Neste Natal não há prendas (dizem muitas famílias)

É uma corrente anticonsumo, de voltar às coisas simples da vida, de reduzir o materialismo, de não comprar por comprar. Que parece estar a ganhar força. Valoriza-se mais o lado simbólico. Há quem tenha decidido agora, outros não trocam prendas há anos e até há famílias que celebram a época sem nunca ter tido tradição de dar e receber. Aqui, não há papel de embrulho para rasgar. O hábito cultural da troca de prendas talvez esteja a mudar - ou, pelo menos, a ganhar novas formas.

Sandra Salgado arrastou a ideia durante anos, ia tentando lançar a semente, “neste Natal não há trocas de prendas”, anunciava, para logo depois deixar cair a promessa no vazio. Nem ela respeitava a própria regra, acabava sempre por se render a comprar um “miminho” à pressa. Até que no ano passado toda a família embarcou a sério no desafio e o Natal sem prendas foi mesmo avante. “Pelo menos para os adultos”, sublinha. São à volta de 20 pessoas à mesa na noite de consoada, o marido, os dois filhos catraios, os pais, a irmã, a sogra, cunhados, sobrinhos, seis ao todo. Tem 42 anos, mora em Montemor-o-Velho. “A decisão partiu de mim e foi por várias razões. É aquela sensação de imposição, do ter de ser, que esta época nos traz. Parece que é obrigatório comprar prendas”, comenta. A questão económica também pesou, “numa família grande, por pouco que se gaste em cada prenda, o total acaba por ser um valor avultado”. E a preocupação com um consumo sustentável contribuiu.

Mas o gatilho maior foi mesmo ver familiares torcerem o nariz aos presentes e perceber que se “estava a gastar dinheiro em coisas que não eram valorizadas, que as pessoas não precisam, não querem e nem sequer gostam”. Vai daí, a família acordou que não havia trocas. Só as crianças pequenas escapam – a sobrinha de quatro anos, o filho Dinis de cinco e a filha Gabriela de 13 -, a magia da época e do Pai Natal dá direito a brinquedos no sapatinho para os petizes. “No caso dos adultos, a verdade é que hoje a realidade não é como há umas décadas. Quando precisamos de alguma coisa, compramos. Não estamos à espera que chegue o Natal. As prendas passaram a ser apenas para cumprir a regra e acumular coisas inúteis.”

O primeiro Natal sem presentes, no passado ano, correu bem, “a família cumpriu”. E Sandra fugiu ao stress das compras de última hora, à ansiedade de “agora será que as pessoas vão gostar?”. “Além do alívio que se sente na carteira, investimos mais em comida e bebida de qualidade.” Por tradição, depois do jantar, faziam um compasso de espera e abriam os presentes. Não houve isso no ano passado, nem vai haver este ano. “Não sentimos falta, de todo. Houve mais conversa, mais partilha.”

O fenómeno do anticonsumo está a bater à porta do Natal, da época da corrida às compras, das longas listas de prendas para toda a família, das mesas cheias. E isso parece ser cada vez mais notório. “Há, de facto, esta corrente. É o ‘back to basics’, o voltar às coisas simples, aos aspetos mais essenciais da vida, a uma vida menos material, àquilo que são as prioridades, à importância das relações humanas”, explica Beatriz Casais, professora de Marketing na Universidade do Minho. Posto isto, a questão, acredita, desenha-se muito para lá de motivações financeiras e de poupança, “não são necessariamente as famílias com menos poder económico que têm esta tradição, está antes associado a um princípio de sermos mais racionais, de não comprar por comprar, de não ser só mais um check na lista de prendas”.

Mas quando falamos em não trocar presentes materiais, isso “não significa que não possa haver o espírito natalício que assenta no dar e receber, o Natal é dar e receber, isso pode ser feito com a troca de coisas mais simbólicas”. Aliás, segundo a docente, pode e deve. “Porque esse lado do Natal é muito importante, esta ideia de pensar no outro, de agradar o outro, de parar no meio das nossas vidas agitadas para pensar naquilo que a outra pessoa gosta.” É essa, afinal, a base do espírito natalício, “o aspeto simbólico do gift giving está intrinsecamente ligado ao Natal”. “Se simplesmente se abolir a troca de presentes, entra-se num vazio emocional daquele que é o sentido do Natal”, defende Beatriz Casais. É certo que a época, em muitos casos, passou a ser só um materialismo desenfreado, com o stress de cumprir uma lista, “sem se perder tempo a pensar no outro”. “Ainda assim, é perigoso usar o argumento do combate ao materialismo para sustentar e cristalizar o egoísmo já tão profundo na sociedade.”

