Mosteiro de Ancede, o mosteiro que renasceu das cinzas

Trinta e oito anos depois da compra pelo Município de Baião, o monumento que mora sobre o rio Douro, em Ancede, reabriu as portas ao Mundo. Da ruína, nasceu um lugar onde cabem visitas ao passado, exposições, concertos, conferências, um verdadeiro centro cultural. A rodeá-lo, 13 hectares de quinta, onde se produz vinho, hortícolas, frutos para instituições que apoiam famílias carenciadas. Um pequeno mundo encaixado em socalcos.

Está a pé desde as cinco e meia da madrugada, chega de boina na cabeça, a cor da pele torrada a denunciar os dias de trabalho debaixo de sol, as mãos calejadas, cheias das alfaces e couves que anda a colher. “Trabalho desde 2011 aqui”, apressa-se a dizer. Aqui é como quem diz na quinta que rodeia o Mosteiro de Ancede, em Baião, o mais rural concelho do distrito do Porto. Fernando Monteiro tem 48 anos, sotaque de gente ali nascida e criada, é um dos três homens (nas alturas de maior trabalho são mais) a dar conta do cultivo daqueles 13 hectares que sobrevoam o rio Douro, de socalcos verdes, tão verdes. Dali sai vinho – 7500 garrafas de “Lagar do Convento” só este ano, da casta Avesso, autóctone de Baião -, hortícolas e frutos. “Foi uma ideia do presidente da Junta da altura, eu trabalhava nas obras e cultivava em casa. Ele convidou-me para vir trabalhar aqui e aceitei.” Foi mesmo, o Município, de mãos dadas com a Junta, havia comprado o Mosteiro e a quinta em 1985 (antes pertencia a um particular) e José Lima, ex-presidente da Junta de Ancede e atual vereador na Câmara, quis começar a usar a quinta como unidade de produção agrícola precisamente em 2011.

Fernando Monteiro, agricultor, a colher alfaces na estufa

“Ao fim de tantos anos continuo a gostar disto. Uns dias dedicamo-nos mais às batatas, outros à vinha. Somos poucos, mas somos desenrascados. Às vezes chegamos cansados a casa, mas tenho muito orgulho nisto.” E agora que o Mosteiro reabriu portas ao Mundo, reabilitado (lá iremos), Fernando ainda ali vai vendo turistas. “Vêm falar connosco, perguntam se vendemos o que produzimos aqui. A maioria é portuguesa, quando são estrangeiros não os entendo”, diz ele a rir. E na verdade vendem, vendem ali mesmo a gente da terra que lá vai buscar, como também vendem na Casa de Baião, no Porto, a preços de mercado abastecedor. Mas a maioria da produção é para a cantina da Autarquia e para Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) que ajudam famílias carenciadas com cabazes sociais. É desse orgulho, afinal, que Fernando fala. Não lhes conhece os nomes nem os rostos, vale-lhe só saber estar a ajudar.

Marcelo Miranda, engenheiro agrónomo, o responsável pela quinta que rodeia o Mosteiro de Ancede e que, desde 2011, funciona como unidade de produção agrícola

Para somar a tudo, a produção é toda biológica – e estão a tentar evoluir para agricultura regenerativa, o próprio adubo usado vem de um centro hípico. Marcelo Miranda é o responsável da quinta, jovem, muito jovem, 30 anos apenas, também cresceu em Baião, só saiu da terra para ir para Coimbra fazer-se engenheiro agrónomo e voltou. “Aqui temos um bocadinho de tudo. Repolho, alface, tomate, pepino, pimento, feijão, batata, cebola. E fruta, ainda ontem apanhámos 1200 quilos de limão, além de marmelo, laranja, uva de mesa, cereja, este ano foi fraco, se apanhámos 100 quilos de cereja foi bom, no ano passado foram toneladas.”

Um vizinho do Mosteiro a comprar novidades

O produto que vai para venda é simbólico, a quinta ainda não é totalmente autossuficiente, há de ser, espera ele. Nos sonhos têm a criação de um pequeno negócio de produtos endógenos, fazer uma cozinha tradicional para transformar o que a terra dá em compotas, aguardentes, licores, marmeladas, tudo com a marca do Mosteiro de Ancede. Só falta desenhar o plano de negócio. Um freguês interrompe, senhor de idade, vizinho do Mosteiro, mora mesmo ali ao lado, quer cebolas, Marcelo trata da pesagem numa casinha onde vão guardando as novidades que apanham. E está feita a venda.

