One Health. O futuro da saúde já começou

A ONU lançou o isco e aos poucos vão nascendo os efeitos concretos do One Health, filosofia que pretende juntar saúde humana, saúde animal e meio ambiente numa conjugação de esforços que permita chegar a conclusões comuns e a práticas eficazes, aliadas à realidade dos dias rápidos que vivemos. Os primeiros resultados em Portugal começaram a surgir. Fomos conhecê-los.

O caminho faz-se caminhando, escreveu o espanhol Antonio Machado (1875-1839) naquele que foi o poema que o deixou para a eternidade das letras. É nesse caminho lento feito de passos persistentes que vai formando escola o conceito One Health (Uma Saúde), que pode vir a revolucionar a forma de olhar a Saúde, assim mesmo com maiúscula, a que nos orienta, nos conforta, nos faz acreditar que é possível sermos melhores, que nos dá qualidade de vida e contorna o vazio do pessimismo mesmo quando o cenário é o mais negro e os dias parecem encurtados à morte.

Mas vamos ao início desse percurso. O ano era o de 2017 quando a Organização das Nações Unidas (ONU) cunhou oficialmente o princípio que pela primeira vez tornava oficial a ligação entre pessoas, animais, plantas e ambiente numa abordagem única ao desígnio da Saúde, até então abordada individualmente, qual casulo impenetrável que atuava sem portas abertas ao outro. Foi o princípio de tudo, da globalização da ideia, do espalhar da mensagem, do apelo aos intervenientes de cada um dos setores para que trabalhassem em conjunto, em nome do bem comum. Que cientistas, técnicos e até políticos pudessem juntar esforços nos cinco continentes e começassem a materializar uma ideia que tinha tanto de utópica como de lógica, foi o apelo. “Afinal, somos um só e estamos todos interligados”, lembra Henrique Cyrne Carvalho, diretor do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), a primeira instituição nacional a adotar oficialmente o One Health e a tornar-se parceira oficial da ONU na sua aplicação prática por cá.

Não foi por acaso que o ICBAS acabou o escolhido entre os escolhidos. É o único espaço em Portugal que integra as três áreas base que sustentam o One Health. “Através dessa investigação interdisciplinar procuramos continuamente melhorar a saúde pública”, resume Henrique Cyrne Carvalho.

“Somos um só e estamos todos interligados. Através da investigação interdisciplinar procuramos continuamente melhorar a saúde pública”, afirma Henrique Cyrne de Carvalho, diretor do ICBAS
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Foi em 2018 que o ICBAS se lançou na ideia de juntar cientistas, professores e alunos para acolher ideias e desenvolver esforços que fizessem do One Health não apenas um conjunto de frases vagas facilmente apagadas no vento dos dias, mas uma casa firme e permanente que permitisse salvaguardar o principal do projeto e o desenvolvesse com ideias práticas que lhe dessem sentido alegre e útil. Lançado o desafio, os investigadores do ICBAS começaram então a discutir como tal poderia ser possível. Agregaram as diferentes valências como se fossem uma só. E começaram a trabalhar. E criaram o One Health Day, que junta iniciativas diversas para o propagar. E lançaram o projeto “Liga-te à Terra”, que visa promover o bem-estar dos estudantes.

Pandemia, a oportunidade única

Até que, dois anos depois, surgiu a pandemia de covid-19 e o que poderia ter sido o princípio do fim de um projeto inédito veio, afinal, reforçar mais do que nunca o seu sentido. “Tratou-se de uma oportunidade única de consciencialização para os benefícios da necessidade desta abordagem”, considera Henrique Cyrne de Carvalho. “Um exemplo paradigmático”, classifica, para perceber que isto anda tudo ligado, como canta Sérgio Godinho, e que homem, animal e Natureza não vivem separados entre eles, fazem parte de um corpo comum, com traços também comuns que podem desbravar respostas surpreendentes em estudos em que a respetiva interação sugere luz nova a uma ciência que (quase) sempre insistiu separar águas que se julgavam impossíveis de juntar.

“A pandemia revelou como é possível a disseminação e infeção em humanos a partir de animais, chamando a atenção, não só dos atores políticos, mas também de toda a população mundial, para a gravidade que pode assumir o estudo isolado e unidisciplinar das zoonoses na saúde humana”, especifica o responsável pelo ICBAS.