Uma tradição de sempre

A corrente que navega contra o consumismo no Natal até pode ser recente, porém há famílias onde já é tradição de longa data. Débora Silva não se recorda de um Natal com prendas. Nunca houve papel de embrulho para rasgar. Também nunca viveu a mística do Pai Natal, nem se lembra de se ter sentido diferente na infância à conta disso. “Na escola, havia sempre a pergunta sobre o que recebemos no Natal. E é engraçado, talvez porque era uma coisa tão natural na minha família, nunca me afetou.” Tem 31 anos, mora no Porto, é empresária, gere um alojamento local e um café-restaurante com os irmãos. É a mais nova de quatro.

“Os meus pais não tinham grandes condições financeiras e com quatro filhos não era fácil. Então, sempre nos incutiram isto de não trocarmos prendas para não se gastar dinheiro em vão, de comprar só quando era preciso. Sempre foi assim e sempre nos explicaram, mas nem era assunto propriamente.” Na noite de 24 para 25 de dezembro são os pais e os quatro irmãos à mesa, jantam o bacalhau, jogam jogos de tabuleiro, veem um filme de Natal. Ou melhor, agora já nem comem o bacalhau, é tofu, são vegetarianos, todos, à exceção do pai, que ainda não se rendeu.

Com amigos também raramente aconteceu trocar prendas, já lhe conhecem o hábito – ou a falta dele. Dispensa a confusão das compras natalícias, chegou a “cometer a loucura de acompanhar uma amiga, não foi uma boa experiência”. “Neste momento, na família, não é por falta de dinheiro que não trocamos prendas, enraizou-se. Acho completamente desnecessário estar a comprar coisas só porque sim.” Mas Débora não passa ao lado da pressão social. Ela existe. “Sem dúvida. Tanto que comecei uma relação amorosa no ano passado por esta altura e fiquei na dúvida, dou ou não dou? Acabei por dar, escrevi uma série de vales em pedaços de folhas de papel. Mas este ano já combinamos que não vamos oferecer nada um ao outro.”

O caso de Débora, de quem (quase) nunca ofereceu nem recebeu prendas no Natal, não é típico. A tradição da troca é antiga, muito antiga. “E está bastante estudada na Antropologia”, esclarece Luís Cunha, antropólogo e investigador do Centro em Rede de Investigação em Antropologia. Recuemos no tempo. O sociólogo e antropólogo francês Marcel Mauss lançava “Ensaio sobre a dádiva”, talvez o primeiro livro sobre o princípio da troca nas sociedades, da reciprocidade, há quase um século. “No fundo, o que ele diz é que o dar cria a obrigação de retribuir e as sociedades andaram sempre à volta disso”, realça. Agora há mudanças a surgir? “Estamos a assistir à alteração dos padrões deste hábito cultural de troca de presentes no Natal, sim. Não sei se é um fenómeno conjuntural ou estrutural, se veio para ficar ou não.”

Há anos que não há trocas

Pode ser, pode não ser. Sara Medeiros, 50 anos, e Paulo Prazeres, 58, não conseguem precisar, mas não trocam presentes certamente há mais de cinco anos. Fizeram as malas há uma década, mudaram-se para Londres, trabalham num hotel na capital britânica. Ele é de Lisboa, ela do Porto, quis o destino que os caminhos se cruzassem. No Natal são só os dois, não vêm cá, o preço dos voos dispara, também muitas vezes trabalham. Mas a mesa continua bem portuguesa, rabanadas, aletria, bacalhau, tudo como manda a tradição. “Somos poucos mas bons. Fazemos videochamada para a família também”, conta Paulo.