Pelas mãos de Siza, uma nova vida

Olhemos, pois, em redor, para o Mosteiro que é a aura de um lugar tocado por Deus, de encostas a perder de vista, o Douro aos pés, encaixado ali na perfeição. É monumento de interesse público integrado na Rota do Românico, em pedra bruta, acabado de renascer das cinzas. Estava feito em ruínas, a aguentar-se de pé entre obras de consolidação desde 2001, até que em 2020 o Município decidiu fazer uma reabilitação a sério, pelas mãos do arquiteto Álvaro Siza Vieira, no Mosteiro, na Casa dos Moços, no Adro da Igreja. O arquiteto Daniel Vale assina a obra referente à Igreja (embora o Município tenha comprado toda a quinta, a igreja, o adro e a Capela do Bom Despacho, um dos mais notáveis exemplares do Barroco do norte do país, pertencem à paróquia, mas foram também alvo de intervenção). “A obra começou em junho de 2020, ficou concluída em março de 2022. Entretanto, fizemos alguns eventos de teste para uso do espaço e a inauguração oficial foi em abril deste ano”, explica Rui Mendes, chefe da Divisão de Cultura e Turismo da Câmara de Baião.

Alberto Monteiro, outro dos três agricultores que trabalham aqui a tempo inteiro

No piso térreo, Siza quis respeitar a ruína, manter a história, a ausência de telhados, de janelas, não foi usado cimento sequer, nada foi alterado, só consolidado. No primeiro piso, tudo foi recuperado, de alto a baixo, e agora há lá espaços expositivos e culturais. É por isso que o Mosteiro de Ancede já não é só o Mosteiro de Ancede, é também Centro Cultural de Baião. Com programa cultural, visitas guiadas, encenadas, livres, conferências. Há um auditório com 80 lugares, um espaço expositivo que acolhe 25 visitantes por hora, além do Claustro, agora capaz de receber 300 pessoas. Mas a história começa-se pelo princípio – e vamos mesmo a um bocadinho de história, rebobinar a cassete, para apanhar o fio à meada.

A origem do icónico Mosteiro é anterior à fundação de Portugal, não se conhece ao certo a data, o documento mais antigo que existe é de 1120, ainda hoje o monumento é alvo de estudo, mas sabe-se que teve uma ocupação romana. A Carta de Couto concedida pelo rei D. Afonso Henriques ao Mosteiro de Ancede data de 1141 e já na altura era uma propriedade grande, 16 quilómetros quadrados, valia 150 morabitinos, a moeda da altura. A primeira ordem religiosa que o habitou foram os Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, que apostavam no povoamento das terras, para travar a invasão dos mouros à época. A história é contada por Lilite Joaquim, funcionária da Câmara, que é guia ali e relata tudo com o pormenor e o entusiasmo de amor a um lugar único. E continua. O Douro, lembra ela, era uma autêntica autoestrada, no século XV o Mosteiro já tinha uma nau para trocas comerciais com a Flandres (região do noroeste da Europa, repartida atualmente entre a França, a Bélgica e a Holanda), então o maior porto comercial da Europa. “Foi aí que começaram a adquirir muitas obras de arte, nomeadamente o tríptico de Ancede, do pintor flamengo Jos van Cleve, extremamente valioso, que foi uma encomenda mesmo do Mosteiro e só saiu duas vezes de Ancede, uma para fazer parte da uma exposição e outra para restauro.”

O antigo armazém, onde está uma instalação artística de Cristina Rodrigues

Está agora exposto no piso superior. Mas voltemos à linha do tempo. Pelo caminho, ainda houve uma mudança de ordem religiosa, em 1560, quando entraram os Dominicanos, que construíram grandes obras, os celeiros, a adega, o fontanário, a Capela do Bom Despacho, reestruturaram a igreja (que passou a ser apenas uma e não duas como antes, quando uma era para os frades, a outra para os fregueses). Ficaram até 1834, o ano da extinção das ordens religiosas em Portugal. Foi então que a igreja e a capela passaram para as mãos da Diocese do Porto e a ala monástica para a Fazenda Real. Um ano depois, o Mosteiro era vendido em hasta pública a um homem abastado do Porto. E desde aí teve tantas vidas, chegou a ser escola de raparigas, escola mista, fábrica de serração. Foi-se degradando e degradando até à compra pela Câmara Municipal – e, depois, ainda funcionou uns tempos como polo de formação do Ministério da Agricultura.

