A violência doméstica tarda a sair do armário

Moisés tem 21 anos, o namorado não o deixava tirar a t-shirt na praia, forçava-o a ter relações, batia-lhe a toda a hora. Leonor tem 59, a parceira agrediu-a com um tronco, acordou-a à bofetada, apontou-lhe um punhal à barriga. Dinis, 53 anos, foi de mal a pior. Denunciou o ex-marido e acabou como sem-abrigo ao lado de um homem ainda mais violento. Patrícia, 25 anos, mulher trans, tem passado a vida assim. Primeiro foi o pai, depois um companheiro, a seguir outro. Todos a violentaram. À conta do estigma, as vítimas LGBTI+ são ainda mais vulneráveis. Visibilidade precisa-se.

Houve um momento, não foi há tanto tempo assim e no entanto parece uma eternidade, em que Moisés, chamemos-lhe assim, acrescentemos que tem 21 anos, quase mudou o curso desta história, quase se livrou do homem que o levou ao inferno e por lá o deixou, a agoniar em lume brando, quase teve paz. Passavam poucos meses desde que tinham começado a namorar e ido viver juntos (a partilha de casa foi quase imediata), quando o companheiro o deixou feito num oito. “Deu-me socos, puxou-me o cabelo, mandou-me a cabeça contra a parede, deu-me pontapés nas costas”, vai enumerando, como quem volta a sentir tudo outra vez. No meio daquele drama de violência extrema, soube exatamente o que tinha de fazer. “Disse-lhe para arrumar as coisas dele e sair.” Só que já o namorado estava a abalar, saiu porta fora e seguiu mais as malas, os dois num pranto, quando, do nada, volta para trás a correr, lavado em lágrimas e pedidos de desculpas, sedento por uma segunda oportunidade. Moisés fraquejou, “adorava aquele rapaz”, abriu-lhe a porta e deixou-o ficar, sabe hoje que foi “a pior coisa” que poderia ter feito. Uma semana depois, já o cenário se repetia, as agressões de todas as formas e feitios, ele noites inteiras em claro, a chorar copiosamente, incapaz de desfazer aquele nó que lhe molestava os dias e o corpo. “Às vezes, antes de me deitar, dizia-lhe ‘amanhã quero falar contigo’. Queria acabar tudo. Mas depois de manhã ele perguntava-me e eu dizia que não era nada.”

Ainda por cima, quem diria, a vida pode ser tão cármica e ingrata, foi ele, Moisés, a salvá-lo de um pesadelo de contornos muito semelhantes. “Fui eu que o tirei de casa, porque o pai batia nele todos os dias, mandava-me áudios a chorar. Uma vez foi passar um fim de semana a minha casa e acabou por ficar.” No início, era “super fofo, carinhoso, simpático”, dava-lhe tanta atenção que o fazia sentir-se o centro do mundo. “Deixei-me levar”, reconhece Moisés, a voz vai fraquejando aqui e ali, “estou a tentar não chorar”, diz, nem era preciso, o esforço é por demais evidente. Meses depois, começava a violência verbal. “Estava sentado no computador e, não sei o que é que lhe dava na cabeça, começava a tratar-me mal. ‘Não sei o que é que estás para aí a fazer, tu não prestas, tu és um merdas, tu não fazes nada por mim.’ Eu dizia-lhe: ‘Vais parar com isso? Estás-me a magoar.’ Muitas vezes começava a chorar. Ele ainda dizia: ‘Chora, bebezinho da mamã, chora.’” E no entanto sabia que o tema da mãe de Moisés era sensível, que ela o abandonou aos 14 anos numa instituição, que a relação nunca foi famosa. Semanas depois, começou a dar-lhe umas chapadas “devagar”, “acho que me estava a testar, mas eu sou incapaz de levantar a mão a alguém”. Daí até às agressões violentas foi um pequeno passo.

