Os longos dias dos oito anos de António Costa

Foi o autor da geringonça, atravessou uma pandemia, duas guerras, casos e casinhos, greves de médicos, de professores, e até sobreviveu a uma queda do Governo de onde saiu reforçado. Foram oito anos de governação, três legislaturas, todas diferentes. António Costa, o político forte na arte de negociar, socialista desde catraio, acabou a demitir-se à conta de um caso judicial. O legado que deixa, as contas certas, a redução da dívida, o aumento dos salários baixos. E o futuro da carreira política.

A semana começou com normalidade, mas aquela manhã vertiginosa, de buscas e detenções, pintou a negro uma terça-feira que encheu até manchetes internacionais. O país caía nas bocas do Mundo e levava com um terramoto político, com a sombra da justiça a pairar. A poucos dias de completar oito anos em São Bento, António Costa demitiu-se de primeiro-ministro. Poucas opções restariam ao homem forte do PS, depois de buscas na sua residência, de cinco homens detidos, dois deles muito próximos de si, o seu chefe de gabinete, Vítor Escária, e o amigo de longa data Lacerda Machado. A seguir, um ministro arguido, João Galamba. Por fim, a investigação à alegada implicação do próprio primeiro-ministro nos negócios de lítio e hidrogénio e do data center de Sines, ele que será alvo de um inquérito pelo Supremo Tribunal de Justiça.

“A dignidade da função de primeiro-ministro e a confiança que os portugueses têm de ter nas instituições é absolutamente incompatível com o facto de alguém, que é o primeiro-ministro, estar sob suspeição da sua integridade, boa conduta ou ser objeto de um processo-crime.” A frase ecoou e ficou para memória futura. O hábil político, que tanto repetiu “à justiça o que é da justiça”, acabaria por cair precisamente à conta de um caso judicial. Não sem deixar claro: “Confio totalmente na justiça e no seu funcionamento”. A não ser este o desfecho, seria primeiro-ministro até 2026, cumpriria o sonho de estar ao leme do país nos 50 anos do 25 de Abril, de levar até ao fim a aplicação do PRR, talvez de ultrapassar Cavaco Silva na longevidade (uma década de governação). Caiu tudo por terra.

Depois de uma derrota eleitoral, em 2015, António Costa acabaria por formar Governo com a maioria de esquerda parlamentar, a célebre geringonça, de que foi autor
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Costa sai de cena em plena maioria absoluta do PS – o partido que lhe está cravado na pele, desde catraio, 14 anos, que é militante ativo -, maioria essa que nascera já ao fim de mais de seis anos de governação e que a ele próprio surpreendeu, a contar pela comoção no discurso de vitória naquela noite de janeiro de 2022. Foram três legislaturas, oito anos. Rebobinemos, pois, esta cassete. Subiu pela primeira vez ao Governo a 26 de novembro de 2015, depois de uma derrota nas urnas, numa situação inédita na cena política portuguesa, que pôs fim ao chamado arco da governação com a célebre geringonça, a maioria parlamentar dos partidos da Esquerda. Solução que viria a tornar-se popular entre os eleitores. Logo depois, era atormentado com o caso da prisão de José Sócrates e pedia que se separassem as águas da política e da justiça. Atravessou uma pandemia, duas guerras (na Ucrânia e no Médio Oriente, com graves consequências económicas para o país), sucessivas polémicas e demissões de membros do Governo, casos e casinhos, os vaivéns no dossiê da TAP (um dos temas que mais abalou o seu Executivo, que levou à demissão de Pedro Nuno Santos, forte candidato à sucessão, a uma comissão de inquérito e a um conflito com o presidente da República sobre a manutenção do ministro João Galamba), greves de médicos, de professores, e até uma queda do Governo em 2021, quando Marcelo Rebelo de Sousa decidiu dissolver a Assembleia da República e marcou eleições legislativas antecipadas, que viriam a resultar na maioria absoluta socialista.

Três legislaturas tão diferentes

“É um percurso, por um lado, que mostra alguma resiliência e capacidade de lidar com situações diferentes. Por outro, as diferentes condições políticas destes oito anos também revelaram a orientação político-ideológica deste PS liderado por António Costa”, comenta André Freire, politólogo e professor do ISCTE. Passa a explicar. “Na primeira legislatura, precisou dos partidos à sua esquerda e foi uma governação bastante estável, com o cumprimento de compromissos, a reposição de salários, das 35 horas de trabalho, uma série de medidas que foram aceleradas, num feito notável, que quebrou o tabu dos partidos do arco da governação.”

