Cloé, que nasceu com uma distrofia muscular congénita, conseguiu, graças à generosidade de desconhecidos, a verba que lhe permitirá cumprir o sonho de voltar a subir a um palco de teatro. Sandra viu, por fim, o tracinho cor-de-rosa que tinha desejado vezes sem conta. Sara teve a possibilidade de entrar num ensaio clínico que lhe salvou a vida. Rute deixou a cadeia e reinventou-se. Ana recuperou as filhas que o tribunal lhe tinha tirado e o Natal voltou a ser Natal. Histórias de esperança e recomeça que têm esta quadra como pano de fundo.
Mamã, espera, diz-me lá outra vez: eu vou voltar para o teatro?” Cloê Pinheiro, 12 anos, residente em Esmoriz, tardou a cair nela quando a mãe lhe deu a boa nova. No palco, ela é livre e inteira, não há amarras nem limitações. E no entanto já lá vão quase cinco anos desde a última vez que o pisou. Cloê nasceu com uma distrofia muscular congénita por défice total da proteína merosina. Logo à nascença, a mãe, Sofia, percebeu que ela era “diferente”, a hipotonia muscular era tal que ela nem força para mamar tinha, ao mês e meio a bebé já fazia fisioterapia (e tem feito sempre desde então). O diagnóstico não derrubou esta mãe, pelo contrário, ela entregou-se de alma e coração à missão, deixou a carreira de designer de moda em suspenso, passou a ser cuidadora a tempo inteiro, 24 sobre 24, dedicou-se de tal forma que aprendeu ela a fazer a fisioterapia da filha. O empenho deu frutos inegáveis, a garota teve uma evolução fulgurante, chegou a andar de andarilho, de bicicleta de quatro rodas também, tudo feitos e tanto para quem sofre deste tipo de doença. Há uns seis anos, mais coisa menos coisa, disse à mãe que gostava de ir fazer teatro. O que também há de ter que ver com o facto de Sofia sempre lhe ter incutido a ideia de que era capaz de tudo. “A Cloê é muito sociável e muito expressiva e não tem vergonha nenhuma. Pelo contrário, adora ter palco e estar no palco. Na última peça que fez, pôs metade da plateia a chorar.”
Só que, em 2019, a saúde voltou a rasteirá-la. Sem que nada o fizesse prever, e sem qualquer ligação aparente à distrofia muscular com que nasceu, sofreu uma hemorragia medular “gravíssima”. “Foi tudo muito rápido. A Cloê disse que lhe doía o pé, de repente deixou de sentir a perna, mal lhe conseguíamos tocar porque ela berrava, e nisto, quando chegámos ao CMIN [Centro Materno-Infantil do Norte, no Porto], já ia sem sentir as duas pernas e já estava a chegar à parte respiratória. Acabou por ficar com sequelas gravíssimas.” Sofia emociona-se, a voz ameaça fraquejar, mas ela prossegue, estoica, como sempre faz. “O que nos explicaram foi que se deveu a uma artéria com uma má formação. E isto na melhor fase da vida dela, em que toda a gente andava impressionada com o que ela tinha conseguido, tinha uma amiga que dizia com graça que ela era uma atleta de alta competição na patologia dela.” Foram 40 dias de internamento, a que se seguiu mais um longo processo de reabilitação. “Tivemos de começar tudo do zero outra vez. Ela nem a cabeça segurava.” E outra vez esta mãe abraçou a tarefa como se de uma missão de vida ou morte se tratasse, mesmo que tenha tido de esperar demasiado tempo pelas cadeiras de rodas a que tinha direito. Para remediar, adaptou o carrinho de bebé que tinha lá por casa, de forma a que Cloê ficasse o mais confortável possível.
