20 de outubro de 1963 - 20 de outubro de 2023. Sessenta anos de vida em comum, inabaláveis. Conheceram-se em crianças. Cresceram e apaixonaram-se nas praias algarvias. No dia em que recebeu a notícia de que o esperava a Guerra Colonial, Aníbal decidiu que não podia perder aquela rapariga. Maria não resistiu um segundo ao pedido de casamento recebido no telefone da venda. As bodas de diamante de um casal de mão dada, em entrevista inédita.
Maria Cavaco Silva escolheu um vestido vermelho. O marido, calças e camisa azuis. Vivem rodeados de quadros e de memórias. A entrevista decorreu na sala de estar da casa da Travessa do Possolo, em Lisboa. O espaço é marcado por dezenas de fotografias de família, em férias ou em pose. Numa das mesas de apoio ao sofá central, em moldura discreta, Bento XVI abraça João Vicente, o neto mais novo, filho de Bruno. Na mesa de centro, as revistas “Time” e “The Economist”. O livro “Pátrias”, de Timothy Garton Ash. A “Bíblia”, de Frederico Lourenço. Uma taça com frutos secos e dois copos de água. O álbum de um casamento com 60 anos.
Dia 20 de outubro de 1963. O que recordam desse dia? A que horas casaram?
Maria Cavaco Silva (MCS) Às duas da tarde.
Aníbal Cavaco Silva (ACS) Convém explicar que a determinação da data do nosso casamento não nos pertenceu. Foram fatores exteriores que a determinaram. A guerra no Ultramar começou em 1961. Em 1962, o ano forte da contestação estudantil ao regime do Salazar, das greves sucessivas dos estudantes, já completado o meu 3.º ano na universidade, pedi adiamento do serviço militar. O pedido foi recusado. Fiz então a recruta em Santarém, a especialidade em Contabilidade e Pagadoria no quartel da Pontinha, sendo depois colocado como aspirante oficial nos Pupilos do Exército. Em agosto de 1963, recebi a notícia de que ia ser mobilizado e enviado para Moçambique, onde iria ficar pelo menos dois anos.
Como reagiu?
ACS Foi um choque profundo. De tal maneira que a primeira coisa em que pensei foi “o que é que vou fazer em relação à minha namorada”, que se encontrava, então, nesse mês de agosto, em férias em Olhos d’Água, no Algarve. “Não quero perdê-la”, pensei, “e se parto para Moçambique posso perdê-la”. Era a mulher que eu amava, para mim a mais bonita e a mais inteligente de todas as raparigas que conhecia. Estava apaixonado e, portanto, disse para comigo que tinha de a convencer a casar e, se possível, a ir comigo para Moçambique.
Vai a correr para o Algarve?
ACS Consegui encontrar um número de telefone, o único que existia, numa, digamos, taberna.
MCS Venda, no Algarve chama-se venda.
ACS Na praia de Olhos d’Água. Pedi que a chamassem. E aí começa o primeiro dia dos 60 anos de casados que celebrámos. A decisão de casar foi a decisão mais importante, mais acertada da minha vida. A minha mulher, a rapariga com quem casei, foi decisiva não só para a minha vida profissional, como para a minha vida política.
E a noiva lembra-se desse telefonema?
MCS Agosto, estava na casa de uma amiga, ele andava lá por aquelas coisas muito complicadas fisicamente, da tropa, e vêm dizer-me que há um telefonema de Lisboa, lá na venda. Vou a correr e mal atendo, diz-me: “Estou mobilizado para Moçambique, vem já para cima que vamos casar”. E eu: “Está bem”. Foi muito romântico (riem).
Só assim?
MCS Só assim. E chegou.
O que tinha essa rapariga de especial?
ACS Conhecia-a há muito tempo. E a partir de certo momento começámos a namorar. Portanto, quando chegou esta notícia…
MCS Nós conhecíamo-nos desde miúdos, passávamos as férias juntos na praia.
ACS Quando chegou a convocatória, nós já namorávamos há cerca de dois anos.
Qual dos dois se apaixonou primeiro?
MCS/ACS (Olhando um para o outro) Não sabemos.
Achava-o bonito?
MCS Era muito giro. (sorri) Mas isso não chega.
ACS Com toda a incerteza que a partida para o Ultramar colocava à nossa frente, foi preciso uma convicção muito forte de que era a mulher da minha vida para decidir casar naquele momento.
