O dia a dia dos repórteres de guerra

Move-os a vontade de ir para onde a notícia está, de contar o mundo real, as histórias dos civis inocentes apanhados no meio dos conflitos mais sangrentos. Nalguns casos, também a iminência do perigo, uma certa adrenalina. Lá, vivem situações-limite, tiroteios, bombas, raptos, armas apontadas, mísseis a rebentar ali tão perto. E as imagens ficam, impossíveis de apagar, cicatrizes incuráveis, há até quem sofra de stress pós-traumático. Mas a experiência também lhes dá uma nova perspetiva da vida. As histórias de quem viaja aos meandros da guerra. Para que a possamos ver, ouvir, sentir.

Jan Grarup circulava de carro pelas ruas de Bakhmut (extremo este da Ucrânia), na última véspera de Natal, quando foi dar com um camião a arder e um homem morto lá dentro. Soube logo que tinha de captar aquele momento, por mero acaso decidiu seguir e estacionar mais adiante, com a intenção de voltar a pé e fotografar. Nisto, cruzam-se – ele e o “manager” que o acompanha – com um outro carro que segue na direção do camião incandescente, está tudo aparentemente sereno, mas do nada um estrondo monumental rasga o ar, o veículo que ainda há segundos estava ali ao lado intacto é atingido em cheio a apenas 50 metros deles, explode violentamente, fica feito em nada. “Se tivéssemos parado logo o carro ali, como normalmente fazemos, tínhamos sido nós.” Jan partilha o episódio com aparente ligeireza, parece não lhe atribuir demasiada importância, o que diz a seguir de alguma forma ajuda a perceber porquê. “Isto acontece frequentemente. Quando nos movemos na linha da frente de uma guerra, e como fotógrafos nós temos de estar na linha da frente para poder documentar o que está a acontecer, o risco é permanente.”

Há, no entanto, lugares onde a morte se insinua com particular veemência. “A atual guerra na Ucrânia [onde já passou mais de 140 dias] é extremamente perigosa, os bombardeamentos são incrivelmente violentos aonde quer que se vá. Mas também me lembro da libertação de Mossul [cidade iraquiana que foi libertada do jugo do Estado Islâmico em 2017], que foi extremamente perigosa porque era uma guerra aberta e havia combatentes islâmicos em todo o lado. Do cerco a Sarajevo [que durou de 1992 e 1996], em que estávamos constantemente a ser bombardeados pelos sérvios. Ou dos conflitos em África, onde nunca sabemos exatamente o que está a acontecer, porque há várias fações militares que podem atacar em qualquer sítio, a qualquer momento.” O reputado fotojornalista dinamarquês, que trabalha como freelancer, dá como exemplo o conflito na Serra Leoa (1991-2002), onde perdeu um colega que trabalhava para a BBC. “Foi morto numa emboscada na estrada, durante uma viagem em que era suposto eu ter ido.” E assim escapou, tem escapado sempre, nunca se feriu com gravidade sequer. “Mas já tive armas apontadas a mim em várias ocasiões, fui raptado umas quantas vezes e preso ainda mais vezes.”

Jan Grarup, fotojornalista dinamarquês, cobre guerras há 35 anos
(Foto: DR)

De alguma forma, habituou-se a viver com a sensação de risco iminente. “O perigo não é uma linha reta, não há propriamente uma ficha técnica, as coisas podem acontecer em todo o lado, a qualquer hora.” Com o medo também. “É uma constante e é muito importante que o tenhamos, porque no momento em que nos tornamos desleixados é quando tudo fica mais perigoso. Sendo que todos nós reagimos a coisas diferentes. Há colegas que se assustam mais quando há bombardeamentos ou tiroteios, outros temem mais o silêncio. É o meu caso. Se entramos numa aldeia em que não se vê ninguém, em que não há um cão na estrada, não há uma pessoa na varanda, para mim isso é sempre sinal de que algo está totalmente errado ali. Para mim o silêncio é pior do que o ruído da batalha.” Jan sabe bem do que fala. Há 35 anos que corre tudo o que é cenário de guerra, confessa que já lhes perdeu a conta, a ter de avançar com uma estimativa aponta para os 40, eventualmente 50. Pelo meio, ganhou uma lista infindável de prémios, só distinções da World Press Photo foram oito.