As cadeiras chegaram, por fim, mas a menina continuava a ver o sonho de retomar o teatro adiado. “Porque o teatro onde ela ensaia tem uma escadaria grande, com cerca de 30 degraus, e a cadeira elétrica pesa mais de 100 quilos, é impossível andar sempre com ela para cima e para baixo. E a manual não lhe permite movimentar-se em palco sem que os colegas a empurrem.” A solução passa, pois, por acrescentar um motor com comando à cadeira manual – o que, simultaneamente, lhe confere muito maior mobilidade e garante que a cadeira mantém um peso muito suportável. Só que isso custa um pequeno balúrdio (cerca de 4800 euros). Daí que, pela primeira vez, Sofia tenha optado por apelar à ajuda de terceiros, através de uma campanha de donativos lançada nas redes sociais. “Gostaria de derrubar mais uma barreira para que a minha filha dê continuidade ao teatro”, escreveu, na publicação.
O pedido gerou um feedback estrondoso. Em pouco tempo, a mãe de Cloê excedeu o limite de transferências que se pode receber por MB Way e em 48 horas garantiu o valor total, muito graças a uma empresa que se disponibilizou para pagar quase metade do valor (e que preferiu manter o anonimato). Um pequeno “milagre de Natal”, reconhece Sofia. “Fiquei muito sensibilizada, sobretudo porque os amigos ajudaram muito a partilhar o pedido, mas quem mais ajudou não foram os amigos, foram desconhecidos que souberam da história da Cloê e quiseram ajudar. Esta parte humana foi o que mais mexeu comigo e o que mais me deixou feliz. Ainda por cima porque andava um bocadinho descrente em relação às pessoas. A sensação que tenho é que desde a pandemia estamos ainda mais egoístas. Afinal, há pessoas que não nos conhecem e têm um sentimento como o nosso.” E depois foi ver a alegria incontida da filha perante a boa nova, a incredulidade de quem vê o sonho tão perto outra vez. “Mamã, espera, diz-me lá outra vez: eu vou voltar para o teatro?” E o Natal cumpriu-se ali.
“Com eles, os Natais são uma felicidade”
O Natal de Sandra Brás e do marido, José Augusto, ambos de Leiria, cumpre-se há 17 anos, desde que, na segunda quinzena de dezembro de 2006, um tracinho rosa ténue se revelou ao enésimo teste de gravidez. E no entanto Sandra tardou a convencer-se de que era mesmo para valer. “Recebemos tantos testes negativos em cinco anos que, nos primeiros dias, aquilo parecia-me impossível. Demorou a cair-me a ficha. Só mesmo quando fiz a ecografia e vi que estava tudo bem, e que eram gémeos, é que acreditei.” Daí que aquele Natal de 2006 ainda tenha tido sabor agridoce, por um lado já foi diferente, “por dentro estava feliz”, mas ditava a prudência que era ainda cedo para anunciar a novidade ao Mundo e portanto passaram a quadra com aquele segredo ao colo, com uma certa ansiedade também. Perceber o peso daquele tracinho cor-de-rosa implica recuar mais de 20 anos, até à altura em que Sandra decidiu tentar engravidar. “Casar e ter filhos antes dos 30 não era algo que estivesse na minha cabeça.” Mas acabou por casar aos 25. E aos 29 decidiram que estava na altura de tentar engravidar. Só que durante muito tempo as tentativas foram infrutíferas, numa fase inicial o médico de família até desvalorizou, mas Sandra já achava que algo não estava bem, visto que praticamente não tinha o período. Num primeiro momento, ainda tomou medicação hormonal oral, depois bateu à porta de uma clínica de fertilidade em Lisboa, começou a fazer inseminação artificial, mas sem qualquer vislumbre de sucesso.
