O Serviço Educativo da Casa da Música atingiu a maioridade, 18 anos, e inicia mais uma temporada com novidades (os 50 anos da democracia fazem parte da programação) e os projetos especiais de sempre (ensaios abertos, Orquestra Som da Rua, A Casa Vai a Casa, Coro Infantil). A abordagem é criativa e inclusiva. Sempre a centrifugar. Sempre a descascar para descobrir camadas. Pelo caminho ficam marcas em gente que vira a vida do avesso, sai da rua, vai estudar Música, organiza um coro, amplia horizontes a crianças. Histórias diferentes com um denominador comum. Aquele brilhozinho nos olhos.
Tudo mudou quando percebeu que podia juntar o que havia arrumado por gavetas. Tudo se alterou há 15 anos, quando entrou na quarta edição do Curso de Formação de Animadores Musicais do Serviço Educativo (SE) da Casa da Música (CdM). As ferramentas de criação colaborativa expostas e transmitidas ali, a inclusão de não músicos em performances de alto nível artístico, mostravam-lhe outros caminhos. Gil Teixeira não esquece esses tempos. “Espoletaram o maior momento eureka de todo o meu percurso até hoje”, garante. “O Gil compositor, o Gil educador e o Gil performer já não tinham de estar arrumados em gavetas separadas. Passei a ser capaz de criar música nova, no momento, com quem estivesse diante de mim, independentemente da idade, capacidade ou nível de formação musical.” E nada ficou como antes.
Logo após esse curso, Gil Teixeira deixou de usar partituras nas aulas de Música de Câmara na academia, em Braga, onde era professor. “A partir desse momento todo o repertório dos meus ensembles passou a ser criado pelos alunos, durante os ensaios”, recorda. Depois, já nos 30, virou a vida de pernas para o ar, deixou um emprego estável e partiu para Londres para tirar um mestrado na Guildhall School of Music com o objetivo de “ir beber à fonte”, era dali que vinham todos os formadores do curso que tinha frequentado no SE da CdM. “Aquilo que mais me marcou na abordagem criativa e inclusiva do Serviço Educativo – resumida no mantra inesquecível do Tim Steiner “If you are in the room, you are in the band (Se estás na sala, estás na banda)” – foi a dessacralização da performance musical. Contra a ideia elitista de que apenas músicos profissionais seriam dignos de pisar um palco, nos projetos do SE a música era verdadeiramente uma Casa de portas abertas para a qual todos eram convidados a entrar e explorar”, conta.
Silvério Silva passou horas, dias, meses nos bancos de jardim da Rotunda da Boavista, era sem-abrigo, dormia na rua, na Rua Júlio Dinis, zona movimentada do Porto, abusava do álcool, andou anos sem rumo. A gente da AMI que o tentava puxar para uma outra vida falou-lhe do Som da Rua, daquela orquestra inclusiva aberta a homens e mulheres que conhecem na pele a dura realidade da rua, desse projeto do SE da CdM. Não era que gostasse de cantar, mas havia algo que o puxava a experimentar, a ver o que era aquele grupo, o que fazia, o que acontecia. Espreitou, gostou, ficou. E cantava como sabia.
Às sextas-feiras de manhã, havia cantorias na Escola da Lomba, no Porto, no projeto Escola a Cantar do SE da CdM. Matilde Pinheiro tinha então sete anos, cantava bem como soprano, adorava aqueles momentos, foi escolhida para o Coro Infantil da Casa da Música. “Desde pequena que adoro a música.” Chegou a tocar piano, parou, entrou no coro, a voz tornou-se o seu instrumento. “E comecei a amar ainda mais a música”, confessa.
Hoje Matilde tem 14 anos e está no Conservatório de Música do Porto, tem Canto, Estudo de Ópera, Formação Musical, Classe de Conjunto, Orquestra. Adora cantar ópera, adora música. Aos sábados de manhã, tem ensaios do coro na CdM durante três horas, há quatro concertos marcados antes de o ano terminar. Não lhe custa levantar, sair da cama. “Não chega a ser um esforço, gosto de tal forma de estar cá, é como se fosse uma família”, diz. Sente-se bem lá dentro, por fora, aprecia o desenho do edifício. “Acho o formato giro, as salas são todas diferentes e cada uma traz um ar novo”, nota. Ali vai reunindo experiências e memórias inesquecíveis. “Quero continuar com a música, não quero desistir, é uma paixão.”
