Os filmes e músicas que são conforto no Natal

“Sozinho em casa”, “Música no coração”, “All I want for Christmas is you”. Porque é que, por esta altura, ano após ano, fazemos questão de ver e ouvir as mesmas coisas?

Em casa da família Teixeira, o plano para os dias natalícios há muito está estabelecido, como as entradas de uma agenda que se cumprem escrupulosamente. E, no entanto, nunca acertaram entre eles que assim havia de ser, nunca pararam para decretar aquele ritual, antes ele foi-se impondo com o tempo, soube-lhes a casa de tal forma que se eternizou, já lá vão sete ou oito anos. Na noite de 24, jantam os três, pai, mãe e filha (os avós, por um motivo ou outro, há muito não contam, os tios vão para fora, rumo aos braços dos filhos). Depois de trocarem os presentes, jogam Monopólio. “Mas normalmente nunca dura muito tempo que a minha mãe prefere ver os filmes.” Os filmes. O artigo definido não está aqui à toa. São sempre os mesmos. “Primeiro os do Shrek. Vemos sempre o especial de Natal, depois o ‘um’ e o ‘dois’”, conta Sofia, a filha, de 29 anos. Segue-se o Harry Potter. “Normalmente não conseguimos ver todos, mas tentamos fazer maratona. Ficamos até de madrugada e depois continuamos no dia seguinte. O meu pai também está connosco mas adormece sempre”, detalha Sofia, meia a rir. Nestes anos todos, nunca perdeu muito tempo a pensar porque o faziam. Mas, quando questionada, a resposta não tarda. “É acolhedor. De alguma forma dá-nos conforto.” Ainda mais quando passam o ano separados. Sofia trabalha no Porto, os pais vivem em Mirandela e trabalham seis dias por semana, até as visitas são vividas entre a correria da labuta. Nestes dias é diferente. “O Natal desperta em nós a consciência de que o mais importante é estarmos juntos. Ainda por cima durante o ano há pouco tempo. É uma forma de conseguimos fazer uma pausa e aproveitar para estar em família.”

A realidade de Sofia e dos pais é partilhada por muitos de nós. Quem não reviu já os vários filmes do “Sozinho em casa”, Natal após Natal, mesmo que já saibamos de cor o exato momento em que os pais de Kevin vão perceber que se esqueceram dele em casa ou conheçamos como a palma das mãos as mil armadilhas que o garoto prepara para afastar os desafortunados larápios? Quantos de nós não viram já o “Música no coração” tantas vezes que conhecem as músicas de trás para a frente? E aquele hábito de montar a árvore a ouvir o clássico de Mariah Carey que é uma declaração de amor em jeito de carta ao Pai Natal? Já para não falar das camisolas de Natal que usamos ano após ano, na noite de consoada, mesmo que não sejam assim tão giras e sejamos incapazes de as vestir noutro contexto. Constatado este padrão de comportamento, há que passar à fase seguinte: afinal, como se explica que vejamos, ouçamos ou até vistamos as mesmas coisas ano após ano, como se de uma promessa se tratasse?

Margarida Mendes, psicóloga do Hospital Lusíadas Amadora, mostra-nos que a explicação é relativamente simples. “Tudo o que nos é familiar dá-nos uma sensação de segurança e previsibilidade. Nós somos ensinados a ter controlo, a prever o futuro, a antecipar. O que é repetitivo proporciona-nos um ambiente de conforto que no fundo é tudo o que queremos no Natal. Esse sentir da família, do conforto, do aconchego.” A especialista dá o exemplo dos mais pequenos, para melhor se perceber o que aqui está em causa. “Sabemos que as crianças gostam de ver sempre os mesmos desenhos animados porque o facto de já saberem o que podem esperar tranquiliza-os, dá-lhes segurança emocional. E isto é válido tanto para as crianças como para os adultos, é algo transversal.” Depois, é o próprio imaginário transmitido por estes filmes. E voltamos à longa-metragem protagonizada por Macaulay Culkin. “O Sozinho em casa, por exemplo, transmite uma ideia de união, de família. Porque mesmo os pais que se esquecem do filho em casa estão sempre à procura daquela criança, a tentar dar-lhe aconchego.” Além de funcionarem como um certo reservatório de recordações. “Há filmes que já vemos há tantos anos que de alguma forma nos lembram os avós, as memórias que se vão criando ao longo dos anos. Há até casos em que os filhos servem de desculpa para os pais verem os filmes que viam quando eram pequenos, porque os remetem para o conforto da infância, para as memórias dos familiares de que gostavam tanto.”

Paula Guerra, socióloga e professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, acrescenta uma outra leitura. “Tem a ver com a necessidade que as sociedades têm de arranjar rituais, e formas de sociabilidade associadas a esses rituais, que as ajudam a ter um sentido de si. Já desde o pós-Segunda Guerra Mundial, naquela ideia do renascer das cinzas, que surgiu a ideia de procurar rituais e formas de reunião. É algo que faz parte da nossa socialização.” Uma necessidade que “o atual contexto de globalização acelerada, de desmaterialização das coisas, de predomínio das redes sociais” só tem vindo a exponenciar. “Existe cada vez mais uma necessidade desse encontro, dessa celebração, desse ritual.” A própria pandemia contribuiu para isso, entende Paula Guerra. Para o avolumar de uma certa nostalgia também. “Nós somos profundamente nostálgicos, achamos sempre que o passado é que foi muito feliz. E muitos desses filmes ou músicas apelam a um passado feliz. O que de alguma forma também nos ajuda a enfrentar um futuro cada vez mais incerto, seja por razões ambientais, de saúde ou outras.”

(Foto: Freepik)

A docente de Sociologia releva uma outra nota, que é um convite à reflexão. “A verdade é que em quase todos os países, mesmo os que têm tradições diferentes, como na Índia ou nos países africanos, por exemplo, vemos uma certa expansão e dominação dessa matriz festiva e dessa comemoração. Nalguns casos deparamo-nos até com imagens de certa forma ridículas porque figuras como o Pai Natal estão concebidas para um contexto de neve e no entanto acabam por ser exportadas para estes países em pleno verão. É o resultado de um certo colonialismo que persiste, ou pelo menos de uma globalização de costumes e valores que acaba por se traduzir numa dominação simbólica e cultural.” Habituada a viajar pelo Mundo, Paula Guerra dá um exemplo muito concreto, que é elucidativo. “Em janeiro fui a Goa dar aulas e quando saímos do aeroporto deparámo-nos com uma construção de uma pista de gelo artificial. Isto apesar de estar uma temperatura avassaladora.” Para a socióloga, a interpretação é óbvia. “De alguma forma, é um tentáculo do capitalismo económico que vivemos, com um mercado único e uma imposição única de Natal.” E então, ainda falta muito para começar o “Sozinho em casa”?