Pelo meio, surgiram suspeitas de endometriose – doença crónica que afeta mulheres em idade reprodutiva e consiste na presença de tecido endometrial fora do útero – , a cirurgia veio confirmar o diagnóstico, aproveitou-se para remover os tecidos excedentários, avançou-se para fertilização in vitro (FIV). Mas o caso ainda andava longe de resolvido. Os números dão uma ideia da angústia: ao longo de cinco anos, por entre passagens por inúmeros médicos e clínicas, Sandra fez cinco inseminações artificiais, quatro cirurgias (para remover os tais tecidos excedentários resultantes da endometriose, visto que estes reaparecem), três FIV completas e ainda umas quantas transferências de embriões congelados. Algures durante o processo, juntou-se a outras duas mulheres que conheciam bem as dores daquele processo para fundar a Associação Portuguesa de Fertilidade (ainda hoje, Sandra é vogal da direção). “Na altura havia muito pouca informação sobre este assunto em português. E então nós partilhávamos as nossas angústias com outras pessoas que passavam pelo mesmo no fórum da internet ‘PinkBlue’. Porque a verdade é que quem não passa por isto, por muito que queira, não consegue ajudar. A dada altura, decidimos juntar-nos num almoço na Mealhada e dali acabou por sair a ideia de abrirmos a associação.”
Até que, à terceira FIV, o teste que tantas vezes tinha feito sem sucesso a surpreendeu. “Nunca pensei que fosse dar algo. Até ali foram tantos testes em que aparecia tudo limpinho, limpinho.”
Mas Sandra sabia que o risco de um aborto espontâneo era real, ainda mais na sequência de uma FIV. Aliás, duas das parceiras da associação tinham passado por isso, e já numa fase avançada da gravidez. Por isso, a alegria andou muito tempo contida, ali embrulhada pelo medo. “Acho que enquanto não cheguei às 27 semanas, em que já era viável ter as crianças, não descansei. Tanto que as pessoas me foram dando enxoval para os meninos, mas comprei praticamente tudo a partir dessa altura.” Mas o desejo maior de Sandra, hoje com 50 anos, estava mesmo destinado a dar certo. E a partir dali tudo ganhou outro sabor. “O Natal antes dos meus filhos, naqueles anos marcados pela infertilidade, era muito triste. Era uma das alturas que mais mexia comigo. Porque andamos na rua e é tudo virado para as crianças. Isso acentuava a sensação de que me faltava alguma coisa. De alguma forma, intensificava-se a dor.” Sandra fala dos dias difíceis com a mesma frontalidade com que reconhece a magia de uma quadra vivida com filhos. “Eu até evito falar disto a quem ainda não conseguiu, mas é um facto que com eles os Natais são uma felicidade. Antes, passávamos sempre o Natal fora, nos meus sogros ou na minha cunhada. Desde que os tivemos que faço questão de juntar a família em minha casa. Sem dúvida que eles trouxeram algo de muito especial.”
“Estou a renascer”
Para Sara Carvalho, 42 anos, farmacêutica, o Natal, o verdadeiro Natal, chegou há nove anos, sob a forma de um ensaio clínico que lhe permitiu superar um cancro da mama. Mas perceber o impacto desse momento implica recuar à notícia mais dura, aos dias de agruras, à incerteza que se cola à pele. Era outubro de 2014, Sara sentiu algo de anormal no peito enquanto fazia a apalpação, não era bem um caroço, mais um empastamento, quase como um ducto entupido, algo que acontece com frequência quando se está amamentar. Só que Sara não estava. Para além disso, andava a sentir um cansaço fora do comum. E então não descansou enquanto não percebeu de que se tratava. Dirigiu-se a um hospital privado para fazer uma ecografia, fez uma biópsia de urgência, num ápice já sabia que tinha cancro da mama, do tipo HER2 positivo, e estava a ser encaminhada para o IPO do Porto. “Tive ali um momento muito duro, durante aqueles 15 dias em que estive a aguardar os resultados, porque o meu medo era que já estivesse espalhado. Depois, quando recebi os resultados, de que o cancro estava localizado, avançado mas localizado, foi um misto de sentimentos. Acho que de alguma forma senti um certo alívio no meio da desgraça. No início ainda passei ali por uma fase de choro, mas durou pouco tempo. Depois fiquei muito focada em vencer. Só pensava que o meu filho [então com três anos] não podia ficar sem mãe, que ia estar ao lado dele durante muito tempo.” E então dedicou-se a procurar casos de sucesso por essa internet fora, para que lhe servissem de inspiração para a luta que estava prestes a travar.