É dia de inauguração da exposição “Insubmissos”, exposição de arte bruta com obras feitas por dezenas de utentes do serviço de reabilitação psicossocial do Hospital de Magalhães Lemos, no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) no Porto. O Grupo Coral do Hospital de Magalhães Lemos ocupa o seu espaço na sala, homens atrás, mulheres à frente, orquestra do lado esquerdo. António Miguel Teixeira (Tomi, como é tratado), o maestro, orienta o aquecimento, mexem-se ombros, braços, cabeças, fazem-se vocalizações e entoações diversas. O grupo está pronto a abrir a exposição.
O coro, criado há mais de dez anos, é fruto de uma parceria com o projeto A Casa Vai a Casa, do SE da CdM, que leva a atividade desenvolvida dentro de portas a quem ali não tem como chegar – presos, doentes, idosos, pessoas com necessidades especiais. António Miguel tem formação em piano e canto, é músico, professor, formador da CdM com oficinas regulares, sabe como tudo começou porque tudo começou com ele. De uma experiência intensa, surgiu o convite, o desafio. Ele aceitou. “É espantoso o SE ter proporcionado essa possibilidade”, sublinha. A oportunidade de criar um grupo coral com utentes e funcionários, enfermeiros, médicos, assistentes e operacionais do Hospital de Magalhães Lemos. Todos juntos a cantar.
Uma vez por semana, há ensaios de hora e meia e há sempre tarefas diferentes. “Fazemos música e letras em conjunto”, adianta António Miguel. Nenhum ensaio é igual ao outro, há gente com jeito para as cantorias de voz afinada, há gente mais dada a marcar o ritmo com instrumentos, há quem toque viola. No fundo, há paixão pela música, se assim não fosse, não funcionava, não era possível.
Fluido, dinâmico, ajustado
Silvério Silva não faltava a um ensaio, uma vez por semana, quartas-feiras à tarde, uma hora, hora e meia, numa sala numa rua da Ribeira. “Para quem vem do nada, senti que fazia parte de um grupo, que era integrado em alguma coisa útil”, salienta. Por momentos, saía da rua, entrava numa sala, sentia-se parte de algo maior. “Para os sem-abrigo, era um local onde se socializava com outras pessoas.”
Quando os ensaios terminavam, voltava a tristeza, aquela solidão. Em dias de espetáculo, uma boa sensação, boas emoções. “Fazia com que uma pessoa que não tem condições, naquele momento, se sentisse útil, que fazia parte de alguma coisa.” Silvério fala de si, fala dos outros que ali estavam também. “Não nos sentíamos desamparados.” Cantavam, quem canta seus males espanta, e uma das canções dessa orquestra do SE da CdM baseou-se na sua história de vida e foi batizada de “Corpo cansado”, seu corpo cansado de rosto no chão, cheio de tristeza, e a vontade de caminhar contra a solidão. Um dia, num concerto, junto ao Cubo da Ribeira, chamaram-no para cantar essa música, sem contar, surpresa total. Ganhou coragem, subiu ao palco, cantou. “São lembranças especiais”, realça. De longe a longe, encontra alguns companheiros dessa jornada, há pelo menos três, conta, que são do seu tempo. E aí bate aquela saudade. Se o horário de trabalho permitisse, Silvério voltava ao Som da Rua, voltava a cantar.
Na CdM, no centro do Porto, o SE não tem horas e dias da semana marcados para reuniões de planeamento, definição de estratégias, afinações de alinhamentos, reajustes, alterações. O trabalho é fluido, dinâmico, ajustado ao que é preciso a cada momento. A equipa do SE da CdM reúne-se quando é necessário. Desenhar a arquitetura da programação a cada nova temporada, que coincide com os anos letivos, exige foco, entrega, dedicação. Criar do zero, manter o que faz sentido continuar, incluir pessoas de várias áreas no processo criativo. Ali, no piso 1 da CdM, o SE organiza cerca de 800 eventos por ano.
Jorge Prendas, coordenador do SE da CdM a tempo inteiro desde setembro de 2010, formador desde 2007, ocupa um espaço com duas paredes de betão, duas portas de vidro que dão para um open space com vista para o exterior. Há sempre coisas para fazer, assumir uma atividade de princípio ao fim, fazer telefonemas, contratar gente, ligar à parte técnica, à direção artística, ao marketing. Jorge Prendas usa uma analogia. “O tambor da máquina de lavar está sempre na centrifugação.” Sempre a rodar, sempre a mexer.