Mesmo que fosse Moisés a financiá-lo, o companheiro não mexia uma palha, era ele que todos os dias lhe deixava dinheiro para o tabaco, para a droga que fumava, para tudo. E ainda fazia questão de lhe dar sempre mais qualquer coisa, o amor, ou a ilusão dele, pode ser cego, surdo, insano. “Todos os dias lhe levava um miminho, ou escrevia uma carta, ou lhe levava uma rosa, ele no início agradecia e ficava muito contente, mas depois já só dizia ‘deixa aí que eu já vejo’.” A tormenta não acabava aqui. Se iam à praia, por exemplo, não o deixava tirar a camisola. “Porque tenho o corpo um bocado bombado e não queria que ninguém visse. Mas ele podia andar de calção à vontade.” Moisés sentia-se de tal forma angustiado por se ver naquele papel que, por vezes, quando ia à água, aproveitava para chorar disfarçadamente. E o namorado ainda lhe dizia: ‘Se chorares, quando chegares a casa apanhas.’ Já para não falar nas vezes em que chegava a casa exausto, ao fim de um dia longo de trabalho, e ele o forçava a ter relações. “Porque senão já estava a apanhar.”

Foram meses e meses assim, ele bem que pensava que tinha de pôr cobro àquilo com urgência, mas tardou a ganhar coragem para o fazer, ainda para mais não tinha apoio familiar e a rede de amigos era comum. “Tanto que ficaram todos do lado dele.” O terror terminou por fim quando Moisés chegou ao limitar das forças, “estava cansado, já tinha visto muita coisa”, disse-lhe que queria acabar porque assim não valia a pena. Ele reagiu com sublime indiferença, tirou o anel, atirou-o para o meio da rua, “ok, então xau” e foi embora com a mesma pressa com que um dia chegou. Recordar esse dia ainda lhe faz doer o fundo da alma, a voz volta a titubear, “até hoje mexe comigo”, admite, derrotado. Foi só então que ligou para a linha 144 (Linha Nacional de Emergência Social). Mesmo que há muito soubesse da existência dela. Hoje, no recato de uma casa-abrigo, luta para recuperar o brilho e sair de um lugar onde já não esperava voltar. “Eu sofro de ansiedade e depressão há muito tempo. Quando o conheci, estava no fundo do poço e levantei-me. Agora, ele conseguiu pôr-me ainda mais para baixo. Mas aqui estão a ajudar-me. Pelo menos a recuperar um pouco da minha autoestima.”

Moisés é uma de milhares de vítimas de violência doméstica em Portugal. Por ser homossexual, não é, contudo, a face mais visível ou óbvia do fenómeno. Aliás, neste domínio, apontam as associações que trabalham de perto com vítimas LGBTI+, há uma certa “invisibilidade” que tende a perpetuar-se. E que é tanto mais preocupante quanto falamos de vítimas particularmente expostas. Sofia Neves, investigadora do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género do ISCSP (Universidade de Lisboa) e presidente da associação Plano i, explica porquê. “A sua particular vulnerabilidade resulta do facto de vivermos ainda num regime homofóbico, bifóbico, transfóbico e interfóbico, que segrega e exclui as pessoas em função da sua orientação sexual, identidade e expressão de género ou características sexuais.” E que por sua vez se traduz numa série de especificidades que caracterizam a história destas vítimas.

A investigadora avança com exemplos práticos. “A revelação de uma situação de violência doméstica contra pessoas LGBTI+ implica que, muitas vezes, as vítimas tenham que expor a sua pertença à comunidade, o que as pode deixar mais vulneráveis à opressão e discriminação. Cientes deste facto, as pessoas agressoras recorrem a estratégias de intimidação, ameaçando as vítimas de que, caso elas denunciem a violência sofrida, a sua orientação sexual, identidade de género ou características sexuais serão tornadas públicas. Para o evitar, as vítimas tendem a manter-se nas relações abusivas, não as denunciando.” As agravantes não ficam por aqui. “Adicionalmente, as vítimas resistem em procurar apoio especializado e, quando o fazem, são confrontadas, não raramente, com estereótipos e preconceitos.”