Era já dezembro quando lhe explicaram o que teria de fazer a partir dali. “Como só tinha 32 anos e o cancro podia progredir muito rapidamente, a ideia era fazer primeiro quimioterapia e imunoterapia e depois avançar para cirurgia.” Foi nesta altura que lhe falaram de um ensaio clínico que estava a decorrer, em que faria na mesma a quimioterapia, mas em vez de fazer imunoterapia com apenas um fármaco, faria com vários, sendo que um deles [pertuzumab] aumentava em teoria as hipóteses de uma resposta positiva ao tratamento, mas ainda não estava aprovado. “Era um ensaio de segurança cardíaca e eu tinha muito pouco tempo para decidir.” No imediato, Sara congelou. “Não consegui responder logo à médica. Depois li, reli, pedi conselhos, e acabei por decidir que tinha de aproveitar.” Sara perceberia mais tarde que a possibilidade de entrar naquele ensaio, e o facto de ter decidido participar, tinham sido providenciais. “Costumo dizer, a propósito desta terapêutica inovadora a que tive acesso graças ao IPO, que me saiu o Euromilhões.”
Nem de propósito, começou os tratamentos a 22 de dezembro, três dias antes do Natal e em pleno dia de aniversário. “Na altura foi um bocadinho complicado, porque numa fase inicial eu decidi não partilhar com a família alargada, então não foi muito fácil gerir aquelas emoções todas, a família a desejar boas festas. Mas já estava esperançada que ia correr bem.” Seis meses depois, a redução do tumor era já exponencial. Seguiu-se a cirurgia, com mastectomia total da mama direita e esvaziamento axilar. “E depois soube que tinha entrado em remissão.” Tanto que se tornou impossível dissociar aquele pequeno milagre da medicina da magia desta quadra. “Lembro-me todos os Natais, em todos os meus aniversários, a cada ano que passa estou grata por estar cá, por poder ver o meu filho crescer. Em criança, como quase todas as crianças, eu gostava muito do Natal. Mas depois fui crescendo e comecei a ligar menos. Agora, desde que tenho o meu filho, desde que tudo isto aconteceu, o Natal voltou a ter um significado especial.”
“Esqueci-me que o Natal existia”
No caso de Rute (prefere que lhe chamemos assim, para evitar o estigma que vem com um currículo que contempla uma passagem pela prisão), uma parte da magia da quadra perdeu-se para sempre com a morte da mãe. Mas desde 2016 que o Natal está associado a um dos dias mais marcantes dos seus 55 anos de vida. Foi a 18 de dezembro, Rute tem o dia na ponta da língua, como podia esquecer o dia em que por fim voltou a respirar o ar da liberdade. Também sabe exatamente como foram aquelas últimas horas na cadeia. Para que não lhe fizessem pedidos de última hora nem a metessem em sarilhos, optou por guardar segredo quanto à sua saída. Por isso, na noite anterior, despediu-se como se nada fosse, recolheu, adormeceu tão serena quanto se pode estar quando o dia tão esperado está prestes a chegar. A prova que havia um friozinho a tomar-lhe conta da barriga é que saía às sete da manhã e pôs o despertador para as três. “Queria ter tempo para me arranjar com calma, para tomar o meu banho, o pequeno-almoço, o cafezinho, fumar o meu cigarrinho. E claro, também estava ansiosa.”
Rute é licenciada, trabalhou anos como bancária, na verdade chegou a ser procuradora de balcão. Só que, na ânsia de atingir bons resultados, vendeu produtos comerciais como produtos financeiros. O número saiu-lhe caro. Foi condenada por burla qualificada, má-fé, infidelidade profissional e punida com uma pena de prisão de cinco anos e quatro meses. “Foi uma experiência muito difícil. Mas desde o início que meti isto na cabeça: ‘Eu tenho de estar aqui, não vale a pena desesperar nem pensar que a minha vida vai acabar. É só esperar que o tempo passe.” E assim dedicou todas as energias que tinha a garantir que fazia tudo o que pudesse para que o tempo que ali tinha de estar fosse o mais lesto possível. “De manhã trabalhava na biblioteca, parava para almoçar, dava uma volta no pátio, à tarde trabalhava outra vez, das cinco às seis ia ao ginásio, jantava e às sete já estávamos fechadas na cela.” Outro objetivo que assumiu desde o primeiro dia – cumprido com sucesso, diga-se – foi certificar-se de que não arranjava problemas com quem quer que fosse. E assim deixou a cadeia sem qualquer registo de infração disciplinar. “Eu lá dentro só fiz uma amiga, mas uma grande amiga, que ainda hoje trato por mana. Então se nós íamos dar uma volta ao pátio e víamos que ali perto começava a haver confusão rapidamente íamos para o sítio mais afastado daquele lugar, para não sobrar para nós. E mesmo dos guardas prisionais não tenho nada a dizer. Nunca tive o mínimo problema com um guarda.”