Quando a equipa está toda reunida, são seis pessoas à mesa e de áreas diversas. Jorge Prendas, o coordenador, que primeiro estudou Informática de Gestão, depois Composição e é um dos cantores das Vozes da Rádio. Teresa Coelho da área de Ciências da Educação, Inês Leão de Gestão do Património Cultural, a psicóloga Anabela Leite, Ana Rebelo que estudou Direito e a animadora sociocultural Paula Oliveira. Especializações à parte, ali arregaçam-se as mangas e faz-se o que for preciso, escrever tarefas numa folha, reservar espaços para ensaios, analisar recursos pedagógicos, ler e responder a emails. Tudo tem de ser feito com bastante antecedência. “Não é um simples trabalho de produção”, avisa Jorge Prendas. É mais do que isso.
Conceição Alves é professora do 1.º ciclo na Escola Básica de Alvarinha, agrupamento de Santa Bárbara, Fânzeres, Gondomar. Falar da Casa, e de todo o trabalho do SE, é falar em tom apaixonado. As atividades do SE encaixam-se na sua perspetiva de uma escola que desperta talentos, que dá tempo e espaço para criar, no conceito de inteligências múltiplas não confinadas a currículos e disciplinas tradicionais. “A escola tem de se alargar e ampliar”, defende. O SE da CdM ajuda-a nisso.
O seu caminho cruza-se com a CdM em diversas ocasiões, concertos comentados aos domingos ao meio-dia e outros momentos quando o filho era pequeno e estudava música, contactos que fez com o SE para levar turmas à sala principal da Casa, oficinas em que participa. No último fim de semana, no sábado, Conceição Alves estava na formação sobre tecnologia na sala de aula, do SE da CdM, destinada a professores, educadores, músicos, formadores e todos os interessados em música eletrónica e artes digitais. Esteve na apresentação da nova programação do SE da CdM, não quer perder nada.
Gil Teixeira vive em Pittsburgh, na Pensilvânia, Estados Unidos, desde 2015. É freelancer nos campos da educação e da performance. “O que me agrada bastante, pois não me sinto talhado para ter um emprego convencional”, comenta. Neste momento, como educador, faz parte da lista de artistas do Serviço Educativo do Pittsburgh Cultural Trust, cria e lidera workshops em diversos contextos, orienta um laboratório de criação transdisciplinar numa escola secundária de ensino alternativo, está prestes a iniciar um ciclo de oficinas inserido numa ação de formação contínua para professores de Música. Foi um dos diretores artísticos da Orquestra de Hip-Hop da Guardians of Sound, enquanto criador e performer apresentou um espetáculo multimédia original chamado “The mind body problem”, criou uma instalação multimédia participativa para um festival. Aquele curso, há 15 anos, mudou-lhe a vida, di-lo várias vezes. “Foi uma experiência transformadora a todos os níveis: profissional, pessoal e artístico.” Chegou a fazer parte de vários projetos do SE da CdM, Ala dos Afinados, Som da Rua, Coro da Escola de São Tomé, e ainda assumiu a direção artística de alguns espetáculos originais.
Um exemplo replicado no Oriente
Silvério Silva tem 51 anos, saiu da rua há oito, fez um programa de recuperação numa clínica, voltou ao mercado de trabalho no Centro Porta Amiga de Gaia, da AMI, tirou um curso técnico de auxiliar de saúde, fez o 12.º ano, entretanto arranjou trabalho num call center direcionado para o mercado francês – foi emigrante em França, aprendeu a língua. Mostrou que é possível sair da rua. As cantorias e a música ajudaram-no nesse caminho, na sua reintegração social, na sua autoestima. Nos dez anos da CdM, partilhou a sua experiência para as câmaras de televisão. Os mentores do projeto consideram-no da casa.
Para a professora Conceição Alves, tudo começou com o Orelhudo! há dez anos. Uma ferramenta que possibilita a audição diária de um trecho musical, enquadrando temas, acontecimentos, efemérides, geografias. Pediu ajuda para explorar a plataforma e ficou encantada com as inúmeras possibilidades que 90 segundos de audição abriam, na expansão de conhecimentos culturais e históricos com os seus alunos. “A quantidade de saberes mobilizados em 90 segundos de escuta”, destaca. E, no fim de tudo, há aqueles momentos especiais que sabe que os seus alunos não mais esquecerão, como assistir a um concerto na famosa e imponente Sala Suggia.
António Miguel sente-se grato por tudo, pelo coro do hospital, pelas oficinas com crianças, pela possibilidade de contribuir para o desenho de projetos, pela partilha de conhecimentos, pela troca de experiências. E por tanta reciprocidade que lhe entra pelos olhos e lhe chega ao coração. “A forma como se entregam à música é inesquecível”, enfatiza. Grato por fazer parte de um serviço educativo que considera único no país e raro no Mundo.