Carlos Oliveira, psicólogo do projeto Bússola, gabinete de apoio à comunidade LGBTI+ situado na Casa do Povo de Fermentões (Guimarães), também enfatiza este ponto. “Uma questão relativamente comum [entre as pessoas que atende] tem sido o medo de apresentar queixa às forças de segurança ou de recorrer aos serviços de saúde, medo de a pessoa se expor e não ser compreendida. E infelizmente chegam-nos relatos assustadores, de situações em que, nos próprios serviços de saúde, as vítimas veem a sua identidade de género questionada.” Relatos que ensombram ainda mais um passo já naturalmente difícil. “Denunciar uma situação destas implica, no fundo, duas saídas do armário. Porque as pessoas têm que dizer ‘eu sou vítima de violência doméstica’ e ‘eu sou gay, lésbica, trans’.” Por isso, apesar de vários estudos internacionais apontarem para que a prevalência da violência doméstica exercida sobre pessoas LGBTI+ seja muito semelhante à da população no geral, é certo que o número de situações que ficam por denunciar é ainda maior no seio desta comunidade. A tal invisibilidade de que as associações falam. E que salta à vista até nas estatísticas nacionais, onde não há qualquer referência à orientação sexual ou a identidade de género das vítimas.

Mas voltemos às especificidades. Ana Teles, coordenadora executiva da única casa de acolhimento de emergência de pessoas LGBTI+ que integra a Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica (RNAVVD), identifica vários pontos em comum entre as vítimas que por lá vão passando. “Antes de mais, o estado em que as pessoas nos chegam, de desconfiar de tudo e de todos, porque não estão habituadas a ter um porto seguro. Porque para qualquer lado que se virem são insultadas, são isoladas, não são vistas como pessoas que são, vêm sempre com um sentimento de muita restrição.” A responsável pela Casa Arco-Íris, uma estrutura da associação Plano i, refere ainda o facto de receberem cada vez mais vítimas com patologias associadas. “Transtorno de personalidade borderline, casos de depressão, perturbação de identidade, o que, não raras vezes, está relacionado com situações de repressão, de isolamento, de terem de se esconder, por vezes até de si próprias, porque os pais não aceitam e têm de namorar às escondidas.” E aqui, na tentativa de escaparem da intolerância que grassa no seio da própria família, acabam por se tornar excessivamente dependentes das pessoas com quem mantêm relações de intimidade, desde logo pela inexistência de uma rede de apoio, que as possa amparar quando se veem no papel de vítimas.

“Foram muitas, qual delas a mais feia”

Leonor (nome fictício, como o das restantes vítimas citadas nestas linhas), 59 anos, sabe demasiado bem o que é ser proscrita pela própria família. “Eles sempre souberam, desde pequena que só chamava pelas meninas, só levava meninas para casa, mas nunca aceitaram.” Chegaram (a mãe mais um tio) a bater-lhe com tanta força que a deixaram em coma, garante. “Fizeram-me isso duas vezes. Não deixei que fizessem a terceira. Disse-lhes mesmo: ‘Vocês não me vão matar.’” E assim, aos 18 anos, bateu com a porta, determinada a lutar por uma vida melhor. “Nem um saco com roupa me deixaram levar.” Dormiu ao relento, esperou pela manhã para ir buscar o que lhe era devido na fábrica de bolos em que trabalhava e seguiu até ao Algarve, à boleia. Por lá, conheceu um casal de italianos com quem travou amizade, ao ponto de seguir com eles para Bari, para tomar conta dos garotos. Depois, tratou de uma idosa com Alzheimer, foi apanhar fruta para a região de Champagne, em França, de lá seguiu para Barcelona e daí rumou a Lérida, para voltar a trabalhar nos campos, esta história dava um filme e ainda nem a meio vai. Ali, no nordeste de Espanha, não muito longe de Andorra, ficou uns quantos anos, fez um bocado de tudo, estabeleceu uma relação de amizade com a família que a acolheu, tudo ia correndo bem quando um brutal acidente de mota a deixou “politraumatizada”, acabou nove meses ao cuidado das freiras, num convento de Toledo. “Como indigente”, esclarece.