Dir-se-ia que a obstinação de ser fotógrafo de guerra esteve lá desde o princípio. Mas não. “Na verdade, aconteceu por acidente”, atira, desconcertante. Desde cedo que se interessou por cidades divididas em nome de questões políticas ou religiosas, a cidade de Berlim antes da queda do Muro, por exemplo, era para ele um fascínio absoluto. Em 1987, estava em Belfast a cobrir o funeral de um grupo de terroristas do IRA quando o cortejo fúnebre foi atacado pelos protestantes. Houve tiros, granadas, um caos, e ele ali, um perfeito miúdo, a fotografar tudo. “Foi o início do meu trabalho.” O acaso repetiu-se dois anos depois, quando andava a acompanhar as revoluções na Europa do Leste e viajou para a Roménia, onde acompanhou a par e passo a sangrenta queda de Nicolae Ceausescu. “E também fotografei tudo. Depois veio a guerra nos Balcãs, a primeira Guerra do Golfo, a guerra na Chechénia, na Bósnia, e de repente estava a cobrir todos estes conflitos à volta do Mundo. Mas nunca comecei com esse objetivo. Aconteceu.”

Autorretrato que Jan Grarup fez quando esteve hospitalizado, na sequência de uma bactéria apanhada durante uma estadia em África
(Foto: DR)

Tantas e tantas guerras depois, e com um diagnóstico de perturbação de stress pós-traumático pelo meio, que o obriga a fazer medicação diária, não perde de vista o foco que o fez seguir este caminho, há mais de três décadas. “Sempre achei que era importante contar a história das populações civis que são apanhadas no meio de um conflito armado. O meu foco sempre foi esse. Olhando para a guerra na Ucrânia, por exemplo, percebemos que há uma estratégia da Rússia que é atingir deliberadamente civis e áreas residenciais para aterrorizar a população civil. Por isso é que para mim é tão importante cobrir este conflito [acaba até de lançar um livro sobre o mesmo, intitulado “While we bleed”].” Uma necessidade que se exponencia também no caso da Faixa de Gaza. “Há tanta propaganda de um lado e de outro que é fundamental ter alguém no meio que possa ver com os próprios olhos e contar aquilo que vê. Estive lá em 2009, numa altura de guerra, e foi brutal. Desta vez parece-me dez vezes pior. Só que agora os jornalistas não estão autorizados a entrar, e percebe-se porquê, seria devastador para o Estado de Israel. São milhares de mortos, uma grande parte deles crianças, é de uma brutalidade atroz.”

Para Jason Burke, correspondente estrangeiro do “The Guardian” há mais de 25 anos, o fascínio deste trabalho é, foi sempre este, contar às pessoas aquilo que vê, partilhar com o mundo os acontecimentos e desenvolvimentos inerentes a cada conflito. “Desde cedo que tive um interesse particular por lugares como o Afeganistão, o Paquistão, a Índia, o Médio Oriente no geral, pareceram-me sempre lugares mais intelectualmente desafiantes e gratificantes para fazer o meu trabalho, o que acho que também teve a ver com os eventos a que estive exposto enquanto crescia. Foram tempos de grande violência no Médio Oriente, da guerra no Afeganistão, no Líbano, entre outras. E eu sempre me interessei muito por notícias e por História.” Por isso, aos 28 anos, deixou o jornal londrino em que trabalhava para ir como freelancer para o Paquistão. Três anos depois, começava a colaboração com o “The Observer” (jornal dominical associado ao “The Guardian”) e, uma década mais tarde, com o próprio “The Guardian”. Desde então, já cobriu conflitos no Afeganistão, no Paquistão, na Serra Leoa, no Iraque, na República Democrática do Congo, em Gaza e em Israel, onde voltou agora, para cobrir a mais recente vaga do conflito israelo-palestiniano. Ressalva, no entanto, que não gosta dos termos “correspondente de guerra” ou “repórter de guerra”. E explica porquê. “Acho que têm subjacente um certo glamour que nos distrai do mais importante, que é o jornalismo. Para mim, importante é perceber o conflito nas suas circunstâncias, o seu contexto económico e social. Chamar a isso correspondente de guerra parece-me redutor e acho que distorce aquilo que realmente deve ser o nosso trabalho.”

