Rodrigo Guedes de Carvalho: “Torno-me melhor pessoa quando estou a escrever”

Rodrigo Guedes de Carvalho fez 60 anos na semana passada. Tinha 24 quando se estreou em televisão. Ao longo de três décadas, fez reportagens, entrevistas e apresentou diariamente notícias. A acompanhar o jantar dos portugueses. Escreveu guiões para cinema e livros. Ao último, ainda fresco, chamou “As cinco mães de Serafim”, romance sobre a amizade, o outro nome para família. A escrita é paixão de sempre. O jornalismo, um acaso feliz.

Na folha A4 afixada na porta da sala está escrito “Entrevista 15:00”. Chegamos à sede da Leya, em Carnaxide, à hora marcada. Rodrigo Guedes de Carvalho está acompanhado por Cecília Andrade, a editora que há uns anos desafiou o jornalista a escrever um segundo romance.

A conversa decorreu depois de uma breve sessão fotográfica, tão curta quanto o jornalista havia pedido. Nesta fase da sua vida, Rodrigo não tem paciência para a pose. Para olhar e sorriso estudados. Em cima da mesa, alguns romances do autor e tempo disponível.

Aos 30 ou 40 anos perguntava-se como seria, estaria, aos 60?
Creio que não pensei muito nisso. O que é mau, significa que passou tudo tão depressa que nem sequer dei por mim a pensar nisso. Mas sempre me ocorreu uma ideia curiosa. A de que gosto muito de ter nascido nos anos 1960, uma década extraordinária para se nascer. Não estava a ver é como é que iria entrar nas seis décadas, que é o que me acontece agora. E aos 60 há inevitavelmente balanços.

De perto, olha e o que vê?
O que tenho a dizer é que estou muito grato ao que a vida me tem dado. Que estou extremamente sereno. Que me sinto bem fisicamente, o que é uma riqueza. E que, de cabeça, estou numa fase muito luminosa. Quase como se tivesse feito uma operação às cataratas, estou a ver as coisas muito nítidas. Estou com um grande faro, por exemplo, para os chicos-espertos e para as bullshits. Estou com uma ótima intuição. Em resumo, estou numa fase boa. Obviamente, gostaria de ter menos idade, no que isso significa de estar eventualmente um pouco mais distante do momento em que isto acaba. Mas não estou minimamente a sentir o peso da idade.

Tem medo desse momento?
Nunca escrevi nos meus livros nada minimamente autobiográfico. Mas reparei que o arranque deste livro (“As cinco mães de Serafim”), não sendo autobiográfico, tem muito meu. Provavelmente, estava destinado a fazê-lo agora, aos 60 anos. Então, o primeiro capítulo deste livro é uma espécie de ode à vida, no sentido em que vou ficar muito triste de morrer. É isso. Não é susto. Se a morte for o que nos ensinam, não há problema algum. É um regresso a antes de ter nascido. Não se sente nada, não se tem consciência de nada. Portanto, por aí, estou tranquilo. Porém, tenho pena de deixar de viver porque tenho tido felizmente uma vida à qual estou grato.

Como celebrou estes 60 anos?
Com um jantar. Não estiveram todas as pessoas que gostaria, umas porque não puderam estar, outras porque já morreram. Estiveram 30 pessoas, foi num restaurante, uma coisa bem tradicional. Não teve nada de gala, é um casual chique. Mas uma coisa em bom porque quase todos os outros aniversários foram passados sem lhes dar importância. Nunca gostei. É uma coisa que trago desde miúdo. Não gostava de fazer anos. A minha mãe dizia que fazia birras imensas. Gostava muito do momento em que chegavam os amiguinhos. Mas, assim que se soprava o bolo, queria que eles fossem todos embora porque queria o sossego da minha casa.