Foi lá que conheceu a primeira companheira, também ela tinha uma história do arco da velha, mudaram-se as duas para Portugal, foram viver para os arredores de Lisboa, estabilizaram. Pelo meio, conheceu outra pessoa, jura que ainda resistiu, mas numa noite cedeu e já não se largaram, foram dois anos felizes até que ela faleceu de súbito, por conta de um aneurisma. Desfeita, despediu-se, inscreveu-se numa empresa de trabalho temporário, acabou em Peniche, onde haveria de conhecer a mulher que lhe voltou a mergulhar a vida numa espiral de violência. “Na altura, ela tinha uma relação há 15 anos, devia ter visto logo, percebi demasiado tarde o tipo de pessoa que era.” Juntaram-se logo logo, primeiro “não correu mal”, depois Leonor teve cancro nos rins e, a partir daí, foi tudo a descambar. “A violência começou por causa do dinheiro. Porque aquilo era uma senhora que precisava de muito dinheiro para viver. Eram 2000 euros para um fim de semana fora, era trocar de carro quatro vezes ao ano. Batia muito na mãe para conseguir o dinheiro que queria e eu não conseguia não fazer nada. Punha-me à frente e dizia-lhe para bater em alguém do tamanho dela.” Mas de pouco servia.

A partir daí foi sempre a escalar, já tudo era pretexto. “Uma vez levou-me para o pinhal e desatou a bater-me com um tronco. Outras vezes, acordava à bofetada, eu já nem sentia. Chegou a pegar num punhal e a pô-lo à frente da minha barriga. Foram muitas, muitas vezes, qual delas a mais feia. ” Leonor até era bem mais encorpada que ela, ao nível da força nem se fala. “Mas eu nunca lhe pus a mão. Porque ela fazia aquilo, mas dizia que tinha um problema [de saúde mental], que era inimputável. Eu, com o meu tamanho, se lhe pusesse a mão desfazia-a e ainda acabava presa.” Encurralada neste abismo, chegou a tentar o suicídio. Depois, ainda viu a companheira pô-la na rua (e arrepender-se pouco depois), antes de ela decidir acabar com aquilo de vez. “Já tinha fobia, já tremia, já não aguentava mais.” Voltou à rua e à apanha da fruta, acabou por dirigir-se a um gabinete de apoio para vítimas de violência doméstica e daí foi encaminhada para uma casa-abrigo. Entretanto, arranjou um “trabalhito”, está a tentar autonomizar-se, aguarda que o julgamento por violência doméstica se desenrole. E, apesar dos golpes que a tombaram uma e outra vez, insiste em não baixar os braços. “Já passei por tantas e ainda cá estou. Por alguma razão há de ser.”

Sara Malcato, psicóloga da ILGA Portugal, ressalva que a maior parte dos relatos de violência doméstica que lhes chegam não são casos de violência na intimidade, mas mais “intrafamiliar”. “Normalmente de ascendentes para com descendentes, sobretudo com menores, mas não só, pais que não aceitam a orientação sexual ou a identidade dos filhos, violência psicológica, desde confiscarem-lhes os telemóveis a privarem-nos das redes de amizades que identificam como ‘responsáveis’. Estalos, empurrões, às vezes até agressões mais violentas.” Quanto às relações de intimidade, Sara acrescenta outro fator à lista de nuances que tornam estas vítimas particularmente vulneráveis. “Há também a questão dos consumos, muitas vezes espoletados pelo estigma e a discriminação de que são vítimas, o que por sua vez aumenta a probabilidade de haver violência.” Com ou sem eles, é certo que os efeitos da violência doméstica são dramáticos. E que se exponenciam na população LGBTI+. “A curto prazo, temos a culpabilização da própria pessoa, a ideia de que faz alguma coisa que desencadeia na outra a violência, a autoestima completamente arrasada. Temos que ter em conta que estas pessoas são, ao longo da vida, vítimas de muitas outras violências, uma desvalorização grande, há uma degradação grande da saúde mental, muitas vezes tentativas de suicídio.”