Jason Burke é correspondente estrangeiro do “The Guardian” há mais de 25 anos. A foto foi tirada na semana passada, em Gaza, onde esteve com as forças israelitas
(Foto: DR)

Quanto ao medo, tem uma visão distinta. “A ideia é não chegar a estar assustado, é planear as coisas de forma a conseguir fazer a melhor reportagem possível, com um grau de risco aceitável. Se chegamos a um ponto em que estamos realmente assustados, das duas uma: ou fizemos algo de errado ou fomos extremamente infelizes.” Ainda assim, reconhece que já deu por ele em situações bem difíceis. “Quando estive no Iraque em 2005, por exemplo, foi extremamente perigoso. Já passei por vários incidentes em que estive perto de morrer. Nós fazemos sempre uma avaliação dos riscos, mas, se vamos por um mês, tudo depende do que acontece no terreno, as coisas vão mudando, uma estrada perfeitamente segura num dia pode já não o ser no dia seguinte, a pessoa que nos protegia de manhã pode já não nos conseguir proteger à tarde. Temos de confiar nos nossos instintos, nos nossos colegas, nos fixers.” Os fixers, hoje considerados essenciais neste tipo de contexto, são pessoas, eventualmente jornalistas locais, contratadas para ajudar os correspondentes estrangeiros a fazer o seu trabalho. Acompanham a equipa de reportagem quase em permanência, desbloqueiam o acesso a possíveis histórias, atuam como intérprete, tratam da logística, e, no caso de um cenário de guerra, procuram minimizar os riscos (sugerindo trajetos aparentemente mais seguros, por exemplo). “Mas há sempre alturas em que as coisas podem correr mal”, admite Jason.

“Gastámos uma vida na Ucrânia”

Paulo Jerónimo, jornalista da RTP que está neste momento em Israel, acompanhado pelo repórter de imagem José Pinto Dias (cujo nome faz questão de referir, porque “é sempre um trabalho de equipa”), percebeu-o de forma muito crua quando um estrondo monumental lhe sacudiu abruptamente o sono, deixando um rasto de destruição em redor. O quadro que estava pendurado na parede despedaçou-se, as janelas ficaram destruídas, as paredes rebentadas, até a porta do quarto de hotel voou com a pujança do impacto. Foi no início de outubro, em Kharkiv, na Ucrânia, onde se encontravam ambos a fazer reportagem. “Sobrevivemos a um míssil iskander, com sete metros de comprimento, que atinge seis vezes a velocidade do som. Quando saímos do hotel, percebemos que tinha rebentado a 30 metros de nós, a unidade hoteleira onde estávamos ficou destruída, bem como tudo à volta, num raio de dois quilómetros.” É certo que escapou ileso, “o Zé teve ferimentos ligeiros”, mas a sensação da morte a passar de raspão deu-lhe que pensar. “Costuma-se dizer que os gatos têm sete vidas, nós gastámos uma na Ucrânia. Senti que renasci nesse dia.” Antes, ao longo das últimas três décadas, até já tinha trabalhado noutros cenários de guerra. Em Timor-Leste, em Angola, no Kosovo, mesmo na Ucrânia já tinha estado outras cinco vezes, com umas quantas peripécias pelo meio, mas nada similar ao que viveu em Kharkiv. “Não me lembro de nenhuma que me tenha marcado tanto como esta, de sentir isto de ‘no jogo da vida, gastei aqui uma’.”

