“Roteiro do conhecimento” anda por 86 escolas de cinco municípios a espevitar talentos e a desmontar estereótipos de uma indústria que já não é pesada, que já não é rotineira. A ideia é da associação do setor.
“A fábrica da minha mãe é linda para caraças, era capaz de viver ali.” O único senão é o barulho em algumas secções que o fazem torcer o nariz. Gabriel Gonçalves Ribeiro tem nove anos, a mãe Ana Miguel trabalha numa empresa de calçado – todo o tipo de calçado, diz, para homem, para mulher, para pessoas com deficiência. No verão passado, teve oportunidade de visitar essa unidade de produção, onde também trabalha a madrinha. “Até é divertido fazer todo o procedimento, a minha mãe está no acabamento, conheço todas as amigas dela, são muito queridas”, conta. Gabriel sabe do que fala e fala muito enquanto encaixa as peças de um puzzle com o desenho final na caixa (e já lá vamos).
Leandra Talissa Afonso é colega de turma, do 4.º B da Escola de Fundo de Vila, em São João da Madeira, tem nove anos também, adora sapatilhas, tem várias e de marcas diversas, quer ser cabeleireira. No ano letivo passado, a iniciativa “Roteiro do conhecimento”, da associação que representa os industriais do calçado, arrancou nesta escola com a primeira sessão com um puzzle e postais, perguntas e dúvidas. Talissa desenrascou-se no puzzle de um boneco com um par de sapatilhas azuis, sola branca, cara engraçada. “As partes que têm cores diferentes não foram difíceis”, lembra. As azuis deram algumas dores de cabeça.
“Roteiro do conhecimento” da APICCAPS – Associação Portuguesa dos Industriais de Calçado, Componentes, Artigos de Pele e Seus Sucedâneos anda pelas escolas a falar de calçado, a atrair uma nova geração de talento, a desconstruir ideias feitas sobre o setor e seus ofícios, a antecipar cenários futuros. Começou no 1.º Ciclo e chegou a mais de 250 crianças dos 3.º e 4.º anos. Neste ano letivo, a iniciativa arranca no próximo mês já nos restantes níveis de ensino, a ideia é chegar ao 12.º ano, ao Secundário, abranger a escolaridade obrigatória. São 86 escolas dos concelhos de Felgueiras, Guimarães, Oliveira de Azeméis, Santa Maria da Feira e São João da Madeira, territórios com forte tradição, concentração e implementação da indústria. A escolha foi cirúrgica.
Sofia Pádua, da comunicação e marketing da APICCAPS, vai às escolas falar com os alunos. Leva o material necessário, adequa a mensagem ao público, pergunta quem tem pais ou alguém da família a trabalhar na indústria. Há dois momentos que não esquece. O menino que disse que quando for grande quer trabalhar na fábrica de calçado onde o pai está e é muito feliz. A menina que anunciou que ia perguntar à mãe se já tinha feito o sapato da Cinderela. “Demonstram o carinho que sentem pelos pais que trabalham na indústria, têm muito orgulho nos pais e no que eles fazem”, revela Sofia Pádua.
Está tudo pensado. No 1.º Ciclo, a atividade é lúdica, um puzzle para fazer, construir um puzzle é como construir um sapato, todas as peças têm de encaixar, todas as peças contam. Nos restantes níveis de ensino, recorre-se à realidade aumentada, os alunos colocam óculos virtuais e entram numa fábrica do futuro. “Entram numa fábrica e têm toda a visão do que é trabalhar numa fábrica de calçado e as profissões que existem agora”, adianta Sofia Pádua. Essa é uma das ideias.
Quem disse que a indústria do calçado é pesada, rotineira, mal paga? O objetivo é mostrar exatamente o contrário, ou seja, um setor moderno, tecnológico, digital. A ideia é combater um conjunto de estereótipos que não são adequados e estão ultrapassados, segundo a APICCAPS. No fim das sessões, Sofia Pádua distribui postais com imagens divertidas de calçado e acessórios colocados de maneira a compor bonecos – alguns alunos aproveitam-no para escrever a carta ao Pai Natal. No fim, a turma junta-se para fazer um poema sobre sapatos coloridos, clássicos ou desportivos, de vários tamanhos e feitios, com rimas a preceito. “No 1.º Ciclo, são muito curiosos, têm muitas questões”, comenta Sofia Pádua. Sem filtros.