“Cheguei aqui como morto”

Não raras vezes, dá-se até o caso de o padrão de relacionamento se perpetuar, com as vítimas a passarem de uma relação violenta e abusiva para uma outra com os mesmos contornos. Foi o que aconteceu com Dinis, de 53 anos. A ligação familiar perdeu-se faz muito tempo, encontrou a mãe com outro homem e nunca mais lhe perdoou, o pai não acreditou nele, o irmão não aguentou tudo aquilo e suicidou-se. Dinis tentou seguir a vida dele, aos solavancos pois, emigrou para França em busca de dias melhores. Por lá conheceu o primeiro companheiro, foram casados e tudo, durante o namoro era “uma pessoa simpática, boa”, mas depois perdeu o emprego, começou a beber, foi sempre a piorar. Tratava-o mal, batia-lhe, obrigava-o a dar-lhe dinheiro. “Todos os dias tinha de deixar dez euros e um maço de tabaco. Se não deixasse batia-me. E eu deixava porque tinha medo dele.” Mesmo assim, não se livrava das agressões. Ora lhe dava socos e pontapés, ora lhe mordia “a cara toda” (ainda hoje tem as marcas), ora o atirava ao chão. “E como tenho ataques epiléticos e poucas defesas era fácil atirar-me ao chão.” O inferno durou ano e meio. Dinis já só pensava em livrar-se daquilo, mas nem sequer sabia o francês mínimo para apresentar queixa. Sugeriu então que se mudassem para Portugal, por um lado deixaria de ter a barreira de língua, por outro ainda lhe restava uma esperança de que cá, perto da família, ele mudasse. Mas não. Dois ou três dias depois, as agressões repetiram-se, desta vez ele não hesitou, apresentou queixa, a polícia levou-o, ficou com pulseira eletrónica, acabariam por se divorciar lá para 2016.

Sem casa nem uma retaguarda familiar, decidiu rumar a Évora, a terra onde cresceu. Mesmo que não tivesse onde dormir. “Andei como sem-abrigo.” E ao tentar livrar-se de um martírio, meteu-se noutro, ainda mais brutal. “Conhecemo-nos na rua, ele também era sem-abrigo, mas apercebeu-se que eu recebia o rendimento mínimo e começou-me a ficar com o dinheiro todo para comprar cerveja.” E o pior nem era isso. Era ele obrigá-lo a ir pedir esmola para a porta da Igreja, era bater-lhe violentamente, “bem pior que o anterior”. Andou assim quatro anos, garante que pediu ajuda a tudo o que era instituições em Évora, mas de nada lhe valeu. “Cheguei a pensar em matar-me. Mas sou católico e nesses momentos havia uma luz muito forte que me mantinha vivo.” Até que um dia, já lá vão uns tempos, chegou à Cruz Vermelha pejado de ferimentos, quase irreconhecível, e viu, por fim, a luz ao fundo do túnel. A técnica que o atendeu tratou-lhe da queixa, reencaminhou-o para uma casa-abrigo (onde ainda hoje está), deu-lhe enfim um motivo para voltar a respirar de alívio. “Cheguei aqui como morto, os olhos todos roxos, ele batia-me mesmo a sério.”

