Jorge Manuel Lopes

Volta ao mundo em um dia


Crítica musical, por Jorge Manuel Lopes.

Sete anos após o finamento, o cometa Prince continua a passar rasantes a este Planeta sob a forma de inspiração e som. Do próprio, foram este mês reeditados em vinil os álbuns “The gold experience”, de 1995, e “The truth”, originalmente um disco bónus na caixa “Crystal ball”, em 98. No mesmo dia, 9 de junho (coincidência?), conheceu-se “The age of pleasure”, a primeira vez que Janelle Monáe, que chegou a colaborar com o autor de Minneapolis e de quem bebeu abundante inspiração, gerou um álbum que coloca a escrita de canções à frente de imperativos conceptuais.

A história com Meshell Ndegeocello é mais acidentada. Há nove anos, a multi-instrumentista americana afirmava: “Prince não é uma pessoa simpática. Resta-me ter que aceitar esse facto”. A um convite de Meshell para um solo de guitarra num tema, o autor de “Kiss” deu uma nega ofensiva. Em todo o caso, diz ela: “Na minha cabeça não tenho dúvidas de que ele é a razão pela qual eu toco música”.

Ainda sobram vestígios conceptuais e imateriais de Prince em “The omnichord real book”, 13.º registo de Meshell Ndegeocello e estreia lógica na Blue Note: autora e editora parecem encarar o jazz como uma entidade sem corpo definido, palco com arcaboiço para se entrelaçar com um mundo de sons. “The omnichord real book” está entre o groove e uma doce abstração. Entre jazz de fusão e pop adulta. Entre folk orvalhada e arranjos de uma gentil vibração psicadélica. Entre funk enxuto e afrobeat cósmico. Entre peças para piano introspetivo e uma invocação do sincretismo da estética quarto-mundista (“Virgo 3”, a fechar). As canções deslizam entre os dedos, baralham a perceção, ignoram expectativas (elogios, entenda-se). Há convidados, muitos com vida feita no jazz, mas que também pouco ligam a muros estéticos: o guitarrista Jeff Parker, o trompetista Ambrose Akinmusire, o vibrafonista Joel Ross, o pianista Jason Moran, a harpista Brandee Younger, etc. À sua maneira, nesta obra notável de fôlego e som, Meshell Ndegeocello concretizou uma volta ao Mundo (ou a vários mundos) em um dia que o cometa Prince há de gostar.