A conduta exemplar valeu-lhe uma recompensa e tanto. Ao fim de três anos e nove meses, cerca de um ano e meio antes do previsto, Rute recebeu a notícia mais desejada. E em cima do Natal. “Durante o tempo em que lá estive até me esqueci que o Natal existia”, lembra Rute, num recuo a anos que mais parecem ter ocorrido já noutra vida. Em 2016, acabou por passá-lo na casa de um associado da Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso (APAR) que lhe deu a mão. “Se hoje estou como estou, muito o devo à APAR.” Deve-o a ela também, que foi capaz de esquecer a vida que antes tinha tido e de se sujeitar ao que quer que aparecesse para endireitar. “Teve de ser. A minha mãe já tinha morrido antes e o meu pai faleceu enquanto eu estava na prisão. Quando saí não tinha família que me ajudasse, tive de ser eu.” Assim que saiu, com apenas 250 euros no bolso, a APAR pagou-lhe uma residencial onde pôde passar duas noites. Depois, falaram-lhe no tal empresário, emigrante em França, que podia dar-lhe guarida e até tinha campos de fruta no Oeste, onde poderia trabalhar. Rute aceitou sem pensar duas vezes. “Pouco tempo depois, ele falou comigo, disse que tinha uma oportunidade de emprego para mim, com descontos e tudo, mas estava com alguma vergonha de me sugerir porque era para apoio na cozinha de um restaurante e achava que com as minhas qualificações eu não ia aceitar. Mas eu disse logo que sim. Disse-lhe logo que precisava era de ganhar dinheiro.” Não tardou até que o mesmo benfeitor lhe pedisse também uma pequena ajuda com o trabalho de escritório.
Foi lá que ela acabou por conhecer o atual empregador, um dos fornecedores de legumes e fruta do restaurante, que lhe ofereceu um emprego de escritório, com boas condições. Já lá vão uns cinco anos. O objetivo esteve sempre muito claro na cabeça de Rute. “Trabalhar até arranjar uma forma de ter a minha casa e o meu carro. Sabia que aquilo era o que eu tinha de fazer para chegar a isso. E hoje tenho ambos”, orgulha-se Rute, aparentemente em paz com os erros do passado e a pena a que foi sujeita para se redimir. “O que eu fui já foi. Não é bom voltar ao lugar onde fomos felizes.” Mas na casinha que tem no Oeste, voltou a ser feliz. A ter paz. E mesmo que o Natal tenha perdido a magia imensa de outrora, vai, aos poucos, voltando a ter sabor. “Agora reúno-me com o meu namorado e os amigos, como um bacalhau com natas, uns sonhos, uma fatia dourada. Nunca mais será igual ao que era com a minha mãe, porque ela era uma verdadeira entusiasta do Natal. Mas o ano passado foi o primeiro em muito tempo em que voltei a fazer uma árvore. Foi uma árvore pequena, mas é um princípio.”