Rita Paulos, diretora executiva da Casa Qui, lembra que há vários cenários que acabam por dificultar ainda a mais a vida destas vítimas. “Por um lado, quando as pessoas ainda não estão assumidas e têm uma rede de suporte mais fraca para poderem falar e pedir ajuda, o único suporte acaba por ser o companheiro, o que se traduz num isolamento maior. Depois, quando as pessoas já estão assumidas, há outros aspetos que ajudam a perpetuar as situações, como a baixa autoestima, a falta de recursos e competências que poderiam ter se não tivessem sobre elas o peso do estigma, de alguma forma o medo de ficarem sozinhas. E depois há o medo de que, ao pedirem ajuda, haja uma revitimização ou se deparem com situações de falta de ética ou de sensibilidade. Há muito a ideia de que em relações homossexuais não há violência doméstica porque é uma relação ‘entre iguais’. É um mito que é preciso desconstruir. E ainda há pessoas que não denunciam porque não querem contribuir para um maior estigma relativamente à população LGBTI+. Tudo isto conduz a uma maior dificuldade em pedir ajuda.” Dentro desta particular vulnerabilidade, os estudos vão apontando para que as pessoas trans se encontrem numa posição ainda mais frágil.

De agressor em agressor

A história de Patrícia, mulher trans de 25 anos, ajuda a perceber porquê. Logo aos cinco anos, começou a sentir-se alheia ao próprio corpo, olhava-se ao espelho e via que algo “não batia certo”. Só que a família nunca aceitou, ainda por cima cresceu numa aldeia, o pai era alcoólico e sempre foi muito preconceituoso, era vítima de violência em casa e na escola, acabaram por a expulsar de casa era ela uma garota de 16 anos. Na altura, tinha amigas em Lisboa, apressou-se a ir ter com elas, mas era preciso sobreviver de alguma forma, não viu alternativa ao trabalho sexual. Foi assim durante dois anos, vivia numa casa partilhada, ambicionava juntar algum dinheiro para endireitar a vida. Com 18 anos, começou a namorar, se é que se podia chamar àquilo um namoro, foram anos de uma relação abusiva e violência psicológica extrema. “Privava-me de estar com os meus amigos, de sair à rua, obrigava-me a estar trancada.” E sim, as constantes humilhações a que estava sujeita também passavam pela sua identidade de género. “Estava sempre a rebaixar-me por causa disso, chamava-me atrasada mental, não me deixava fazer a transição, até me tirou a certidão de nascimento para não a poder fazer.” De tanto ser pisada, Patrícia começou a acreditar naquilo, que não valia nada, que era atrasada mental, começou a odiar-se por isso. Foram cinco anos assim. Por um lado gostava dele, por outro tinha medo de ficar na rua, ainda por cima tinha sido ele a arrancá-la ao trabalho sexual e não queria voltar nem por nada. Até que por fim ganhou coragem, pediu ajuda, foi para a Casa Arco-Íris, teve apoio psicológico e legal (para fazer queixa), arrancou a transição, começou até a estudar. “Foi uma reviravolta.”

Esteve lá nove meses, depois teve de sair, prosseguiu com os estudos, tudo parecia encaminhado, mas foi sol de pouca dura. “Conheci um rapaz que me trocou um pouco as voltas. Ele também andava na prostituição, eu voltei a essa vida para o ajudar, às tantas afundei-me, ele foi-se embora, deixou-me sozinha e sem amizades. Cheguei a tentar o suicídio.” Desamparada, sem saber para onde se virar, ainda tentou voltar para Lisboa, para casa de um “amigo”, um rapaz que conhecia há muito tempo, mas também aí as coisas “descambaram”, ele tinha problemas com drogas, ela pagava o quarto e ele exigia-lhe cada vez mais dinheiro, ameaçava-a, certo dia ela teve um ataque epilético e ele violou-a, queimou-a, roubou-a, por fim abandonou-a. “Se não fosse a porta ter ficado aberta e o vizinho ter saído, não estava cá hoje.” Mas está. E fez queixa. E voltou para a instituição. E até regressou aos estudos. E jura que só os quer acabar. Para recomeçar. Mesmo que os traumas fiquem “para sempre”.