Paulo Jerónimo, jornalista da RTP, encontra-se neste momento em Israel. Esta foto foi feita precisamente junto à Faixa de Gaza
(Foto: José Pinto Dias)

Embora, lá está, o risco esteja sempre presente. “Não se sente pressão, mas há sempre um certo receio e a adrenalina dispara. É preciso manter sempre a lucidez para conseguir ter um posicionamento de autodefesa, ter a noção de que há linhas que não podemos transpor. Queremos sempre fazer o melhor trabalho possível, mas isso não significa que tenhamos de perder a vida. É um receio que nos faz estar alerta. Porque nenhum de nós é o Rambo. Quando não se tem medo nenhum está na hora de voltar para casa.” Com o tempo, também há pequenos truques que se vão aprendendo. “Temos de andar sempre muito atentos na rua para anteciparmos possíveis situações perigosas. E nalguns casos constantemente com os olhos no céu. Ter um bom fixer também é muito importante. Depois, no meu caso, fui criando outros hábitos. Quando vou dormir, deixo sempre o colete numa dada posição, o capacete, a mochila, a bolsa com os documentos, tudo à mão, para a eventualidade de ter de sair à pressa. Quando viajamos de carro em locais mais perigosos tento ter algo entre mim e a porta, nem que seja uma mochila. Quando ficamos hospedados em hotéis, tentamos ficar sempre nos andares mais baixos, saber onde é o abrigo mais próximo, estabelecer rotas para o caso de algo acontecer. Além de andar sempre com água, barras energéticas e um mapa em papel porque nunca sabemos quando podemos ficar sem rede e perder o GPS.” E a família, perdoa a angústia de o saber longe, lá onde a guerra acontece? “Perdoa. Claro que se preocupam, dizem-me para ter cuidado, mas sabem que é o que me faz ser feliz, o que me faz ter o gosto de me levantar.” E nisto Paulo, que nos fala a partir de Telavive, interrompe a conversa de súbito, pede desculpa, explica que as sirenes dispararam e que terá de desligar. Minutos depois, liga de volta, desculpa-se outra vez, diz que houve duas explosões algures nas redondezas, mas que “já passou”. E di-lo com uma descontração que desconcerta. “Tem de ser, tem de se encarar assim.”

Paulo Jerónimo nas trincheiras, em Zaporíjia, na Ucrânia, onde também esteve
(Foto: José Pinto Dias)

Dora Pires, experiente jornalista da TSF que chegou recentemente de Israel e já traz uns quantos cenários de guerra na bagagem (Guiné-Bissau, Iraque, Gaza, Angola, Timor), admite que “a ideia de ir é sempre mais forte do que os argumentos para ficar”, sendo a família o maior de todos eles. “Há sempre aquele frio na espinha provocado pela incerteza, mas a vontade de sairmos e vermos o mundo real fala mais alto porque foi por isso que quisemos ser jornalistas. E de alguma forma também há uma certa adrenalina de ir para onde o perigo está.” Sem rodeios, garante até que, por vezes, o trabalho nestes contextos chega a viciar. “Houve uma altura em que saía muito para cobrir questões internacionais, fossem conflitos, terramotos, cheias. Nunca me aconteceu vir com traumas nem precisar de ajuda, mas uns meses depois de voltar parecia que entrava em depressão, como se me tivesse acabado o combustível. Uns anos mais tarde, comecei a pensar nisso, que era uma espécie de vício.”

O quarto de hotel em Kharkiv onde Paulo Jerónimo esteve, que ficou parcialmente destruído, na sequência de um míssil que rebentou nas imediações
(Foto: José Pinto Dias)

Também ela se viu ocasionalmente em maus lençóis, note-se. E sim, foi em Israel, mas há uns quantos anos. “Na altura estava em Belém e ia fazer uma reportagem com uma organização palestiniana que fazia um bom trabalho com mulheres e crianças, que são sempre as histórias que eu gosto mais de contar. Então, dessa vez, houve um tipo israelita que disse que tinha um contacto lá, perguntou se podia ir comigo, eu disse que sim. Íamos os dois de táxi quando nos mandaram parar, nos arrancaram lá de dentro e dois miúdos com armas nos levaram para um edifício vazio.” Até hoje, Dora nunca percebeu exatamente o que aconteceu. Mas nunca deixou de se aventurar sozinha para todo o lado. Nem mesmo quando, em locais onde a tensão se sente ao longe, lhe passa pela cabeça que, se algo acontecer ali, ninguém saberá dela. E quando se volta, como se lida com as imagens duras que se colam à mente e ali ficam para sempre, mesmo em dias da mais vulgar rotina? “Não é fácil, mas a nossa vida está cheia de imagens duras, nas mais variadas circunstâncias. Também são marcas que nos ajudam a valorizar aquilo que temos de bom, o facto de vivermos numa sociedade onde as pessoas não usam armas por dá cá aquela palha, onde podemos tomar um banho quente. É tudo precioso, estar vivo torna-se mais precioso do que nunca, viver em paz também.”

