Em breve, uma equipa de sete pessoas, de diferentes nacionalidades, chegará à Gruta do Natal, na ilha Terceira (Açores), para replicar o ambiente lunar. A missão, a primeira do projeto CAMões, é liderada por duas mulheres. E isso é tudo menos uma coincidência. Porque além do potencial científico, há também nesta demanda um importante “statement” social. De empoderamento feminino e não só.
Aidyl Gonzalez, hoje reputada investigadora do California Institute of Technology (Caltech) e do International Institute of Astronautical Sciences (IIAS), conta esta história com frequência. Quando era miúda, e tentava sobreviver a uma vida penosa no South Bronx, um dos bairros menos recomendados da cidade de Nova Iorque, ainda para mais sendo filha de dois imigrantes porto-riquenhos, uma “visitante” inesperada passou pelo quarto que partilhava com os dois irmãos: nem mais nem menos que uma barata, que resolveu por lá deixar os seus ovos. Aidyl não reagiu com repugnância, muito menos se quis ver livre deles o mais depressa possível. Pelo contrário, achou-os fascinantes. Tão fascinantes que fez questão de os cobrir com uma caixa de sapatos, para poder acompanhar o seu crescimento a par e passo. “Todos os dias ia espreitar.” Até chegar o dia em que, quando levantou a caixa de sapatos, lá estavam elas: 15 pequeníssimas baratas. “Fiquei tão entusiasmada”, recorda. A mãe é que não achou tanta graça. Aidyl foi a correr contar-lhe o pequeno milagre a que acabara de assistir, a senhora reagiu como seria de esperar, irritou-se com aquilo e matou-as de imediato. Mas o interesse da filha pelo tema já era impossível de conter. “Ia para a escola e perguntava aos meus professores sobre aquilo. Queria perceber o porquê.”
O entusiasmo cresceu ainda mais quando assistiu a um programa televisivo em que se falava dos genes e da importância do ADN. Mas a ambição parecia condenada à nascença. Quando fez saber aos pais que gostava de ir por aí, que queria ir para a faculdade estudar aquilo, levou com um: “Eso no es para tí [isso não é para ti].” Olhando para trás, Aidyl compreende: “Eles não têm culpa, também não conseguiam ver mais além”. E então foi crescendo rodeada pela ideia de que se conseguisse não engravidar ou morrer na juventude já seria uma sorte. “Porque foi o que aconteceu com muitos dos meus colegas.” Mas não se conformou nunca. Mesmo que nem as notas fossem particularmente boas. Muito mais tarde, quando lhe diagnosticaram uma dislexia grave, acabou por perceber que até isso tinha uma razão de ser. Mas voltemos ao ponto em que Aidyl recusou aceitar o futuro tacanho que as circunstâncias pareciam reservar-lhe. Muito graças à série “Star Trek”, diga-se, que lhe serviu de inspiração e boia de salvação. Um dia, estava ela no Secundário, receberam a visita do reitor de uma importante escola de engenharia de Nova Iorque. E aquele dia acabaria por lhe mudar a vida para sempre. “Esteve um bocado a falar comigo, fez-me umas quantas perguntas e às tantas disse-me: ‘Tu és muito inteligente, sabes muita coisa. Eu vou-te ajudar, vou fazer de ti uma cientista’”. E fez mesmo. Graças àquele reitor visionário, e à bendita barata que um dia pôs ovos na janela de um quarto sufocante do South Bronx, esta história culminou com Aidyl a concluir um doutoramento em Genética Molecular na Caltech.
Hoje, aos 50 anos, é uma cientista com vasta experiência em pesquisas espaciais análogas, com foco em astrobiologia. Paralelamente, e para dar oportunidade a outros garotos que, tal como ela, não têm a priori condições financeiras para singrar, lidera vários projetos que pretendem estimular o interesse na área das STEAM (ciência, tecnologia, engenharia, artes e matemática) e torná-las acessíveis a todos. E o que tem isto que ver com a missão análoga lunar que vai decorrer na Gruta do Natal, na ilha Terceira (Açores), de 22 a 28 de novembro? Tudo. Desde logo pelo facto de Aidyl ser uma das peças-chave da equipa que, durante uma semana, vai estar no interior da gruta a procurar replicar o ambiente da lua. Afinal, uma missão análoga é isso mesmo: uma simulação na qual os astronautas análogos vivem como se estivessem de facto no espaço.