Como é que os filhos o veem aos 60?
Tenho a certeza de que não me veem como um velho. Veem-me como o pai e não como um amigo. Não sou um amigo, nem o irmão mais velho. Sou o pai. Creio que eles têm orgulho em mim e têm um orgulho abrangente. Seja pelo que eu sou, seja pela forma como me apresento, que também é importante. Um dia disse-lhes: “Acho que não vos ensinei muita coisa. Não vos disse sentai-vos, agora vou dizer-vos coisas e ensinar-vos. Acho que fui vivendo à vossa frente. Passando coisas através do exemplo. E da ação. Se calhar sou a última geração que não perdeu muito tempo a pensar se estava a educar bem os filhos, se era assim que se fazia”.

O que é que eles responderam?
“Não, pai, está tranquilo. Correu bem assim”.

Profissionalmente, o que lhe trouxe a idade? Gravitas?
É-me sempre difícil estar a falar de mim nesse aspeto. Mas, sim, acho que que ganhei outra gravitas. Porém, a gravitas não vem só com a idade. Vi muitos profissionais, também de televisão, que com a idade foram ficando apenas… enfim. Eram patetas novos e ficaram patetas velhos.

O que é muito pior.
A idade por si não é garantia de nada. Aos jovens a quem faço formação, na SIC, digo que esta é uma profissão onde nunca se deixa de trabalhar, de estudar, de tentar evoluir. E que a nossa profissão é, por inerência, acompanharmos um Mundo que está hoje a acontecer, não podemos dar-nos ao luxo de ficar lá atrás. Fui fazendo isso. E é curioso, houve um momento, há uns dez anos, em que comecei a notar uma coisa muito engraçada. Se no início da minha carreira, regra geral, todas as pessoas que entrevistava eram mais velhas do que eu – os Cavaco Silva, os Mário Soares, etc. -, e eu ali estava, cheio de respeito, hoje, noto nos entrevistados, por vezes uma deferência. Porquê? Porque sou mais velho do que eles.

Que imagem julga que os portugueses têm de si?
Correndo o risco de generalizar, olham para mim de duas formas. Aliás, hoje em dia é tudo feito em duas formas. Temos de ser ou Beatles ou Rolling Stones, temos de ser ou do F. C. Porto ou do Benfica, temos de ser ou pró ou contra qualquer coisa. Portanto, haverá grande parte do público que não me grama, que acham que sou isto, que sou aqueloutro, que sou arrogante, que sou duro. Já fui insultado em posts e em emails por gente do F. C. Porto, do Benfica, do Sporting, do PS, do PCP e do PSD. Toda a gente já me insultou, o que é um enorme elogio profissional. Significa que estou a fazer alguma coisa bem. Por outro lado, os números das audiências e as abordagens na rua dizem que consigo reunir uma certa simpatia junto do público português. Sobretudo, por uma questão quase familiar. Há pessoas que me dizem que cresceram a ouvir-me e a ver-me. E que, hoje, o mesmo acontece com os filhos. Noto que, com o tempo, me fui simplificando. No modo, nos gestos, na linguagem. Fui sentindo essa necessidade.

Porque pensarão as pessoas que é duro, ou se quiser, que não é para brincadeiras?
Para brincadeiras, não sou. Não sou para brincadeiras, no sentido, por exemplo, da verticalidade. Sou um tipo extremamente frontal. Em relação a algumas matérias, prefiro estar em silêncio, dizer absolutamente nada, porque, se me perguntam, não consigo não ser frontal. Sou muito mau a não ser frontal. Depois, tendo inúmeros defeitos, sou um tipo, por natureza, corajoso. Tirando os desportos radicais – não sou daquelas pessoas que escolhem dançar com a morte -, sou corajoso. Por último, algo a que não posso fugir: tenho este corpo e esta cara. Alto, sobrancelhas cerradas, logo sou visto como um tipo duro.

Qual deve ser a fronteira da personalização das notícias: a formação jornalística, a experiência, o bom senso, ou outras regras?
O maior unicórnio é a zona cinzenta da objetividade jornalística. Mas o que é que é isso da objetividade jornalística? No limite, em minha opinião, a zona mais importante da objetividade jornalística passa por ouvir as duas partes em confronto, os vários pontos de vista numa polémica. E também acho que os jornalistas, os pivôs de televisão, ao contrário do que se pensa, não serão substituídos por robôs.