José Manuel Rosendo, veterano jornalista da Antena 1, que é também correspondente da RTP em Paris, destaca este mesmo ponto. “A mim ajudou-me a relativizar muita coisa e a dar mais valor aos momentos com a família e com os amigos. Às vezes, andamos a reclamar com a pedra da calçada que está fora do sítio e esquecemo-nos que isso não vale nada. Olhando para Gaza, o simples facto de lá, neste momento, um grupo de amigos dificilmente se poder juntar para almoçar ou jantar deve fazer-nos pensar.” Sem nunca perder de vista o desígnio maior que o move desde o dia um. “É o nosso dever e a nossa missão provocar inquietação nas pessoas, retirá-las da sensação de que está tudo bem. Mostrar-lhes que têm de prestar atenção, tentar levá-las a dedicar menos tempo a coisas fúteis e a interessarem-se pelo que há de realmente importante. Pelo menos, não poderão dizer que não sabiam que aquilo estava a acontecer.”

José Manuel Rosendo, veterano jornalista da Antena 1, já cobriu inúmeros conflitos. Esta foto foi feita em Ramallah (Cisjordânia), no dia do funeral de Yasser Arafat, ex-líder da Autoridade Palestiniana
(Foto: DR)

Aos 62 anos, o jornalista radiofónico já cobriu a guerra no Iraque, no Líbano, na Faixa de Gaza, no Afeganistão, na Síria, na Líbia, na Ucrânia (em mais do que um momento), no Iémen e, mais recentemente, em Israel. No Iraque, viu o jipe em que seguia ser travado por um grupo de bandidos, munidos de kalashnikovs, pouco ou nada puderam fazer, tiraram-nos do carro, levaram-nos para o deles, dali para o deserto, a incerteza a turvar-lhes o destino, a ideia de que às tantas não mais voltaria a casa a passar-lhe pela cabeça. Mas tudo acabou bem, quando as tropas britânicas os encontraram por fim. “Houve outras situações, de confusão, de assistir a tiroteios e bombardeamentos, mas tudo mais ou menos controlado. Acho que essa foi a pior.”

José Manuel Rosendo, em Nassíria, no Iraque
(Foto: DR)

Há outras marcas que carrega, ainda assim. “Houve um momento que me marcou muito, nos arredores de Mossul, na altura em que a cidade foi libertada do controlo do Estado Islâmico. Eu também faço umas fotos, porque gosto, e às tantas ia fotografar um miúdo que vinha numa maca quando o paramédico lhe abre as calças e vejo que metade da perna não está lá. Ainda por cima, na altura, o meu filho tinha mais ou menos aquela idade. Outra imagem que me marcou foi no Iémen. Andávamos muito de carro em sítios sem lei e volta e meia víamos miúdos que não pareciam ter mais do que 13 ou 14 anos de armas na mão. É assustador pensar que aqueles miúdos já têm o futuro muito hipotecado. E é algo que tenho muito presente. As imagens de crianças são sempre as mais terríveis que trazemos da guerra.” E como se lida com essa bagagem? “Por sistema de autodefesa, guardamos num sítio onde não estejamos permanentemente a lembrar-nos delas, tentamos mudar o chip. Mas claro que são coisas que nos marcam para sempre.”