Costa ao lado de Catarina Martins, do BE
(Foto: Orlando Almeida/Global Imagens)

Já na segunda legislatura, quando Costa venceu pela primeira vez as legislativas, sem maioria, o PCP não quis fazer um acordo escrito, mas o Bloco de Esquerda manteve-se disponível, “e o PS preferiu governar à bolina, com um Governo pisca-pisca, umas vezes pisca para a direita, outras vezes para a esquerda, com muitas votações feitas com o apoio do PSD, numa governação muito pouco clara e ziguezagueante, o que mostra que a geringonça foi uma instrumentalização, porque assim que pôde o PS ficou em roda livre”.

E isso, aponta Freire, “agravou-se com a maioria absoluta, que não foi dialogante, como Costa tinha prometido, foi prepotente e com incapacidade de negociar, um Governo ao centro do centro”. Não só não cumpriu, recorda o politólogo, com a valorização salarial das classes médias, profissões mais qualificadas, “que estão agora a convergir com os salários mais baixos, numa violação grosseira do compromisso eleitoral”, como se assistiu no entretanto “aos lucros astronómicos da banca, das petrolíferas, da distribuição”. Por isso é que “há esta contestação de professores, médicos, enfermeiros”. O que fica de marca positiva é “o aumento dos salários mais baixos, embora insuficiente para cobrir a inflação, uma grande disciplina orçamental e a redução da dívida, que é algo muito importante”.

Costa ao lado de Jerónimo de5Sousa, do PCP
(Foto: Paulo Spranger/Global Imagens)

O politólogo António Costa Pinto concorda com esta leitura em dois pontos. “Primeiro, António Costa ficará na história da política portuguesa por ter, pela primeira vez, feito um Governo em que o segundo partido obtém uma maioria parlamentar. Foi o autor de uma alteração significativa.” Segundo, prossegue, “foi autor de um Governo que recuperou o equilíbrio orçamental e as contas certas, despedindo-se com uma maioria absoluta e um orçamento com excedente”.

O primeiro-ministro com o fundador do PS Mário Soares, que lhe reconhecia a capacidade política e lhe agradeceu ter avançado para a liderança dos socialistas
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Costa foi o protagonista maior de três legislaturas muito diferentes, é certo. Tanto quanto a longa carreira política, muito marcada por funções executivas. Advogado, foi deputado, ministro, vice-presidente do Parlamento Europeu, presidente da Câmara de Lisboa também durante oito anos antes de se tornar primeiro-ministro. Confiante, hábil na capacidade de negociação, exímio nos jogos de bastidores, ágil no confronto político, visível tantas vezes nos debates parlamentares. Aos 12 anos, já sabia querer ser socialista, mesmo sendo o pai militante do PCP, o goês Orlando Costa, escritor e técnico de publicidade. O próprio fundador do PS Mário Soares lhe reconhecia a capacidade e o aplaudiu quando António Costa avançou para se bater pela liderança do partido.

Para lá da análise política mais crua, há legado que deixa: manuais escolares gratuitos, creches gratuitas, avanços na descentralização, na digitalização dos serviços públicos, o fecho das centrais de produção de eletricidade a carvão, a nova Lei de Bases da Saúde, a criação da Direção Executiva do Serviço Nacional da Saúde (SNS) e uma reforma do SNS que poderá ficar, agora, pelo caminho.

Da inteligência política aos casos e casinhos

A demissão de António Costa, eram perto das 14.30 horas de terça-feira, foi um abalo na política portuguesa e apanhou o país de surpresa. O bruaá subiu de volume e era motivo para isso. O caos aterrou no Governo, ainda por cima a meio do debate de um Orçamento do Estado. Mesmo assim, António Costa Pinto ressalva que “é algo que pode acontecer a qualquer político, ser surpreendido por uma investigação judicial que o leva a demitir-se, independentemente da culpa que só será apurada muito tempo depois”.