Hoje, no piso térreo, onde Siza seguiu o caminho da consolidação de ruínas, há instalações de Cristina Rodrigues, artista portuense com ligações afetivas a Baião, a colorir a visita. Janelas românicas, o Claustro, um refeitório com talhas em cerâmica, uma sala de oratório, uma cozinha que se mantém sem telhado e onde estão potes enormes que até já serviram para cozinhar aletria e arroz de cabidela num evento de abril. No piso de cima, o Fontanário, que era espaço para se comer ao ar livre noutros séculos. E que tem os olhos postos na Casa dos Moços, aí, sim, totalmente reabilitada, há de ser cafetaria em breve – foi o primeiro projeto de Siza no Mosteiro, onde o prémio Pritzker testou algumas funções arquitetónicas antes de pôr mãos à obra em tudo o resto. E depois as salas expositivas, também renovadas, onde antes não havia telhados, não havia chão, e onde mora agora uma exposição permanente sobre a evolução de Baião, desde a pré-história, e uma coleção de Arte Sacra.

O Claustro do Mosteiro que agora tem a capacidade de receber 300 pessoas para eventos

Meia dúzia de passos à frente, uma outra mostra, de Manuel Cargaleiro, inaugurada em abril, 63 peças do artista, pintura, azulejaria, cerâmica. Está na mesma sala que em outubro recebeu a exposição “Grandes Mestres”, com obras de Picasso, Dalí, Paula Rego, Andy Warhol, algumas nunca haviam sido expostas, quase todas de coleções privadas. Na verdade, este espaço está preparado para ser mais do que lugar museológico, também pode ser sala de trabalho ou até quartos, cada sala está servida com casa de banho. “A ideia é ser o mais plástico possível. Gostávamos também de ter cá uma componente científica forte, com ligação à Academia, e este espaço poderá servir para isso”, refere Rui Mendes. Tudo pensado ao milímetro.

Centro cultural, educativo e até um escape room

A requalificação do Mosteiro e de toda a área envolvente custou à volta de cinco milhões de euros, a maior parte é investimento dos últimos três anos, com o apoio de fundos europeus. Falta intervir nos celeiros, no parque de estacionamento, no pombal, na eira, nas cercas e nos jardins. Os voos adivinham-se altos. Quer-se um espaço capaz de atrair 16 mil visitantes por ano até 2025. Para lá das visitas ao passado e das exposições de arte, o Mosteiro de Ancede – Centro Cultural de Baião (MACC) está a trabalhar para fazer jus ao nome. A 16 de setembro, há concerto de Pedro Abrunhosa ao ar livre, no terreiro, 600 lugares, vendidos em 33 minutos. Também estão previstos no Claustro concertos de música clássica, ópera.

Na zona museológica que fica no primeiro piso, está exposto o tríptico de Ancede, peça valiosa onde figuram três santos importantes para o concelho: São Bartolomeu, padroeiro da vila de Baião, Santo André de Ancede e Santo António

Não fica por aqui. Querem apostar na vertente pedagógica, ainda há semanas houve uma atividade com dezenas de crianças de escolas do concelho em torno de jogos tradicionais – e já têm sido procurados por escolas de outros pontos do país. Os planos multiplicam-se em mil e uma ideias. E, verdade seja dita, quase tudo ali é possível. A começar pela criação de um jantar histórico interpretativo e a acabar num escape room no Mosteiro. Sim, um escape room. Está tudo a ser pensado, preparado, sonhado.

O Mosteiro de Ancede foi sempre centro gerador de vida em Baião, não só religiosa, civil, artística. O caminho agora não é diferente, é a história a repetir-se. “Queremos respeitar a característica do Mosteiro, a narrativa de um espaço religioso e de culto, mas também queremos descontextualizar um pouco. Basta ver que artistas como Andy Warhol e Picasso são provocadores. A ideia é mesmo essa, a de opor o sagrado ao profano, o culto ao vernacular. A de ter uma linguagem variada. E queremos ser referência em termos de programação cultural e artística no norte de Portugal”, assume Rui Mendes. Os sonhos estão vivos e as portas de um lugar secular estão abertas.