Da logística ao design, da gestão à produção
Gabriel faltou à escola no dia de estreia do “Roteiro do conhecimento”, estava com varicela. Há sempre oportunidade para fazer o puzzle que ficou na escola e ver os postais que se guardaram. A professora Salomé Dias recorda esse dia na EB1 de Fundo de Vila, alunos à volta do puzzle, perguntas sobre o que querem ser quando forem grandes, se têm família ligada ao calçado, pais, tios, primos, irmãos, avós. Gabriel sim, Talissa não.
Gabriel joga futsal no Dínamo Sanjoanense, é guarda-redes, antes andou no basquetebol. “Quero ter uma carreira no Dínamo, quero continuar o quadro da família”, sublinha, ao explicar que quer honrar o esforço dos que na família se dedicaram ao desporto. Talissa quer ser cabeleireira, como a mãe que está a aprender, e já tem o seu “plano de vida”, como lhe chama, que começa por ter um part-time, quando tiver idade, para juntar dinheiro para abrir um salão de cabeleireiro. Nada com sapatos? “Já pensei, dá muito trabalho”, atira.
Gabriel tem preferências a nível de calçado. “Para caminhar, prefiro aquelas sapatilhas de sola mole, mesmo para caminhar. Para o futsal, chuteiras não tão presas”, pormenoriza. A professora Salomé Dias pergunta-lhe se na fábrica da mãe passam os sapatos a ferro com uma borracha própria para tirar os restos de cola. Gabriel não viu. Viu outras coisas. “Até foi divertido, aprendi coisas novas.”
Salomé Dias, a professora, conhece a arte, nasceu no meio do calçado, o avô tinha uma fábrica que passou para o pai, quando saía da escola, fazia os trabalhos de casa por lá, as gaspeadeiras ajudavam quando podiam. “Nunca fiz sapatos, mas sei como se fazem.” Gabriel gosta de desenhar e de pintar, a professora diz-lhe que um sapato nasce de um desenho, depois passa a molde, depois vai para a parte da produção. Não é aborrecido, nada aborrecido. “Viajam muito para estar a par da moda, para se inspirarem”, adianta a professora.
A indústria europeia da moda vai precisar de 500 mil novos trabalhadores, segundo a Comissão Europeia, e o aviso é sobretudo para Portugal, Espanha, França e Itália. Esse é um dado que a APICCAPS teve em consideração no desenho da iniciativa focada nas escolas. O calçado precisa de uma nova geração de talento, de especialistas em várias áreas, da logística ao design, do armazenamento ao online, da produção à gestão. Há novas profissões a nascer e o setor do calçado quer continuar a ser referência internacional, reforçar as exportações, aliar a criatividade à eficiência produtiva, sem esquecer a tecnologia, a cadeia de valor numa área altamente competitiva. É este trabalho de proximidade que a APICCAPS está e quer continuar a fazer neste roteiro com a duração de três anos e que se enquadra no Plano Estratégico do Cluster do Calçado 2030. O plano, além de ir às escolas, passa também por promover ações de rua e uma campanha em ambientes digitais próximos dos alunos.
“Queremos tocar no coração das famílias, também queremos chegar aos pais”, revela Sofia Pádua. A iniciativa da APICCAPS conta com o apoio dos municípios envolvidos. “Estão a ser os nossos grandes parceiros neste projeto, acham o programa muito interessante”, acrescenta. E são as turmas que escolhem a APICCAPS, não o contrário. As câmaras entram em contacto com as direções escolares que falam com os professores que tratam da seleção. Neste processo, todos têm um papel importante sobretudo na vertente pedagógica.
O roteiro faz parte dos planos educativos municipais desses concelhos. É o caso de São João da Madeira que o integrou no eixo 2, dedicado à cidade competitiva e inovadora, do seu projeto educativo municipal. Irene Guimarães, vereadora da Educação da câmara sanjoanense, assistiu à estreia da iniciativa, esteve na escola de Fundo de Vila, considera que a abordagem faz todo o sentido nesse território, concorda que é necessário atrair jovens para o setor, desmistificar vários estereótipos associados à indústria. “Transportar estes jovens para o grande universo que é a indústria do calçado, desconstruir aquilo que é o estigma da figura do sapateiro, enobrecendo essa profissão, que em São João da Madeira deu muito prestígio e notoriedade, de forma indelével, para o crescimento do município”, realça a vereadora. “Desconstruir o tal estigma que a profissão de sapateiro está ligada à pobreza e a uma profissão menor”, especifica. Irene Guimarães gostou do que viu. “Os alunos reagiram bem, é um projeto que tem uma estrutura muito ajustada ao que são as expectativas e dinâmicas do 1.º Ciclo.” Tudo a rumar no mesmo sentido, portanto, começando na base, nas escolas, em nome de uma indústria que não quer perder o fôlego, o talento, a criatividade.