No fundo, como diz a ONU através da Organização Mundial de Saúde (OMS), “a segurança alimentar, o controlo das doenças zoonóticas, os serviços de laboratório, as doenças tropicais negligenciadas, a saúde ambiental e a resistência antimicrobiana são áreas que permitem e abrangem questões complexas que exigem uma estreita colaboração entre setores, partes interessadas e países.” Essa união está traduzida no One Health Quadripartite, que junta, além da OMS, outros organismos da ONU como a Organização para a Alimentação e a Agricultura (FAO), a Organização Mundial de Saúde Animal (OIE) e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). De acordo com um plano de ação traçado em 2022 e com metas a atingir até 2026, os objetivos são claros e passam por “integrar sistemas e capacidades para que possamos coletivamente prevenir, prever, detetar e responder melhor às ameaças”, contribuindo para o desenvolvimento sustentável do Planeta. As pistas estão lançadas, cabe agora a cada nação utilizá-las o melhor possível através do trabalho no terreno.

Sal, o mais amigo dos inimigos

O professor catedrático Adriano Bordalo e Sá trabalha na componente do ambiente e da saúde e coordena o gabinete do One Health do ICBAS. E tem uma certeza: “Diz-se que mais vale prevenir e é exatamente o contrário que deve acontecer”. Ou seja, deve-se atuar o quanto antes e aqui o verbo atuar assume particular relevância, colocando ênfase nas sinergias entre especialistas de diferentes vertentes.

Um dos estudos que coordenou no âmbito do One Health centrou-se no sal e no iodo, ou na falta dele, na população portuguesa. “O sal é muitas vezes considerado um inimigo. O estudo concluiu que temos deficiência em iodo, que controla o metabolismo, porque o sal vendido em Portugal não é obrigatoriamente iodado. Estamos coletivamente deficitários, também porque comemos muito peixe de aquacultura, menos salinizado do que o peixe pescado no mar”, detalha Adriano Bordalo e Sá. “A falta de iodo pode ter consequências enormes no desenvolvimento físico e mental”, alerta. Daí, também, a necessidade de espalhar a mensagem o quanto antes. “Trabalhamos na difusão do conceito para o público. Se as pessoas forem mobilizadas, tudo será mais fácil”, diz.

Foi o trabalho no continente africano, onde Adriano Bordalo e Sá tem atuação de anos em Moçambique, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, que o fez sublinhar ainda mais a importância de um ataque conjunto aos problemas de saúde. Lá, onde as necessidades são imensas e os recursos escassos, onde o acesso à água é quase caça a tesouro raro, onde o contacto com os animais alarma os problemas de higiene pública, ficou a conhecer as necessidades de um grosso do povo que muito teria a ganhar com a implementação de ações conjuntas. “Em vários países de África, por exemplo, começou a vacinar-se em conjunto as pessoas e os animais. Foi o primeiro passo para a aplicação do One Health e que já rendeu os seus frutos”, afirma.

Ir, estimular e espalhar a palavra

A aplicação prática do One Health é personalizada em várias individualidades de diversas áreas médicas e científicas que trabalham em conjunto para dar corpo a um princípio que querem comum. É o caso do médico Carlos Vasconcelos, especialista com experiência no âmbito do combate ao HIV/SIDA e fundador da Unidade de Imunologia Clínica (UIC) do Hospital de Santo António, no Porto. Apesar de aposentado das carreiras de clínico e de docente universitário, que acumulou durante décadas, mantém gabinete aberto na UIC e em regime pro-bono continua a desenvolver o trabalho de sempre. Foi dos primeiros entusiastas do One Health e pertence à comissão encarregue de o montar, elaborar e expandir.

“A minha experiência leva-me a dois pensamentos aparentemente díspares. Há casualidades múltiplas no aparecimento de doenças autoimunes e uma delas é a chamada teoria da higiene, a qual refere que na Europa as pessoas quanto mais higiene têm menos sujeitas estão a infeções mas mais vulneráveis ficam a essas autoimunes”, começa por explanar. E completa: “Por um lado, isto diz-nos que precisamos de aprendizagem imunológica, o mexer na terra, o contactar com animais. Por outro lado, é necessário encontrar terreno genético para que não surjam mais doenças autoimunes. Porque os vírus querem o mesmo do que os humanos, sobreviver e reproduzir-se”, explica.