De certeza?
Posso estar a ser extremamente ingénuo, mas creio que não. E mesmo as pessoas que dizem não ver porque não, no dia em que isso acontecesse, estranhariam. Porque o fator humano, para mim, continua a ser fundamental em televisão. Dito isto, esse ser humano…

Tem de ser humano?
Às vezes não é. Tenho muitos colegas que optam por uma leitura absolutamente robótica, fria, mecânica, das notícias, achando que assim é que estão a servir o jornalismo. A mim, estão a servir-me uma dose de frieza.

Na pandemia, em algum momento sentiu que exagerou nos comentários coloquiais com que fechava os jornais da noite?
A pandemia foi um momento absolutamente inédito na vida de toda a gente. Enquanto pivô, achei que deveria dar conta disso. O que é que nos está a acontecer? Porque estava ali a trabalhar, mas depois do estúdio ia para casa, como qualquer outro cidadão. Também estava a passar por aquilo. Então, fui tentando dialogar de alguma forma com as pessoas – o que é isto que nos está a acontecer? Porque se a objetividade jornalística fosse aquela coluna cinzenta e fria que às vezes se pensa que é, os jornais europeus e americanos não poderiam ter titulado em 1945 “The war is over” com pontos de exclamação, tomando, contra Hitler, o partido da paz.

No fundo o que está a dizer é que devemos ser independentes sempre, ou seja, não dever nada a ninguém, nem deixar que ninguém nos deva nada, mas não podemos ser neutrais?
É isto que estou a dizer, acrescentando que há um lugar e há um tempo para isso. Por exemplo, quando, como pivô, tenho ao meu lado, para já não falar de outros jornalistas, colegas da redação a comentar, não me cabe emitir opiniões.

Apesar de serem todos jornalistas. Já agora, nunca lhe apeteceu vestir a pele de comentador?
Não, nunca. O meu lugar, que respeito muito, é o de pivô. Outra coisa é, ao fim de 36 anos de percurso, poder gerir os comentários do Nuno Rogeiro e do José Milhazes numa posição pró-ucraniana, por exemplo. Que, de resto, não é pró-ucraniana. Basta fazer a pergunta: qual é o país invadido e qual é o país invasor. É objetivo. Imediatamente, também aqui, fui insultado de todos os lados. Ora, mau jornalismo e uma má análise da história seria fazer ao contrário. Como aqueles colegas que ao fim de três dias estavam a tratar a Rússia e a Ucrânia como dois rapazes que se desentenderam na rua.

Mas porquê apenas ao fim de 36 anos?
Um miúdo em início de carreira, um miúdo que está há dois anos a apresentar, não pode fazer isto.

Porquê?
Ainda não tem peso para isso. Se quisermos, no limite, estaria a emitir uma opinião, pró-paz, pró-tranquilidade, pró-humanidade, é certo, mas uma opinião.

Em Portugal, os jornalistas escondem o partido, o clube. Não seria melhor sermos claros sobre isso?
Daria uma resposta mais ou menos a meio. É absolutamente ridículo, e levo com isso desde a RTP, que uma simples cor da gravata, porque é vermelha, verde ou azul, sirva para sermos criticados e insultados. No futebol é assim. É selvagem que uma pessoa seja julgada por ser simpatizante de um clube de futebol. Os jornalistas não podem prescindir dos seus direitos de cidadania. Nem devem ser, caso se descubra o seu clube ou partido, e desde que as pessoas sintam que isso não afeta a forma como fazem jornalismo, crucificados ou louvados. Porém, também acho que os jornalistas não devem apregoar nem trazer na lapela as simpatias partidárias ou clubísticas.

Qual é o seu clube?
Não acho necessário dizer.

E na política já teve com certeza noites eleitorais de tristeza. Como gere esses momentos?
Há noites eleitorais de tristeza pessoal no sentido em que a política é um dos setores em que tenho sentido maior deterioração. A qualidade média, humana e intelectual, das lideranças e dos políticos em Portugal tem baixado bastante.

