português que usa as redes sociais para provar que é possível comunicar com mortos. Tecnologia é ajuda nesta procura de quebrar tabu.

Ele carrega nas costas o que diz ser o seu foco: fez, há cerca de um ano, uma tatuagem gigante com as palavras “actividade sobrenatural”, nome do grupo que criou em dezembro de 2021, ainda a pandemia exigia resguardos, porque quer provar que a comunicação com mortos é possível. Yuri Fernandes, 32 anos, usa tecnologia, mas alega que não precisaria de aparelhos para fazer o que garante ser a sua paixão. Bastaria usar “o dom” que lhe calhou “por genética”, ou seja, ser médium. “A maioria das pessoas acredita mais nos aparelhos do que na minha palavra”, desabafa o único português que, atualmente, utiliza as redes sociais para “mostrar que é possível comunicar com o mundo oculto”, com diretos quase diários para os 28 mil seguidores que tem no Facebook e para os 70 mil que detém no TikTok.

Quando chegámos ao Barreiro, onde Yuri reside, é um homem alto e corpulento que nos recebe com uma timidez que não mostra nos diretos. A seu lado, Mónica Fernandes, grávida de seis meses de um menino, dá-lhe força com o olhar e fica de lado a assistir à conversa, num parque onde as cigarras nunca se calaram e onde há mesas em pedra para petiscar.

Yuri tem a palavra “fé” tatuada no rosto, palavra que, com “força e foco”, faz parte do mote que levou para o grupo

Mónica é o braço direito do marido na gestão do grupo, acumulando a função com a de ser mãe de quatro filhos de casamentos anteriores de ambos. É ela que controla os comentários nas redes sociais e que vai eliminando quem, mercê das partilhas, aparece para desestabilizar. Quando conheceu Yuri, era cética e foi o seu ceticismo que terá servido, também, para que o marido deixasse de ser vidraceiro (profissão que herdou do pai, que morreu há 21 anos) e optasse por ir em busca de “provas de comunicação” com os mortos. Agora, nas noites de diretos da “Actividade sobrenatural”, a maior preocupação de Mónica é que Yuri não “seja magoado ou possuído”. “Já aconteceu. Foi muito mau”, conta, mexendo as mãos como se afastasse algo invisível.

Bruno Mata, 42 anos, era fotógrafo numa agência de moda quando começou a seguir Yuri nas redes sociais. No ano passado, pediu para acompanhá-lo para fazer vídeos e fotos durante um direto. Não mais deixou de ir. “É um fascínio”, justifica. Ainda por cima, estava presente quando Yuri foi “empurrado”, deixou cair o equipamento por umas escadas. “São os riscos que corremos quando enfrentamos entidades”.

As entidades a que Bruno se refere são os mortos. Outros chamarão espíritos ou fantasmas. É em casas abandonadas, quase sempre vandalizadas, que o grupo procura “contacto com o oculto”. Terá a designação de “lenda”, expressão escolhida para locais onde a comunicação com o sobrenatural existirá. Os edifícios são procurados na Internet, via imobiliárias, ou encontrados em voltas no terreno. Nem em todos têm autorização para entrar e Yuri conta que já teve a Polícia à espera no antigo hospital de Vila Franca de Xira. “Estava em direto e expliquei o que estava a fazer. Respeitaram os meus argumentos.”


Yuri Fernandes e Bruno Mata são a equipa atual dos diretos,onde usam vários aparelhos

Nunca mostra o caminho para as casas escolhidas nem revela a localização. “Para nos protegermos e para evitar que sejam alvo de vandalismo.” Nem aceita ir a casas privadas e habitadas, porque “seria complicado para quem lá vive”. Há sítios, porém, que, pelo seu histórico, já mereceram a presença de Yuri: a “Casa amarela”, em Ovar, que considera “a casa mais assombrada de Portugal”, e o sanatório de Valongo, onde “as festas e as drogas” afastaram “as entidades”. Os cemitérios não o cativam. “Ao contrário do que se pensa, é um lugar que transmite paz.” Gostava, todavia de fazer um direto numa igreja abandonada.

Os equipamentos e o medo que é mais respeito

Em todos esses locais, o grupo leva equipamento variado: o “Spiritbox”, que usa as ondas de rádio na frequência FM para captar respostas, sensores de temperatura e de aproximação (podem ser aparelhos com som ou luzes, como é o caso dos peluches e das bolas de gato), caixas de música (numa, a canção de Freddy Krueger “One Two, Freddy’s coming for You” foi a selecionada) que indicam aproximação ou toque, K2 (sensor com luzes coloridas que mostram tipos de energia no espaço) e laser de pontinhos para detetar presença. Há ainda aparelhos que têm como objetivo revelar, como se de um esqueleto desenhado se tratasse, presenças sobrenaturais. É o caso do Kinet, “os olhos dos céticos”.