Neste caso, a experiência surge à boleia da primeira missão do projeto CAMões – Caving Analog Mission for Ocean, Earth and Space Exploration (missão análoga de espeleologia para exploração do oceano, da Terra e do espaço), uma iniciativa promovida pela associação “Os Montanheiros” e pelo INESC TEC – Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência. O resultado é o “nascimento” do primeiro local de treino para astronautas em solo português e de um objetivo arrojado: fazer dos Açores um “test bed” para astronautas de todo o Mundo, de forma a que ali possam testar o planeamento e design de missões lunares e marcianas (a Marte).
Uma das mais relevantes figuras por trás de tudo isto é Ana Pires, investigadora do INESC TEC que em 2018 deu que falar por ter sido a primeira mulher portuguesa a concluir o curso de cientista-astronauta do programa PoSSUM, que conta com o apoio da NASA. E que tem integrado diversas missões análogas, em diferentes partes do Mundo. “O projeto foi conceptualizado entre mim, o professor Rui Moura [docente da Universidade de Aveiro, também investigador do INESC TEC] e o professor João Carlos [Universidade dos Açores]. Desde que nos tornámos cientistas-astronautas que falávamos disto: porque é que em vez de irmos sempre lá para fora fazer este tipo de missões não tentamos fazê-las cá? Sabíamos que havia um potencial enorme na ilha dos Açores. E, no caso da Gruta do Natal, trata-se de uma estrutura geológica natural, com tubos de lava, o que a torna o palco ideal para uma missão como esta.” Aliás, realça a investigadora, os astronautas de diversas agências espaciais, da ESA à NASA, têm procurado este tipo de estruturas e cenários para realizar os seus treinos de geologia planetária, por existirem “semelhanças com os tubos de lava existentes em Marte e na lua”. Daí que seja fundamental “testar a sua estabilidade geotécnica para perceber se é possível tornar estas estruturas num campo base em futuras missões ao espaço”.
A meta está bem definida: é de esperar que, em 2024, a Gruta do Natal seja um novo local para missões análogas, fidedigno e devidamente validado. Para já, ao longo de sete dias e seis noites, a tripulação (constituída por sete elementos no terreno, mais quatro na “mission control”) procurará tirar partido da biodiversidade da gruta como contexto científico e de pesquisa, realizando estudos em várias áreas, fazendo treinos específicos, testando tecnologias ou simplesmente recolhendo dados.
Mulheres no comando
Mas a vertente científica não é a única a alavancar este projeto. Ana Pires, uma das mentoras, chama a atenção para isso mesmo. “Esta missão tem algo muito interessante que é o facto de ser liderada por duas mulheres, por mim e pela Yvette.” A cientista portuguesa refere-se a Yvette Gonzalez, especialista em resolução de conflitos, agora focada na investigação atmosférica e climática, e seu braço-direito nesta missão. Natural da cidade de El Paso, no estado americano do Texas, descendente de ancestrais astecas, cresceu bem junto à fronteira com o México e também ela singrou quando tudo à volta lhe parecia dizer que nunca o conseguiria.
“Vivíamos da agricultura, num contexto de pobreza profunda, pelo que havia uma série de estigmas associados a nós. As nossas origens indígenas e a nossa herança mexicana foram um primeiro passo para que a nossa comunidade fosse desprezada. Tive sempre consciência do que e de quem representava e estive sempre ciente de como isso poderia influenciar a forma como as pessoas e as instituições me tratavam. Tudo o que fiz foi por toda a gente que eu represento, não só por mim.” E o que fez não foi pouco. “Com coragem e perseverança consegui acabar a escola, fazer um curso, um mestrado.” E afirmar-se não só como nome grande destas andanças, mas também, e a par de Aidyl, como uma inspiração para quem, tão cedo na vida, vê o estigma erguer barreiras. Sobretudo jovens mulheres.
Ana Pires admite que, à medida que foi escolhendo os nomes que compõem a equipa (entre os elementos no terreno e a “mission control”, onze ao todo, há quatro mulheres, uma percentagem invulgar neste tipo de missões), este desígnio esteve sempre presente. “A missão tentou procurar esta igualdade e género. Precisamos de criar espaço para as mulheres no espaço, porque ainda são poucas as que lá andam.” Também por isso, uma das primeiras “tarefas” que vão cumprir assim que saírem da gruta é visitar uma escola, na Ilha Terceira, para partilhar tanto a experiência daqueles dias, como o trajeto que as trouxe até aqui. “Parece que continua a haver muitas miúdas que têm medo da matemática, das ciências, da engenharia. E nós queremos provar que é uma área divertida e sexy, uma área pela qual se podem apaixonar. Portugal é uma nação espacial emergente e queremos mostrar que o espaço pode ser para todos e para todas. O empoderamento também passa por esta liderança feminina, também passa por vermos mulheres incríveis como a Aydil, a Yvette ou a Slavka [lá iremos] envolvidas nisto.”