Ao longo de mais de 30 anos, entrevistou muitos líderes. Que mudança nota na qualidade das lideranças? E que tipo de liderança se valoriza hoje?
Os líderes que fui conhecendo, e não tivemos oportunidade de conhecer a fundo Sá Carneiro, uma pena, tinham vidas extremamente difíceis, extremamente duras, custosas, de luta, à esquerda e à direita. Essas vidas custosas de resistências, de sobrevivências e de guerra – fui a primeira geração a escapar da guerra, é bom não esquecer – geraram pessoas que eram mais interessantes, liam mais, eram mais cultas, tinham um pensamento, tinham algo que falta imenso, que é uma enorme riqueza de vocabulário. Em resumo, eram pessoas, geralmente, mais bem preparadas para os desafios que tinham pela frente.

E os de hoje?
À medida que fui crescendo, foi-se formando esse desencanto generalizado, um desencanto que vai da esquerda à direita, e que me ajudou imenso a ser jornalista, neste sentido – comecei a ter demasiadas provas, e estamos hoje a fazer esta entrevista sentados em cima de uma suspeita dessas, de que as pessoas, de facto, querem o poder não para servirem, mas para se alimentarem dele. E, portanto, que a ideia de serviço público que o exercício de um cargo político deve conter, está completamente violentada em quase todos os partidos políticos. Vejo isto da mesma forma noutras áreas. Muitos dos que chegam ao jornalismo televisivo, é outro exemplo, querem aparecer na TV para alimentar a carreira, e não necessariamente para servir um público. Esse egoísmo, expresso nas redes sociais, revela-se ainda quando um autarca é apanhado na corrupção. Logo há quem comente “e tu se estivesse lá não fazias a mesma coisa? Eu fazia”. Entre eleitores e políticos há uma mediocridade geral.

Já lhe aconteceu ter de ler um texto com falhas deontológicas e éticas?
Já me aconteceu, por falta de tempo para os rever, ler textos que são maus, que são uma porcaria, que do ponto de vista jornalístico são lamentáveis. Mais do que isso, não. Felizmente fui poupado. Os seis anos de RTP pouco deram para perceber essas dinâmicas de poder das empresas. Daí para a frente, tive a sorte de trabalhar para o Francisco Pinto Balsemão. Não estou a ver um caso em que pudéssemos sofrer pressão.

Nunca a sentiu?
Não, nunca a senti.

No caso de a sentir, como responderia?
Lá está, voltamos ao tipo frontal e corajoso. Se calhar, o tipo frontal e corajoso iria dar-se mal. Mas, dependendo da altura e do que estivesse em causa, também não sei se esse tipo não pensaria nas contas que tem para pagar. Não sei. Felizmente, nunca fui confrontado com isso.

A televisão concentra-se nas audiências. E audiências significam muitas vezes tabloidização. Quais são as suas linhas vermelhas?
Tenho a fortuna de poder continuar a trabalhar num sítio onde continuam a respeitar-me. Já houve muitas situações, inúmeras, de se querer fazer uma notícia, uma peça, de determinada forma e de eu dizer “desculpem, mas isto ultrapassa a tal linha vermelha”.

Que é qual?
Essa linha vermelha tanto pode ser a linha vermelha do sangue a espichar como estar disfarçada. Pode ser-se sensacionalista numa reportagem qualquer sobre taxas de juro. Não é essa a questão. A questão é que nunca me vi obrigado a engolir algo que não quisesse. Uma situação em que me sentisse desconfortável, constrangido. Já tive discussão de pontos de vista em que perdi e já me aconteceu ir apresentar o jornal vencido. Mas nunca fui humilhado, vergado, acorrentado.

Não tem vergonha de nada?
Não tenho vergonha de nenhum momento que agora me esteja a ocorrer.