O real impacto da guerra

Por vezes, o verdadeiro impacto de uma experiência avassaladora como a de estar num cenário de guerra só é verdadeiramente processada a posteriori. Com Filipe Caetano, jornalista da TVI que só há sete anos chegou à televisão e aos grandes temas internacionais, foi de certa forma assim. Enquanto esteve na Ucrânia, e em menos de dois anos já lá esteve cinco vezes e mais de uma centena de dias, não se lembra de sentir medo. “O que não quer dizer que mais tarde não tenha tido a noção dos perigos que corremos. Mas acho que enquanto lá estive o impacto das circunstâncias até me foi sendo passado mais por pessoas da família e amigos, que me iam dando conta de que o meu aspeto era de alguém que de alguma forma estava alterado. Acho que o facto de se tratar de televisão, de dar a cara, de ter mais mediatismo, também contribuiu. Mas nunca senti medo.” Mesmo que tenha havido razão para isso. Logo no início da guerra, por exemplo, quando viajavam, ele e o repórter de imagem que o acompanhou, David Luz, de Dnipro para Kiev, e foram confundidos com infiltrados russos. “Na altura, houve distribuição indiscriminada de armas pelos civis e aquilo tornou-se extremamente perigoso. A dada altura, um grupo de jovens que estavam num dos postos de controlo não acreditaram que éramos jornalistas e apontaram-nos as armas à cabeça, lembro-me de ver o fundo do cano da metralhadora e de notar que o rapaz estava completamente em pânico. Vasculharam-nos o telemóvel, pediram-nos o passaporte e depois lá escapámos, quando apareceu um senhor que falava inglês e nos perguntou qual era a capital de Portugal.”

Filipe Caetano, jornalista da TVI, estreou-se em cenários de guerra na Ucrânia, logo no início do conflito. Admite que só teve real noção do impacto que a experiência teve nele quando voltou. Na foto, estava em Kharkiv
(Foto: DR)

Havia de vir pior. Quando se deparou com os horrores do massacre de Bucha. Ou quando estava a fazer reportagem numa aldeia nas imediações de Kharkiv e começaram a cair bombas nas redondezas. Ou, pior ainda, quando arriscaram a vida numa incursão ao bairro de Slatyne. “Na altura, houve várias aldeias que tinham acabado de ser libertadas pelos ucranianos e quisemos ir lá falar com as pessoas, a uma localidade que na altura era frente de batalha. Num dos controlos de estrada, o comandante diz-nos: ‘O que é que vocês querem ir lá fazer? Se quiserem passar, vão por vossa conta e risco. Mas voltem o mais depressa possível.’ Lá fomos nós, num carro velhote, por estradas esburacadas, com coisas ainda a arder, bombas a voar por cima de nós. Às tantas vemos uma inscrição numa parede a dizer: ‘Bem-vindos ao inferno.’ Mas continuámos. E nisto começam a cair umas quantas bombas, mais de dez, muito perto de nós, a poucas centenas de metros. O fixer chamou-nos a correr, para nos abrigarmos numa casa, entrámos e estava uma senhora a chorar, as bombas a cair. Mas aquilo parecia uma experiência fora do corpo, só depois tivemos verdadeira consciência. E agora à distância, depois de ter feito terapia, e falado em vários fóruns sobre o assunto, percebo que de facto pusemos a nossa vida em risco ao ir ali.”

Filipe Caetano, jornalista da TVI, em Borodianka
(Foto: DR)

Filipe refere-se à terapia sem pruridos nem assombros, aliás, reconhece, até já fazia antes de ter esta experiência. Mas, no caso, acabou por ser fundamental para perceber o real impacto que a guerra teve nele. “Eu achava que estava bem. Apesar de tudo o que vivi e vi, parecia que aquelas situações só tinham passado por mim como experiências. Mas quando deixas de ter aquela adrenalina que sentes quando estás lá, e voltas à normalidade da tua vida, começas a pensar nas coisas. E fui-me apercebendo, graças à terapia, que estava com stress pós-traumático, que tinha dificuldade em ligar as coisas, uma certa dormência, um pensamento lento.” Aponta, a propósito, que seria importante haver um particular cuidado com a saúde mental nestes casos. Jason Burke, do “The Guardian”, também enfatiza este ponto. “Há um impacto muito significativo nos jornalistas que fazem este tipo de trabalho e isso deveria ser mais abordado. É verdade que tem havido progressos, mas ainda há muito que falta fazer. Ainda assim, continua a ser um privilégio incrível fazer este trabalho. Não me lembro de outra coisa que pudesse gostar mais de fazer.” Filipe está alinhado com Jason. Aliás, não tem dúvidas de que se a oportunidade surgir, voltará a alistar-se para seguir viagem. “Claro que sim. Não fiquei com nenhum trauma, estou apenas mais consciente. E vou querer voltar.”