O retrato de família do último Governo, de maioria absoluta, liderado por António Costa
(Foto: Paulo Novais/Lusa)

Socialista afastado das lides políticas, ex-ministro da Justiça no XIII Governo Constitucional liderado por Guterres, José Vera Jardim conhece bem António Costa. Aliás, foi no escritório de advocacia fundado por Vera Jardim e Júlio Castro Caldas, a que mais tarde viria a juntar-se Jorge Sampaio, que Costa estagiou. “A sua saída foi digna. É evidente que o primeiro-ministro não quis que essa suspeição pudesse afetar o seu exercício nos próximos tempos e tomou uma atitude digna. Trabalhei com ele vários anos na advocacia, dificilmente Portugal encontrará alguém com a capacidade de vencer os obstáculos e trabalhar em prol do país como António Costa.”

Olhar para os últimos oito anos é um exercício difícil, foram longos. Porém, Vera Jardim acredita que “houve grandes progressos, principalmente por se ter conseguido combater um dos problemas fundamentais que o país tinha, por se ter conseguido a queda de uma das maiores dívidas da Europa”. E reconhece sobretudo o trabalho feito em tempos conturbados como os que se vivem, “no aspeto económico, na problemática climática, na imigração, que tem criado vários problemas de divisão”, com “duas guerras, uma na Europa, outra no Médio Oriente”. Agora, avisa, o cenário atual de instabilidade política “é muito preocupante”. “Lamento tudo o que se está a passar, que é bastante prejudicial ao país. Há o perigo de se acabar por concluir que não há nada de grave, nem de menos grave, da parte do primeiro-ministro.”

O primeiro-ministro e Graça Freitas, então diretora-geral da Saúde, durante a pandemia de covid-19, uma das fases mais marcantes dos oito anos de governação de Costa, numa reunião com especialistas no Infarmed
(Foto: Natacha/Cardoso/Global Imagens)

Sobre Costa, só elogios. “É um homem de grande força, como tem mostrado ao longo destes oito anos, de grande inteligência na leitura dos fenómenos sociais e políticos. E embora o país tenha muitos problemas, no SNS, na Educação, penso que ele acabaria por encontrar soluções. Mas tudo isso foi interrompido.” A maioria absoluta de quase dois anos não foi suficiente? “A maioria não resolve tudo. São casos complexos, mas penso que acabaria por se chegar a um acordo. E várias coisas foram sendo feitas.”

Uma das muitas manifestações de professores que marcaram o último ano letivo, onde surgem os cartazes que provocaram polémica
(Foto: Rita Chantre/Global Imagens)

Do lado da Oposição, a leitura é necessariamente diferente. O histórico do PSD António Capucho chama-lhe “desilusão”. “António Costa foi uma grande desilusão. Parecia extremamente hábil e não deixo de reconhecer que o é politicamente, mas não tem vocação para governar em termos de adotar as reformas que o país precisa. Está demasiado preocupado com o aparelho partidário, em manter-se no poder.” A crítica é dura e vem à boleia de uma sucessão de erros apontados. “Essencialmente, fica tudo por fazer. Tudo o que era essencial em matéria de reformas estruturais, desde a educação à saúde, e veja-se a situação calamitosa, até à própria justiça, em que a credibilidade de uma instituição que devia merecer a confiança de todos os portugueses e a demora dos processos está longe de estar resolvida.” Todas as três legislaturas de Costa levam nota negativa de Capucho. Na geringonça “decidiu associar-se a dois partidos de extrema-esquerda e ficou completamente paralisado”. Mais recentemente, a maioria absoluta “foi desperdiçada, já lá vão dois anos e não se fez rigorosamente nada, tudo se deteriorou”.

António Costa com Volodymyr Zelensky, numa visita a Kiev, na Ucrânia, em maio de 2022, para demonstrar o apoio de Portugal
(Foto: Volodymyr Tarasov/ Ukrinform/Future Publishing via Getty Images)

Capucho também não deixa de apontar o dedo aos “vários casos que atingiram o Governo e que culminaram neste último, que provocou a demissão do primeiro-ministro, mas que envolve mais membros do Executivo, e a imagem do país no estrangeiro já está abalada”. Além, claro está, da polémica novela que envolveu o ministro das Infraestruturas, João Galamba, que conduziu a um conflito aberto entre primeiro-ministro e presidente da República “e que veio prejudicar muito a estabilidade das instituições”. Nem mesmo sobre a gestão da pandemia o social-democrata é meigo. “O Governo teve, de facto, de gerir uma pandemia. E correu muito mal no princípio quando dependeu do Governo, passou a correr bem quando o Governo pôs o almirante das Forças Armadas a gerir.”

