Joel Neto

Organizar o caos


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Passar a ferro, não. Passar a ferro é horrível. Uma pessoa está ali horas, naquele calor, e o trabalho nunca se conclui. Até umas calças custam: ainda a segunda perneira está em curso e já a primeira tornou a engelhar. Passa-se uma vez, passa-se outra, e a coisa está apenas um pouco melhor do que no início. É uma frustração. Até o ferro parece ir mudando de funções, para atrapalhar: onde era o vapor agora são os respingos, a temperatura em que se passavam as lãs agora é aquela em que se passa o algodão – e lá se foi mais uma camisa. Creio que foi por detestar tanto passar a ferro que comecei a comprar a roupa toda igual: por medo daquele dia em que a Sónia manda uma mensagem a dizer que o Pedro está febril e não pode vir. Devo ter umas dez calças parecidas, umas vinte sweatshirts quase iguais, umas trinta t-shirts iguaizinhas: tudo preto ou cinzento. Dobram-se mais ou menos e parecem quase passadas.

Lavar a loiça é outra coisa. Lavar a loiça é a minha alegria. Um tipo lava um prato e ele fica de facto lavado. Lava um pirex que queimou no forno e é como se o trouxesse de volta do além. Há obra feita, o mundo anda para a frente – o caos organiza-se, para irrepetível redenção de um escritor. E, além disso, o jardim que fui plantando ao longo dos anos fica mesmo diante da janela da cozinha, por detrás da qual está instalado o lava-loiças. Lavo a loiça e o que tenho à frente é à minha araucária, o jardim de pedras que a Marta criou, o pavilhão que tenho vindo a erguer com o José Domingos, os carreiros de pedra pavimentados pelo Chico, o baloiço que eu e o João construímos para o Artur, a magnólia e o jacarandá vindos de outro tempo, e a acácia descendente, e as bromélias, e as begónias, e as madressilvas – e, à esquerda, para lá das faias, do jasmim e das roseiras, a cabana onde trabalho, reinando sobre as árvores de fruto que também plantei.

É um tempo de meditação, lavar a loiça. Um tempo de estar a sós. Porque um homem que lava a loiça tem o direito de estar calado. Pode até ouvir um disco, mesmo um podcast. E portanto eu ali fico. Lavo com água fria, lavo com água quente, lavo com a torneira a correr, lavo com a água acumulada – não tem segredos para mim, lavar a loiça. Peço meças a quem julgue saber mais do que eu sobre esfregões ou detergentes. Sei tudo: um dia ainda filmo um tutorial para o YouTube. Gosto tanto de lavar a loiça que às vezes até a lavo toda de seguida à mão, fingindo poupar a máquina. Nem sequer é um dever, lavar a loiça: é um direito. Ainda ontem pus o Spotify na Samara Joy e fui por ali fora. Quando acabei, apaziguado e cheio de ideias, já o Artur ressonava no seu berço e a Marta lutava com o sono, cabeceando o ar.

Mal posso esperar por o meu filho entrar para o roulement das tarefas domésticas. Hei-de ensinar-lhe a demolhar, esfregar, enxaguar e empilhar a loiça em condições. Ou talvez devesse antes tentar persuadi-lo a aprender a passar a ferro. Sempre nos complementávamos melhor os três, e ainda garantíamos que ele não acabava escritor.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)