Boneco de peluche usado numa casa abandonada (lenda) como sensor de entidades

Yury usa também equipamento mais ligado ao espiritismo, como pêndulos, ferrinhos e jogo do lápis. Em lugares onde julga estar perante presenças maléficas, o tabuleiro Ouija pode ser uma solução para contactos, como aconteceu numa das lendas onde o ponteiro saiu e o tabuleiro foi partido em sete pedaços e enterrados em sete buracos. Porquê? “A entidade que lá estava dominava tudo. Podíamos ter sido feridos, mortos ou possuídos. Os sete pedaços simbolizam os sete pecados mortais. Vou lá voltar. Quero saber quem lá está”. E, quando lhe perguntamos se acredita que há demónios, Yuri não hesita na resposta: “Posso dizer que sim e que os poltergeists têm de ser alvo de chacota, para não reagirem. Gostam de manipular com histórias e nomes falsos”. E medo? “Claro que tenho medo. Não sou herói. Posso ser empurrado, possuído, perseguido. Mas tenho sobretudo respeito .” O respeito pode explicar, também, porque pede licença antes de entrar em cada local, mesmo sabendo que não terá resposta.

“Are you there, spirit?”

O tabuleiro de Ouija é algo que Linzi e Lee Steer, de Rawmarsh, no Reino Unido, não procuram quando querem ter comunicação com mortos. Mas têm um, pousado numa mesa do museu que possuem com bonecas assombradas e outros apetrechos, que lhes foi oferecido e dedicado. O casal tem um grupo ligado ao paranormal, “Ghosts of Britain”, com 2,3 milhões de seguidores de todo o Mundo. No Facebook desde 2009, fazem parte da “ghostmania” que tomou conta dos ingleses e todas as noites, pelas 21 horas, fazem diretos durante 60 minutos, passando depois para o grupo de subscritores com quem têm, até, conversas mais íntimas. Aliás, tal como o grupo do português, Linzi e Lee incentivam a ideia de família e não se coíbem de mostrar a evolução dos dois bulldog franceses que tratam como filhos, que não têm.

Pêndulo e ferrinhos

Ao contrário de Yuri, os britânicos utilizam tecnologia mais avançada e mostram preferência por “EVP”, gravações que fazem repetidamente e que revelam os resultados na hora. “Are you there, spirit?” é sempre a primeira pergunta nos diretos que chegam às 20 mil visualizações, feitos em imóveis abandonados e com ar “creepy”. Linzi e Lee dizem que usam o dinheiro ganho nas redes sociais para procurar locais assombrados que sejam privados porque é disto que o público que os segue mais gosta. A ideia, argumentam, é dar seguimento ao que chamam “project-reveal” e que pretende mostrar exatamente o que Yuri procura: é possível comunicar com os mortos, ouvir o que eles querem dizer, revelar espectros e sinais por eles deixados.

Linzi é uma aficionada por cemitérios, sobretudo os mais antigos, e não esconde o tom de ternura sempre que acha estar a falar com uma criança morta. Lee é o cético, o que grita, pula, gesticula nas tentativas de contacto, mas que, por vezes, revela medo quando diz sentir algo no corpo. Nesses momentos, fica como que quebrado. Essa reação não existe quando Lee Steer fala de grupos norte-americanos. Sempre que apanha algum vídeo onde sombras e vozes são exageradas, o britânico usa o típico humor para desacreditar em diretos no YouTube, plataforma que, aliás, é a escolhida para os serões de domingo.

Spirit Box (usa frequências de rádio a 150 milésimos por segundo para libertar energia)

A verdade é que, nos Estados Unidos da América, de onde vem a maior parte dos equipamentos, e no Brasil, raros são os que se aventuram a fazer diretos nas redes sociais com a procura de comunicação com o sobrenatural. O que se vê (o canal Travel Channel é o que mais aposta no momento no tema) são vídeos editados e que, à boa maneira de Hollywood, mostram médiuns a libertar edifícios de espíritos maus, como reagem numa alegada aproximação e a queixarem-se de ser empurrados, agredidos, maltratados. No Brasil, já há quem faça tutoriais a ensinar como usufruir de material ligado ao paranormal, mas sempre em gravações que misturam religião com sobrenatural.