Aydil concorda em absoluto. “A representatividade é fundamental. Tu não sabes o que és capaz de fazer até veres alguém a fazê-lo. Eu acreditei que era capaz de ir para a faculdade quando vi uma personagem de uma série que seguia a dizer: ‘Ei, eu sou porto-riquenho e cheguei à faculdade.’ Agora sinto que é a minha obrigação mostrar o mesmo a quem é mais novo. E ser mulher nesta área não devia ser uma novidade, devia ser a normalidade.” Yvette também enfatiza este ponto. “É importante que as mulheres se apoiem umas às outras. Se eu tenho uma oportunidade para apoiar mulheres que estão a fazer a diferença, que são extremamente talentosas, que se preocupam com o futuro deste planeta e da humanidade… então contem comigo.”
Falta ainda falar de Slavka Andrejkovicová, especialista em geoquímica e química nuclear com foco na astrogeologia, que estará na tal “mission control”, no fundo uma espécie de equipa de suporte dos elementos que vão estar no interior da gruta. Conta que desde miúda teve uma paixão incomensurável por Marte, viu todos os documentários que havia para ver sobre o tema, divertia-se simplesmente a olhar para o céu e a imaginar que tinha de haver vida para além da Terra. Só que, na altura, na Eslováquia (de onde é natural), não havia cursos relacionados com o espaço. “E também não era propriamente realista consegui-lo, sobretudo sendo originária do país que era.” Então seguiu por outra via, doutorou-se em materiais inorgânicos e tecnologia, veio para Portugal fazer investigação, mas a falta de financiamento acabaria por lhe deixar a carreira em suspenso. Fechou-se uma porta, abriu-se uma janela, o marido entrou na NASA, através dele soube que tinha sido aberta uma vaga para um mineralogista de argila (exatamente aquilo em que se tinha especializado), num projeto que explorava os materiais recolhidos em Marte, candidatou-se e, para grande surpresa sua, ficou com o lugar.
“Foi incrível. Foi sempre o meu sonho. Mas quem é que ia acreditar que alguém da Eslováquia, ainda por cima sem formação espacial ou planetária, poderia candidatar-se e ficar?”, questiona, sem esconder a alegria em que aquele feito a mergulhou. Hoje, de volta a Portugal, continua a colaborar com a NASA, ainda que externamente. Mas não esquece as dificuldades por que passou. “Hoje já não, mas na altura uma loira da Eslováquia a estudar química nuclear era uma coisa estranha. Foi difícil. Mesmo em Portugal, nos primeiros tempos, sentia-me um alien.” E voltamos à importância de projetos como este. “Definitivamente, acho que temos de mostrar às raparigas, e não só às raparigas, também aos rapazes, a todos os jovens, que se trabalharem mesmo muito, que se tiverem verdadeira paixão pelo que fazem, não importa aquilo que são ou de onde vêm, podem consegui-lo.” O CAMões é um exemplo prático disso. Ao todo, a equipa inclui elementos originários de cinco países, que falam oito idiomas e representam mais de uma dezena de áreas distintas entre si, das geociências à investigação ambiental, da astrobiologia à psicologia organizacional, da geofísica à espeleologia, do vulcanismo à microbiologia ou à medicina espacial. Daí que o projeto seja também uma bandeira de diversidade, de representatividade, de multiculturalismo.
Sem esquecer a componente pedagógica que encerra, com especial enfoque nas ciências, na tecnologia, na engenharia e na matemática. Vale a pena referir, a propósito, que os programas Ciência Viva e ESERO – um programa educativo da Agência Espacial Europeia ( ESA), que usa o espaço como contexto inspirador para a aprendizagem na área das STEAM – têm aqui um papel relevante. É através deles que o projeto de Ana Pires e companhia chegará aos estabelecimentos de ensino e poderá persuadir novos aspirantes a cientistas. “O Ciência Viva vai pôr os miúdos nas escolas a fazer algumas atividades que nós vamos fazer debaixo da gruta. E também reuniremos com os alunos [por Zoom] enquanto estivermos na gruta”, explica a investigadora do INESC TEC.
A mensagem é clara e está sintetizada neste apelo que Yvette faz questão de deixar a todos os candidatos a integrar missões como esta, num futuro mais ou menos longínquo. “O vosso contexto e as vossas circunstâncias não vos definem. O que vos define são os sonhos, a coragem, a força de vontade. Não importa a quantidade de desafios que haja a bloquear-vos o caminho, ou quantas rejeições enfrentem, lembrem-se que há sempre um caminho melhor para traçar.” Ou a prova de que uma missão que pretende recriar a lua também pode ser um poderoso “statement” social.