O que é que não pode, pelo menos, deixar de ter?
Por exemplo, não gosto de um pivô que acaba uma peça desligado dessa peça, com um ar de quem nem sequer esteve a dar atenção ao jornal que está a apresentar. Não gosto de pivôs que não têm qualquer brilho de linguagem, que parecem telexes da Agência Lusa. Olha, esses, sim, um dia, com o ChatGPT, poderiam ser facilmente substituíveis. E, portanto, não gosto de pivôs, homens ou mulheres, que estejam de uma forma mecânica a transmitir notícias. Transmitir notícias é precisamente o oposto disso. Repare, nós podíamos fazer televisão sem pivôs. Púnhamos reportagens umas a seguir às outras. Mas não funcionava.

Sente falta da reportagem?
Neste momento, não tenho saudades. Neste momento, estou muito ligado ao meu espaço do estúdio, creio que consegui criar ali um espaço que as pessoas reconhecem como o meu espaço. Acho que, quando estou a apresentar, as pessoas sentem que o jornal naquele dia é diferente, é um jornal comigo. Depois, já são 60 anos, um tipo começa a ficar um bocado cansado de ir à Alemanha. Uma grande reportagem dá muito trabalho.

Vamos aos livros, ao processo de pesquisa. Começou muito cedo.
Na verdade, escrevi o primeiro romance com 20 anos. O “Daqui a nada” foi publicado em 1992, mas escrito em 1983, tinha 20 anos. E escrevi-o numa a espécie de desafio a mim próprio. Aos 14 anos, apaixonei-me pelo grande romance. Passei dos livros juvenis a um livro que me foi aconselhado pelo meu avô paterno. Li “Servidão Humana” (Somerset Maugham) e fiquei absolutamente siderado. Como era possível que palavras secas escritas no papel permitissem aquela quantidade de sentimentos. Depois, descobri Lobo Antunes. A personagem na primeira pessoa, absolutamente fascinante para os meus 18 anos. Então lancei o desafio: será que eu consigo montar um romance? Gosto tanto disto. A minha família tratou aquilo como uma redação e o livro ficou na gaveta.

Escrevia à mão?
Escrito à máquina. Num teclado Hcesar. Sobre uma mesa de jogo, muito usada para partidas de xadrez. Adoro xadrez.

Xadrez é sempre descrito como uma lição de vida.
É. Penaliza a precipitação, ensina a medir consequências dos nossos atos, a antecipar as respostas do adversário. Ensina a fazer planos.

Fale-me então do plano que tirou o “Daqui a nada” da gaveta.
Já em Lisboa, para onde vim estudar em 1983 – os anos da faculdade foram anos loucos, de muitos excessos -, já, mais tarde, casado com a Paula (Moura Pinheiro), há um dia em que lhe pergunto se sabia do livro. Pensei: porque não levar isto a um editor? Fui às páginas amarelas procurar uma editora. E reparei que havia uma editora na rua Pascoal de Melo, ao lado da minha casa.

E nem lhe mexeu?
Absolutamente nada. Passados uns dois meses, o editor (Manuel de Brito) liga-me: “Olha, estou muito interessado em publicar isto”. Só que não deu tempo para desfrutar disso, porque isto coincide com o arranque da SIC. A explosão da minha vida estava no outro lado.

Mas achou aí que tinha um caminho?
Sinceramente, não. O impacto foi tão pouco. A literatura volta a despertar quando, passado uns anos, estava eu na feira do livro e vem a Cecília Andrade, editora da Dom Quixote, desafiar-me. Pedir-me que fosse ter com ela quando escrevesse outro romance. Deixou-me com um problema: como é que eu regresso à literatura, como é que eu faço um segundo livro, 12 anos depois? Tem de ser bom.

Fale-me então da gestação de “A casa quieta”.
A minha paixão pela literatura, primeiro como leitor, e também como escritor, é muito anterior à minha vida de jornalista. Sou jornalista por acaso, não fazia a mínima ideia do que eu ia ser. Sabia apenas que tinha aquele bichinho da escrita. E quando eu começo a pensar em “A casa quieta” foi o despertar de um vulcão adormecido. Comecei a imaginar a história, aquilo começou a ferver como as panelas de pressão, até ao dia que tive de me sentar. E escrever. Depois é muito trabalho. É aí que a maior parte dos aspirantes a escritores falham. Não estão dispostos a pagar o preço porque dá muito trabalho fazer um romance.