Yan Boechat, fotojornalista brasileiro que trabalha como freelancer e já correu mundo para retratar a guerra, percebe-o bem. Ainda não tinha entrado na faculdade e já sabia que era isto que queria fazer. “Sempre gostei muito de História e de viajar, acompanhei de perto a primeira Guerra do Golfo e fiquei com muita vontade de viver outros mundos, de ver a história a acontecer. Por isso já entrei na faculdade com essa ideia, embora tenha demorado um pouco para concretizar.” Estreou-se no Afeganistão, em 2003, por conta própria, e desde então tem sido sempre a girar. Já cobriu guerras no Congo, na Etiópia, no Sudão, no Iraque, na Síria, em Gaza, em Nagorno-Karabakh, na Ucrânia, em Israel, onde estava quando falou à “Notícias Magazine”. Com o tempo, foi evitando alguns erros e adotando estratégias que o ajudam a sentir-se mais seguro. “Trabalho sozinho, mas no geral procuro sempre estar com alguém. E, por segurança, tenho alguém a monitorizar-me o tempo todo, através de um tracker. Ou os meus editores ou a minha família. Depois, há alguns gatilhos. Se não fizer nenhum contacto no espaço de 12 horas, já sabem que a primeira coisa a fazer é procurar a embaixada brasileira do país onde estiver. Outra coisa é tentar nunca ficar muito tempo perto de soldados. Se estou na Ucrânia e há um hotel cheio de soldados, já sei que vai ser um alvo militar, torna-se muito perigoso. Nos tiroteios, identificar de onde estão a vir os tiros e procurar uma parede bem grossa. Num campo aberto, atrás do motor do carro é o lugar mais seguro, porque nos outros lugares as balas vão passar. Se for uma área de bombardeamento, é sair de perto do carro e procurar um lugar que esteja abaixo do nível do solo. Um buraco como exemplo. O que eu digo sempre à minha família é que este é um trabalho arriscado, mas não suicida. Fazemos cálculos o tempo todo para nos expormos o menos possível e voltarmos inteiros para casa.” Há aflições de que não dá para fugir, ainda assim. As explosões a que se escapa à tangente, as imagens da barbárie, a dor de ver um camarada a morrer. “Tive um colega próximo a morrer agora na Ucrânia e mexeu comigo. Porque no terreno a gente assume papel de observador, parece que é imune. Quando uma coisa destas acontece, damo-nos conta do que pode dar errado, parece que nos aproxima da morte.”

Yan Boechat, fotojornalista brasileiro especializado em cenários de guerra, na Ucrânia, junto a um helicóptero russo
(Foto: DR)

Na hora de fazer um balanço, Jan Grarup, fotojornalista dinamarquês , não doura a pílula: “É inocente pensar que quem faz este tipo de trabalho não é afetado numa escala pessoal. Claro que tem um impacto em ti. Quando estás num conflito, quando vês pessoas a morrer à tua frente, quando conheces mulheres que foram raptadas ou violadas, quando vês crianças mortas. No fim de um conflito, voltas sempre a casa com cicatrizes na tua mente, com as histórias de pessoas que passaram por situações que não podemos sequer imaginar.” Contudo, desistir nunca foi opção. “Porque ainda acredito no fotojornalismo e no jornalismo. É importante que continuemos a contar estas histórias, a mostrar às pessoas que vivem em Portugal ou na Dinamarca o que está a acontecer noutros locais. Neste momento, há mais de 22 guerras esquecidas. Estamos focados na Ucrânia e em Gaza, mas isso não quer dizer que os outros 22 conflitos não sejam violentos. Se formos à República Democrática do Congo, por exemplo, as pessoas estão a ser abatidas diariamente, devido aos confrontos entre fações armadas. É um dos conflitos mais esquecidos e simultaneamente uma das guerras onde mais gente morre.”