A nova temporada do SE arranca agora. “Um novo ano e a sensação de montanha-russa, quando começa, vai por aí abaixo”, diz António Miguel. O trabalho é visceral, sai-lhe das entranhas. Ainda bem. É como a fruta que tem de ser descascada. “Há uma ideia em bruto e temos de tentar descobrir como fazer as coisas. É fantástico ter esta possibilidade para quem gosta de trabalhar num serviço educativo.” É dar asas à imaginação, desde o nome do projeto e tudo o que o envolve.
Uma conversa é um brainstorming informal. “A relação é muito descontraída”, descreve Ana Rebelo. Há atividades que esgotam num abrir e fechar olhos, oficinas reservadas de um ano para o outro. “Existe uma certa rotina e um conforto para as escolas que sabem que vão ter coisas interessantes, algumas novas e originais”, assinala Teresa Coelho. Anabela Leite evidencia a abrangência de públicos, atividades para bebés, idosos, escolas, instituições, todo o tipo. “Qualquer pessoa tem oportunidade de se envolver.” O público vem e volta. “A confiança é um capital de valor altíssimo, as pessoas confiam na instituição, o que só se consegue ao fim destes anos e com um trabalho de qualidade”, observa Jorge Prendas.
É como encher caixinhas ou completar um puzzle a partir de uma grelha. A equipa do SE da CdM não pára para compor uma atividade artística e educativa eclética e abrangente. São concertos para crianças, oficinas, mais concertos comentados da Orquestra Sinfónica, cursos de História da Música e de animadores musicais, são formações para professores de todos os níveis de ensino, para músicos e não músicos, festivais e concursos com bandas jovens de jazz e rock, as famosas maratonas de teclistas e violoncelistas. Mais os projetos especiais, Coro Infantil, Orquestra Som da Rua, Ao Alcance de Todos que envolve diferentes comunidades – reclusos, idosos, pessoas com necessidades especiais -, as efemérides.
O SE da CdM não é um apêndice, nem um anexo da Casa, frisa Jorge Prendas, a relação é orgânica, seja estar no mesmo espaço físico, debaixo no mesmo teto, seja na comunicação que se entrecruza e ocupa as mesmas páginas dos materiais de divulgação. O orçamento é separado, 300 mil euros por ano para o SE, um retorno de bilheteira na ordem dos 100 mil. As atividades educativas estão no decreto-lei da Casa, não ficaram à margem, não surgiram a posteriori, como acontece com serviços educativos de estruturas culturais. “Temos essa sorte de ter nascido antes do próprio espaço físico da Casa”, recorda Jorge Prendas. Há aqui também uma herança, recorda o coordenador, do Porto 2001, de um caminho que se começa a desbravar sobretudo no que é a ligação com a comunidade, com as escolas.
A nova temporada arranca agora e vai assinalar os 50 anos de democracia, o espetáculo “Abril” vai refletir sobre a ditadura e a guerra e será interpretado por utentes da Associação de Deficientes das Forças Armadas, alunos de dança do Balleteatro e formandos do Curso de Formação de Animadores Musicais. A obra de Zeca Afonso colocará 300 estudantes de composição a escrever para 300 alunos da área vocacional de música no “Venham mais 300”. “Eça que é Eça” remete para o escritor e a sua ligação à ópera, “Em Pessoa” dá voz a gente com afasia pela escrita de Fernando Pessoa. Há muito mais para ver e participar nesta nova temporada.
A missão mantém-se intocável: oferta variada e acesso de todos à música, atividades para diferentes públicos, envolver a sociedade de forma transversal, chegar a comunidades carenciadas e nas franjas da exclusão, dar formação geral e especializada a músicos e não músicos, reforçar a investigação no domínio das novas tecnologias. Não será por acaso que o SE da CdM é um exemplo que está a ser replicado num teatro em Tóquio, no Japão, depois de uma reunião internacional em Berlim, em 2010. O trabalho chamou a atenção de uma representante desse espaço no Oriente, depois de uma visita em janeiro de 2011, a formação começou em dezembro de 2013, o intercâmbio tem sido constante.
Jorge Prendas guarda na memória aquele dia como músico e formador do SE da CdM nas urgências pediátricas do Hospital de Magalhães Lemos. Hora e meia a fazer música em conjunto com crianças e jovens. Naquele dia, aquele rapaz quieto, que nada dizia, em silêncio absoluto, que recusou participar, no fim da sessão levantou-se e, enquanto o músico arrumava o material, disse-lhe uma frase que não esquece: “Gosto muito de vos ter aqui”.