O inconsciente e o interesse dos mais novos

João Carlos Major é psicólogo clínico e membro da Academia de Psicologia Analítica. Com formação em Teologia Católica, o especialista rejeita que a psicologia esteja afastada dos designados fenómenos paranormais, mas afiança que não é matéria que tenha provas dadas. “Há quem se interesse e há uma abertura, sobretudo nos psicólogos e psiquiatras mais novos, para o assunto. Mas não há provas que indiciem algo que não seja o inconsciente. Falar com os mortos não é mais do que o nosso inconsciente a falar. São manifestações desse inconsciente ainda pouco exploradas, certo. Há questões que as pessoas colocam que temos de levar a sério. Mas comunicar é com os vivos. Há fatores que podem levar a alterar o estado da consciência, fazendo-nos esquecer que a mente é corpórea, física. E isso pode gerar singularidades. Não me espanta a influência da matéria sobre a matéria. Porque é uma expressão psicossomática”, salienta João Carlos Major, acrescentando que o que se deteta nos aparelhos são aspetos físicos que podem vir de humanos.

Sensores de toque (bolas da geto)

Com a comunidade científica ainda presa no ceticismo, houve, porém, quem quisesse ir mais longe e, entre 2015 e 2020, tivesse lançado, com a chancela da Universidade da Madeira, um projeto de investigação em psicologia anomalística, ramo da psicologia que “recorre à metodologia científica e aos conhecimentos da psicologia em geral”, para compreender e explicar as experiências anómalas/excecionais, usualmente designadas de ‘sobrenaturais’ ou ‘paranormais’”. Virgílio Baltasar, o psicólogo coordenador do projeto, trabalha agora no Algarve e só nos disse que o projeto está parado, ainda sem conclusões devido ao aumento de trabalho que entretanto teve como especialista.

Caixa de sensor de luz

Quem não tem dúvida sobre o lado “pródigo em historietas demoníacas” no nosso país é Joaquim Fernandes, historiador ligado ao Centro Transdisciplinar de Estudos da Consciência da Universidade Fernando Pessoa. “Neste condomínio planetário, fomos armazenando pânicos e temores atrás de sucessivas portas que nos separam de futuros mais esclarecidos. Desde sempre, amedrontadas gentes de siso viram-se assediadas por figurações diabólicas, no agro mais remoto ou no convento mais urbano. Almas inquietas envolvem-se em sobrenaturais duelos, que as memórias locais ou as crónicas monásticas nos legaram em singulares narrativas”, escreveu-nos o homem que em breve vai lançar o livro “Um país do ‘outro mundo’”, sobre o espiritismo em Portugal.

Bomba de energia eletromagnética

Joaquim Fernandes é perentório ao afirmar: “Rebusque-se bem fundo a arca das nossas memórias, de norte a sul, e lá veremos agitar-se uma pletora de seres demoníacos criados por milénios de superlativos terrores, filhos do desconhecido”. Ou seja, as crenças no bem ou no mal estão incutidas nos portugueses que encheram a história de estórias associadas ao sobrenatural.

Contra o tabu continuar a investigar

Yuri não fez investigações históricas como Joaquim Fernandes, mas assegura que há “muita gente a fazer trabalhos com o intuito de fazer mal”. Trabalhos? “Sim, bruxaria, magia negra, vudu… Mas há quem faça essas coisas para o bem, para ajudar”. Aliás, nos diretos é comum ouvi-lo perguntar se há quem precise de ajuda, levando a sério qualquer “sim” ouvido no “Spiritbox”. Como se ajuda um morto? “Com velas, flores, contactos com familiares, coisa difícil se não conhecermos bem a história do local.”

E como se ajudam vivos a lidar com a ideia de que é possível falar com mortos? “De uma maneira simples: acaba-se com o tabu. É por isso que eu investigo em direto e mostro provas. A ciência sabe do que falamos, mas não quer estudar, não quer que levantemos questões. Prefere falar em ignorância quando a ignorância está na ciência. Há países que usam médiuns para ajudar a Polícia a descobrir algo. Aqui, não. Somos tratados com sete pedras na mão e olhados de soslaio. Por isso, vou continuar. Gostaria de ter mais equipamento, mais avançado. Mas é muito caro. Já gastei 11 mil euros no que tenho. E, para levantar algum, tive de deixar quase outro tanto na alfândega.”

Sensores de aproximação com luzes e sons

Acabada a conversa, Yuri é desafiado a levar a equipa de reportagem a uma casa assombrada, com aparelhos e com possibilidade de ser filmada. Vamos. Depois de pedir licença, a casa vazia recebe o vozeirão de Yuri: “Está aí alguém?”. No chão, o peluche acende uma luz e o rádio adaptado a “Spiritbox” faz ruído. No meio, uma voz de mulher diz um nome. Yuri responde com o seu. A seguir, a voz no aparelho dá uma ordem: “Rua”. O que se passa? – perguntamos. “O que viram”, diz Yuri, rematando, a sorrir: “Aceito tudo: céticos, agnósticos, não crentes… Só não aceito faltas de respeito”.