O futuro político está condenado?

Para o homem com ambições maiores – sempre se disse que Bruxelas seria o próximo destino – esta Operação Influencer, assim se chama o caso judicial, é uma gigante pedra no sapato. “É evidente que esta é uma etapa da vida que se encerrou”, afirmou Costa, no discurso da demissão, sobre a não recandidatura ao cargo de primeiro-ministro. Mas será que toda a sua carreira política fica condenada ao fim? Por agora, parece óbvio, ficará em stand by.

Costa ao lado do presidente francês, Emmanuel Macron, e do primeiro-ministro búlgaro, Kiril Petkov, em Bruxelas
(Foto: Brendan Smialowski/AFP)

E o politólogo António Costa Pinto tem dúvidas que possa ter continuidade. “Acho que o sistema judicial hipotecou a vida política ao primeiro-ministro”, diz, sem artifícios. “Ex-primeiros-ministros já têm um leque limitado de opções ao nível da continuação da carreira política, ainda por cima saindo por uma ação do poder judicial. O passado mostra-nos que ex-ministros, mesmo que sejam inocentados, não conseguem recuperar a vida política. Diria que será difícil, quer em Portugal, quer lá fora.” Além de que a justiça é lenta, “veja-se o caso de José Sócrates, acusado já lá vão mais de dez anos”. E por isso, sublinha, “é de esperar que o sistema judicial tenha coisas muito fortes, porque se for apenas aquilo que está naquele comunicado lacónico é preocupante”.

António Costa ao lado de Marcelo Rebelo de Sousa e do presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva
(Foto: Miguel A. Lopes/Lusa)

André Freire diz o mesmo. “Espero que a justiça tenha razões fortes para isto, porque é grave. Independentemente de se concordar ou não com as políticas de António Costa e do PS – e sou bastante crítico -, espero que seja algo muito sério para ter dado origem à demissão de um primeiro-ministro. A bem da justiça.” Apesar de tudo, o politólogo não segue o raciocínio de Costa Pinto e não acredita que este seja o ponto final para Costa. Mas admite que se o socialista mantiver a coerência, vai haver um longo período de ausência. “Sabemos que a justiça é muito, muito lenta. E para ele ser coerente também não deve ir para outros cargos políticos durante este processo. Ele sai com bastante dignidade, isso tenho de reconhecer, mas se não tem honorabilidade para ser primeiro-ministro, assumir um alto cargo europeu também não é razoável.” Pese embora “nada esteja provado e haja apenas umas suspeitas, até um bocadinho vagas”.

O primeiro-ministro à saída da conferência de imprensa em que anunciou a demissão
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

Tão vagas que o próprio ex-ministro da Justiça Vera Jardim as desvaloriza, de certa maneira. “Este processo não merece meses ou anos de investigação. Ao que se sabe, o inquérito vai incidir sobre uma conversa que duas pessoas tiveram sobre uma eventual interferência de António Costa”, lembra em tom crítico. Para Vera Jardim, é certo que Costa não morreu para a política, há até quem diga que não sabe fazer outra coisa, e é do timing da justiça que vai depender o seu futuro. “É preciso resolver este inquérito primeiro, importa desde logo que o primeiro-ministro possa ter a sua situação clarificada.” No entretanto, António Costa, acredita, vai esperar por essa clarificação antes de seguir com a carreira política. “Bom seria que a justiça neste caso em particular, como em todos aliás, atuasse com celeridade. Parece-me que não será muito difícil investigar o que poderá suscitar dúvidas no Ministério Público. É altamente recomendável que haja uma investigação rápida para salvaguardar a honra e dignidade do primeiro-ministro, que não está ainda acusado, mas está posto em causa num inquérito.”

Político combativo, agnóstico, benfiquista, pai de dois filhos. António Costa viu-se obrigado a fechar a porta de São Bento. E como diria o próprio, à justiça o que é da justiça. Quanto ao mais, resta esperar. Pela justiça e pelo futuro.