Deixaram de trocar prendas por uma “questão sustentável”, diz Sara. São minimalistas, compram comida a granel, roupa só quando é mesmo necessário, dificilmente vão à baixa londrina fazer compras, ele ainda vai de bicicleta para o trabalho. “As pessoas gastam o que têm e o que não têm nesta época e depois chega-se ao fim, abrem-se os presentes e nem precisavam. Mesmo em Portugal, a minha família não troca entre os adultos, só oferecem às crianças”, revela Sara. Ela e Paulo também não caem na tentação de enviar presentes para os familiares, nem sequer carregam as malas de coisas para oferecer quando se enfiam no avião logo a seguir ao Natal. “Não sinto que esta decisão tenha quebrado o espírito natalício. Dou mais valor a prepararmos o jantar juntos, a estar à mesa, a conversar. A troca de prendas é aquele minuto, não é mais do que isso”, observa Paulo. Tem dois filhos já adultos de uma anterior relação, também não troca prendas com eles. Além disso, no Reino Unido, o 26 de dezembro é Boxing Day, com grandes descontos em todas as lojas. “Às vezes, se precisamos de alguma coisa, vale mais a pena esperar pelo dia seguinte ao Natal”, destaca ele.

Os colegas do trabalho estranham, confessa Sara, ficam surpreendidos. “Para a maior parte é uma coisa de outro mundo. Mas acho que é algo bastante natural. Valorizamos mais estarmos juntos, jantarmos bem.”

As raízes das mudanças que parecem estar a acontecer, acredita o antropólogo Luís Cunha, estão ligadas à “maior consciência do excesso de consumo e à facilidade do consumo”. “Quando era miúdo, o Natal era um momento muito importante, passávamos o ano inteiro a chatear os pais para termos uma coisa que queríamos muito. E talvez, se nos portássemos bem, conseguíssemos. Hoje não, o Natal já não tem o lado da excecionalidade. Já não há tanto a questão de esperar pelo Natal.” Ainda não há estudos sobre este novo fenómeno, mas o investigador reconhece que, “atualmente, em alguns contextos, em algumas famílias, dá-se mais valor à autenticidade do que ao bem em si, a trocar algo simbólico, uma taça de marmelada, um frasco de compota, algo nosso, que mostra uma relação especial e que deixa memória, em vez de um bem material, que acaba por ter menos impacto”. É a valorização do gesto. Ou então dá-se valor a simplesmente estarmos juntos, “que também é uma forma de troca”. “Haver menos trocas de prendas não significa que haja menos trocas, elas estão é a ganhar outros contornos.”

Até admite que a conjuntura atual pode ter dedo nisto, a inflação, as dificuldades em pagar a casa, o salário à justa. As preocupações ambientais também. Mas não parecem ser essas as motivações na base. “Aquilo que me parece é que a nossa relação com os bens mudou, habituamo-nos a ter as coisas com relativa facilidade e isso alterou o valor que lhes damos. Sou do tempo em que as pessoas juntavam dinheiro para comprar uma varinha mágica, isso já não acontece”, lembra.

Na família de Manuela Rodrigues há muito que não há trocas de presentes, talvez há uma década. Mora na Lourinhã, aos 61 anos está reformada do trabalho como animadora sociocultural. Dois filhos, dois netos, um menino de três anos, uma menina de sete. Só os pequenos recebem prendas, muitas vezes brinquedos feitos à mão pela avó, comprados em segunda mão também. Manuela leva jeito para os trabalhos manuais, para a costura criativa, faz bonecos, roupas, jogos para oferecer aos miúdos. “Não é uma questão de dinheiro, é de evitar excessos, estragação. Todos os anos falávamos nisto e foi acontecendo aos poucos, foi gradual. Porque era um disparate, estávamos a dar coisas para guardar na gaveta, não fazia sentido. Já era uma maçada, uma obrigação fazer a lista e andar a riscar os nomes.”

Manuela junta 18 pessoas à mesa no dia de Natal, em sua casa. Filhos, netos, cunhados, sobrinhos. Algumas resistências pelo caminho, toda a família haveria de alinhar. Até há poucos anos, Manuela e o marido ainda ofereciam prendas simbólicas, como azeite e queijo. Agora nem isso. “Mesmo para os mais pequenos, o Pai Natal traz presentes, mas são coisas pequeninas, não pode dar a todos os meninos coisas caras”, relata.

A verdade é que prefere ir oferecendo prendas ao longo do ano, sempre que vê algo que faz sentido para alguém, compra e dá. “Ou quando sei que os filhos precisam de alguma coisa.” O espírito natalício mede-o antes na presença, nos afetos. “As pessoas não se juntam para partilhar prendas. Juntam-se para partilhar a vida. E continuamos a juntar-nos, cada vez mais, e a celebrar o Natal.”