“O melhor de sempre”
Ana Maximiano não tem dificuldade alguma em identificar o melhor Natal que viveu. O pior também. São ambos parte da mesma história. O melhor foi o de 2021, quando recuperou a guarda das duas filhas que ainda se encontravam com o pai. O pior, não há dúvidas, foi o de 2015, quando ficou sem as três meninas, Ana volta a ceder às lágrimas por se lembrar desses tempos, mesmo que já lá vão uns anos. A história é conhecida, o caso de Ana foi amplamente contado pelos jornais e pelas televisões, ganhou redobrada visibilidade com a greve de fome que fez por não a deixarem ver as filhas. E numa versão bem resumida conta-se assim: em 2015, o Tribunal de Família e Menores de Cascais entregou as duas filhas do casal ao pai. Meses depois, o homem foi condenado a dois anos e meio de prisão, suspensa por igual período, por violência doméstica contra Ana Maximiano. Mas não tardou até que o mesmo tribunal prorrogasse por mais seis meses a guarda das crianças entregues ao pai. E apesar de o pai da mais velha ter concordado em entregar a filha à mãe em abril de 2019, as outras duas (de outro pai) só voltariam ao lar da progenitora por decisão do tribunal.
Anos e anos de sufoco, em que Ana ainda hoje não sabe como foi encontrando forças para se manter à tona, para lutar pelas filhas e por um desfecho risonho. “Eu adoeci, fiquei com 47 quilos, foi como tirarem-me uma parte de mim. Ainda por cima não me pude despedir de uma delas, outra passei mais de um ano sem a ver, e elas nunca tinham estado sem mim. Mais a preocupação de as ter lá, o facto de não me terem pedido as coisas delas, as chuchas, os bonecos, nem sequer o boletim de saúde. Foi tudo horrível, ainda hoje não sei explicar o que aquilo foi.” Os Natais, então, eram uma dor de alma que Ana ainda tem dificuldades em recordar. “Não foi Natal. O espírito do Natal sempre foram os miúdos, fazer os biscoitos para o Pai Natal, cada um fazer a sua bolinha, mesmo o ritual da montagem da árvore é uma festa. Naqueles anos não houve nada. Não havia disposição para nada.”
Mas aquele dia de 17 de dezembro de 2016 foi um momento de viragem. Ana lembra-se perfeitamente de o advogado lhe ligar a dizer que queria falar com ela, que iria ter consigo pessoalmente, de irem no carro e ele a fazer suspense quanto à sentença até lhe dizer, extraordinariamente calmo: “As Maximiano voltam a casa”. Ana chegou a duvidar. “Naqueles anos foi tudo tão mau e tão surreal que nós nem tínhamos grandes expectativas. E depois ele disse aquilo num tom tão normal que eu perguntei-me se ele [Gameiro Fernandes, o advogado que a defendeu] estava mesmo a dizer aquilo.” Mas estava. E Ana não se conteve. “Desatei a chorar e não conseguia parar. Lembro-me de as meninas me dizerem: ‘Ó mãe, estás a chorar. São boas notícias ou más notícias?’.” E nisto pararam o carro, saíram todas, uniram-se num abraço chorado que não esquecerão nunca. “Agarrei-as muito e quando elas perceberam que o meu choro era de felicidade agarraram-se também, com muita força.” Também se lembra que foram na viagem todas muito ansiosas para chegar a casa e contar aos manos (Ana tem mais dois filhos), ao tio, à cunhada, aos avós. E não tem como esquecer o abraço de grupo que deram todos quando chegaram a casa, Ana volta a chorar só de recordar, o alívio foi tanto que ela ainda hoje não encontrou as palavras certas para o descrever na totalidade. “Foi a concretização de uma luta tão grande, tão grande.”
E nisto o Natal ganhou outro sabor, passaram aqueles dias a dormir todos juntos na cama (a mãe, as três meninas e o filho mais novo), abraçavam-se a toda a hora, faziam tudo juntos, Ana lembra-se de acordar de noite, olhar para elas e sentir um misto de um conforto imenso e um pensamento de “isto está mesmo a acontecer”. E voltaram ao ritual de fazer a árvore em família, os doces para o Pai Natal, visitaram as tias-avós, foram dias sem igual. “E as meninas quiseram escrever uma carta a cada um dos membros da família mais próxima em que diziam que a melhor prenda de Natal que tinham recebido era voltar à família.” E desde então o Natal não mais deixou de ser Natal.