E angústias?
Sei que há uma visão muito poética dos escritores. Que são tipos muito sofridos. Eu, não. Eu sou muito feliz a escrever. Apesar de os meus livros serem conhecidos por ter coisas absolutamente escabrosas e duras.

Quantas horas por dia?
Tenho de escrever nas franjas. Como não sou notívago, nunca fui, faço as manhãs. Começo muito cedo.

Nunca foi notívago? Há pouco falava das noitadas e dos excessos nos anos de faculdade.
Nessa altura, era notívago por explosão hormonal. Foram uns anos maravilhosos de Lisboa. Comecei uma vida nova.

Quando começa a gostar de jornalismo? Na faculdade?
A minha família é toda de profissões liberais. Há um médico, há um arquiteto, há um economista, há um engenheiro. Eu seria o primeiro advogado. Na faculdade do Porto, ou, quando muito, na faculdade de Coimbra. E então o que é que aconteceu? Aquelas coisas absolutamente juvenis. Na altura eu tinha uma primeira namorada de paixão à cova e ela deixou-me. Estava, portanto, a viver um enorme desgosto de amor. Então vou inscrever-me na faculdade vejo lá o curso de Comunicação Social da Universidade Nova de Lisboa. Que coloquei como primeira opção, pensando que quando ela soubesse que eu ia para Lisboa choraria e rasgaria as vestes.

Engano.
Claro. Deixou-me ir tranquilamente. Então chego a Lisboa sozinho. Numa faculdade em que não conhecia uma alma. Com 18 anos. E foi uma aventura extraordinária. Só que, repare, estávamos em 1983. Lisboa não tinha nada a ver com Porto. Uma sociedade absolutamente fervente. O curso era, percebemos desde logo, muito teórico. Não íamos ter muita dificuldade. Então, foram chamados os nossos loucos anos 20, de copos e noitadas.

Mas quando é que pensou: “Caramba, escolhi bem. É isto.”?
Durante esses quatro anos, confesso, não pensei muito. Mas para estar a viver em Lisboa tinha de ter uma mesada. Não demoraria muito a que a família fizesse a pergunta. Isso serve para quê? A princípio a minha fisgada era escrever para publicidade. Ou seja, escrita sempre, mas no domínio criativo. No domínio da imaginação. No domínio do tudo é possível. Era isso que eu queria fazer.

Que é, curiosamente, a antítese do jornalismo.
Nem mais. Contactei algumas agências de publicidade, mas não tive resposta. Estava tristíssimo. O que é que eu vou fazer quando isto acabar? Não pensava nem um segundo no jornalismo. E, de repente, é anunciado num placard da faculdade um curso de formação da RTP.
A palavra que, para mim, contou foi televisão, não jornalismo.

Porquê?
Porque entrava em cena a minha outra paixão, o cinema. Ok, vou trabalhar com vídeo, isto significa que vou aprender técnicas que vão ser úteis para o caso de eu querer ser argumentista ou realizador. Entro então no curso do Centro de Formação da RTP. Depois de uma seleção, fico entre 24. O primeiro microfone, o primeiro contacto com a câmara, aprendi a fazer um pouco de tudo, estava a gostar imenso daquilo. Mas sempre com uma dúvida – como é que eu vou trabalhar em televisão?

No desporto.
Joguei futebol, joguei râguebi, na verdade podia ser interessante. Comecei a gostar daquilo, fiz umas primeiras reportagens, comecei a dar nas vistas e um belo dia lá estou eu, de gravata, com a Dina Aguiar. E ela a apresentar-me: “Hoje, a nossa página de desporto com o Rodrigo Guedes de Carvalho”.

Não pode dizer-se que estava cumprido o sonho…
Não era um sonho.