A interação com outros ramos multidisciplinares da ciência encontra aqui uma via que encaixa perfeita no conceito One Health e que Carlos Vasconcelos tem tentado explorar ao máximo. “Os fatores ambientais, como o aumento dos raios ultravioleta e toda a carga de poluição a que estamos sujeitos, a que se juntam fatores pessoais como o stress, ajudam ao surgimento e desenvolvimento de autoimunes, assim como a parte ambiental também está ligada ao surgimento de problemas cardiovasculares”, assinala. “O One Health obriga a que se estudem estas relações mais aprofundadamente para que as pessoas se possam acautelar. No fundo, o objetivo é ajudar a que todos tenhamos atitudes preventivas”, desenvolve.

“Mas é preciso ainda muito”, avisa o especialista. É necessário que a teoria que está na base dos princípios únicos e universais do One Health sejam, realmente, tomados em conta e passados do papel ao dia a dia da prática. “Os meios académico, científico e hospitalar devem falar entre si, o que fazem ainda muito pouco. É também urgente mais informação, ir para os hospitais, estimular. Porque tudo se interliga, basta vontade.” E vontade e entusiasmo é o que não faltam a Carlos Vasconcelos, que no quotidiano continua a trabalhar para que a união de esforços em torno de um bem comum seja realidade prática. Ele, o médico que nunca despe a bata, foi dos primeiros a acreditar. E a recusar desistir.

Animais, humanos e cancro

O One Health tem também na medicina veterinária, logo nos animais, um dos seus princípios de base. Porque eles podem ajudar os humanos e há cruzamentos de saúde entre ambos que, devidamente estudados, auxiliam ao surgimento de caminhos científicos que podem desembocar no descobrir de novas doenças e na cura mais célere de outras. É essa via comum que tem ocupado as pesquisas do investigador João Niza Ribeiro, professor de veterinária no ICBAS e membro da direção do Instituto de Saúde Pública (ISPUP) da Universidade do Porto. Foi dos primeiros a perceber as potencialidades do One Health e de como este poderia ajudar a desenvolver novas vias no conjunto da medicina. É dele a coordenação de uma equipa que levou a cabo um estudo inédito, em parceria com o Instituto Português de Oncologia (IPO) que chegou a resultados surpreendentes.

“Esse trabalho em rede permitiu a atores de diversas áreas e origens perceberem que o cancro em animais de companhia, como cães e gatos, tem semelhanças com o cancro nos humanos”, especifica João Niza Ribeiro. Mais propriamente com o cancro da mama, o que levou a que o One Health pudesse, através do referido estudo, ter consequências práticas em caminhos de investigação inéditos, nunca dantes explorados.

“Identificámos fatores de risco comuns, problemas atacáveis nas duas frentes em animais expostos ao mesmo ambiente do que os seus donos e que podem ser boas sentinelas e trazer muita informação sobre cancros”, pormenoriza. Além da mama, foi possível traçar pistas sobre outros cancros, como o da tiroide.

“Se não fosse o One Health, esse conceito potente que nos convida a olhar para a saúde como um todo, teria sido muito difícil conhecer o que leva aos episódios de doença”, garante o investigador. “A interação entre humanos e animais foi fundamental”, reforça.

Em causa, estiveram “questões complexas que conseguiriam ser resolvidas da forma tradicional”, uma espécie de “conhecimento sistémico” conseguido através de fontes variadas que antes trabalhavam em separado.

João Niza Ribeiro não parou e vai aplicar a filosofia num outro projeto, este ainda em fase embrionária, o qual pretende estudar a possibilidade de perceber a verdadeira eficácia dos antibióticos. “Os antibióticos são utilizados em todas as medicinas, a humana, a veterinária e a vegetal. O objetivo é saber como e se se poderá reduzir o seu uso de uma forma prudente no futuro”, avança. Um trabalho em equipa que vai juntar veterinários, agricultores, académicos, até mesmo produtores de suínos. Em nome de uma só Saúde.