É também para que a sociedade esteja mais alerta para histórias como a de Patrícia que Rita Paulos, da Casa Qui, insiste neste ponto. “É preciso dar visibilidade a este problema. E para isso é preciso desconstruir os estereótipos de género, de que a violência doméstica passa por um homem a bater numa mulher. É claro que há mais homens a bater em mulheres, porque ainda se banaliza a violência nos rapazes, ainda se ensina que podem ser dominantes. Mas é preciso preparar as pessoas que estão nos atendimentos, nos serviços especializados de primeira linha, isso tem sido feito, mas ainda vai levar muito tempo.” E deixa uma questão, em jeito de desafio. “Normalmente, nas campanhas de violência doméstica, vemos um vídeo de uma mulher vítima, as mãos de um homem. E eu pergunto: ‘Porque não um casal de homens, um casal de mulheres? Nunca houve uma campanha assim por parte do Estado.’”

Manuel Albano, vice-presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), lembra que, na última campanha da CIG, já não se vê um homem a bater numa mulher, antes um homem e uma mulher, ambos com marcas visíveis de agressões, numa tentativa de mostrar que todos podem ser vítimas, de fomentar “a noção de que a violência não tem género”. Lembra também que as associações recebem verbas para executar campanhas, que “é assim que se faz cidadania”, que nestas questões “não há polos opostos, há polos que têm de se complementar”.

De resto, vinca que o contexto de intervenção junto de pessoas LGBTI+ vítimas de violência doméstica “começou a ser trabalhado há cerca de uma década, quando se percebeu que era uma realidade”. “Não devíamos ter necessidade de o tratar como um problema particular, mas o que é certo é que sabemos que não é assim. E portanto temos tentado dar respostas específicas, produzido orientações técnicas, trabalhado com organizações para apoiar a criação de estruturas de apoio, sobretudo através dos fundos comunitários.” E por falar em estruturas de apoio, uma única casa abrigo de emergência para pessoas LGBTI+ integrada na rede é suficiente? As associações garantem que não. “Suficiente não é, pelo nível de procura que tem existido”, reconhece Manuel Albano. “Mas também é preciso realçar que ninguém ficou por acolher por causa disso, pelo menos que tenha sido do nosso conhecimento. Quando assim é, as pessoas acabam por ser encaminhadas para outras estruturas.”

Ainda assim, parece claro que há ainda um longo caminho pela frente. Sofia Neves, investigadora e presidente da Plano i, diz por onde ele deve passar. “A educação pode ser uma importante ferramenta de mudança social e a aposta terá que ser na promoção dos Direitos Humanos e da Igualdade desde idades precoces. A qualidade do atendimento prestado às vítimas de violência doméstica LGBTI+ só poderá ser assegurada se aos e às profissionais que com elas trabalham for dada formação especializada. Para além disso, é fundamental dotar os serviços de recursos humanos empáticos e com sentido crítico.” Para que o estigma não continue a deixar as vítimas trancadas num armário de sufoco e opressão.

O que fazer

Se foi ou é vítima de violência doméstica, deve dirigir-se a uma esquadra da Polícia de Segurança Pública (PSP), posto da Guarda Nacional Republicana (GNR), piquete da Polícia Judiciária (PJ) ou diretamente junto dos Serviços do Ministério Público para apresentar queixa criminal e exigir um documento comprovativo da queixa ou denúncia. A queixa pode igualmente ser apresentada por via eletrónica, através de https://queixaselectronicas.mai.gov.pt/.

Serviços de apoio à vítima LGBTI+
Centro Gis (associação Plano i) – 966 090 117
Gabinete de Apoio à Vítima para Juventude LGBTI (Casa Qui) – 960 081 111
ILGA Portugal – 218 873 918 / 969 367 005
Projeto Bússola (Casa do Povo de Fermentões) – 915 986 853

Contactos úteis
Linha Telefónica de Informação às Vítimas de Violência Doméstica (24 horas por dia) – 800 202 148
Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (dias úteis, das 8h às 22) – 116 008
Linha Nacional de Emergência Social – 144