Voltando aos livros: como reage à crítica?
Não me posso queixar. Nunca vi em papel, imprimida, uma crítica arrasadora. Isso não houve. Houve uma, maldosa, que tenho atravessada. Do Vasco Pulido Valente, em “O Independente”. Desfez o livro de um “aspirantezeco”.

O facto de ser uma figura pública beneficia ou prejudica a avaliação do romancista?
Na literatura, prejudica-me. Sinto esse preconceito. Por exemplo, uma coisa com a qual eu convivo, hoje convivo bem, até porque vou-lhe também atribuindo a sua verdadeira importância, é isto: nunca irei ganhar um prémio literário em Portugal.

Porquê?
Não sei. Não estou sequer nas shortlists.

É curioso ter dito isso na sequência de termos falado de ser uma figura pública. Terá alguma coisa a ver?
Não vejo outra razão. Não sou mentalmente destituído, olho para os meus livros e olho para outros livros considerados de literatura e estou perfeitamente nesse campeonato. Pode-se gostar mais ou pode-se gostar menos, mas estou nesse campeonato. Não estou no campeonato do livro de aeroporto. O facto é que até hoje, ao fim de nove livros, nunca estive sequer entre os dez finalistas. Não, não existo para a malta dos prémios.

Jornalista ou escritor. Se tivesse de prescindir de uma das atividades qual escolheria?
Felizmente, não tenho de escolher financeiramente. Não sendo isso uma questão, abandonaria mais depressa o jornalismo, no sentido em que não concebo a ideia, muito menos agora, com 60 anos, de não escrever. Eu gosto muito de escrever. É um sítio onde eu sou muito feliz. Inclusive, torno-me melhor pessoa, no meu dia a dia, quando estou a escrever. Há uma espécie de autoterapia na escrita, para mim, que é absolutamente vital. Aos meus filhos costumo dizer: “Quando eu desaparecer, procurem-me nos livros”. Eu estou nos livros.

E lê?
Faço aqui um mea culpa. Já li mais. Dantes, não, achava que podia regressar ao livro, mas, agora, se ao fim de quatro ou cinco páginas não estou convencido, largo de vez. A ânsia de não perder tempo começa a ser muito deprimente.

Vamos falar da ligação ao Porto, onde nasceu há 60 anos.
A minha ligação ao Porto é uma coisa muito estranha.

Então?
É uma relação estranha porque nos últimos anos tem sido uma coisa muito pesada. As minhas viagens ao Porto têm sido para velórios. No ano passado, de uma forma bruta e inesperada, a minha mãe. Não esperava. Depois, lembro-me que na altura em que saí do Porto – é certo que saí por causa daquela coisa da namorada, mas, de alguma forma, como ambicionava outras coisas, também sentia que se ficasse naquele circulozinho, em que tudo o que é de Lisboa é mau, não era para mim. Sentia que a minha vida ia ser um bocadinho aquilo e não queria. No entanto, sempre que lá estou, digo “sou daqui”.

Já apresentou telejornais de luto, ou em dias difíceis. É possível dar por isso?
Já tive dias difíceis, mas aí entra o velho cliché: “the show must go on”. Nas tragédias, há um lado de inteligência prática. Perder o pai. Morreu, nada se pode fazer. Mais difícil é uma enorme e perigosa discussão conjugal ou com um amigo até meia hora antes do jornal, sabendo que vamos ter de a retomar depois. Essa pausa emocional é muito difícil.

Voltemos ao início. À festa dos 60. Como foi o discurso?
Recordei uma fotografia com a minha mãe que retrata toda a nossa relação. É uma fotografia do dia dos meus dez anos, há uns balões e bolos, e a minha mãe está, por detrás de mim, a abraçar-me e a rir para a câmara porque eu estava com umas enormes trombas. “Talvez porque adivinhasse que um dia isto de fazer anos acaba mal”, foi uma das frases do discurso. É uma fotografia de que gosto muito. A relação com a minha mãe foi complexa, muito tensa por vezes, mas tínhamos uma cumplicidade enorme. Conhecíamo-nos tão bem. Ela a rir, como quem diz é isto que tenho. O meu filho é assim, não há nada a fazer.