MCS Nós gostávamos muito um do outro, já namorávamos, conhecíamo-nos bem. Porém, era um tiro no escuro. Uma aventura, sabíamos que era uma aventura, mas decidimos “vamos a isso”.
ACS Porque é que a data só vem a ocorrer em outubro? Para casar precisava de uma autorização militar. Depois, havia que desenvolver todo o processo de preparação para o casamento. Decidimos onde é que íamos casar. Preparar tudo o que necessitávamos de levar connosco. E, preocupação maior, saber se conseguiria que a minha mulher viajasse no mesmo barco em que eu partiria, o paquete Infante D. Henrique. Conseguimos. Fomos ambos em primeira classe porque a minha mulher, que já era professora na altura, conseguiu comprar um bilhete. No barco negociámos de maneira a conseguirmos ficar no mesmo camarote.
Porquê então a escolha de São Vicente de Fora?
MCS Nessa altura, morávamos ambos no bairro de Campo de Ourique e ao domingo íamos habitualmente à missa na Igreja de Santo Condestável, que era recente. Ora eu queria uma igreja antiga, com raça, com escuridão. No ano anterior uma amiga minha tinha casado em São Vicente de Fora. Gostei tanto daquela igreja que foi a escolhida.
Guarda o fato do casamento?
MCS Ainda tenho o vestido. Mas, repare, foi tudo muito rápido. Vestido, casamento, documentos. O pai tinha-lhe dado uma scooter vespa e andávamos os dois a tratar dos papéis de vespa. (sorri)
Estou a imaginar.
ACS Primeiro, tivemos de pensar no padre para nos casar. Fiz questão de que fosse o padre de Boliqueime. O padre Sebastião.
Porquê?
ACS Tínhamos uma relação muito afetiva com ele. Era um padre muito preocupado com a juventude.
MCS Muito à frente para a sua época e numa aldeia não era comum.
ACS Depois, decidimos que seria um casamento simples. Não havia tempo para preparar um grande casamento. As nossas famílias…
MCS Foi um grande casamento, mas um casamento pequenino. (sorri)
ACS As nossas famílias e uns quantos amigos próximos, que eram os meus colegas da universidade e os colegas da universidade da minha mulher. Portanto, foi um casamento simples, de tal forma que o copo-d’água ocorreu na casa da minha própria mulher.
MCS Uma casa antiga, com uma cozinha e uma sala de jantar grandes. Fizemos tudo lá, exceto o bolo de noiva. A festa foi muito pequenina. Podemos mostrar-lhe uma fotografia na escadaria de São Vicente de Fora, com todas as pessoas. Verá que é um grupinho muito pequeno. Umas 30 pessoas.
ACS Foi uma festa muito íntima. A minha mãe e a tia da minha mulher não deixavam de pensar na nossa partida.
MCS Bem, a minha sogra chorava como uma Madalena. Só me pedia que não o deixasse ir sozinho.
ACS É natural. Pensavam com certeza no que poderia acontecer a estes dois, sozinhos, longe, sem conhecerem ninguém, numa ausência que seria pelo menos de dois anos.
O que é que custou mais, nesse período?
ACS Inicialmente, senti revolta por não me ter sido concedida autorização para continuar os meus estudos. Tinha terminado o 3.º ano e consegui completar o 4.º ano de Finanças do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras enquanto estava como aspirante nos Pupilos do Exército. A minha ambição era licenciar-me. Os meus pais tinham apostado muito na educação de todos os filhos, quatro. Tinham feito o seu sacrifício. Faltava-me apenas um ano para terminar. A dúvida que levei para Moçambique foi se conseguiria e como conseguiria a licenciatura.
Que expectativas levavam?
ACS A maior era de que íamos estar juntos, íamos proteger-nos um ao outro. Que um seria o conforto do outro. E que, sendo assim, haveríamos de aguentar.
MCS O cimento que nasceu aí ficaria para toda a vida.
O que é que recorda também desse jovem marido?
MCS Recordo um rapaz muito desportista, muito inteligente, muito empenhado naquilo que metia na cabeça, que desde sempre disse que queria ser professor universitário.
ACS Fui educado para ser professor universitário.
O que se mantém desse jovem?
MCS A expressão. E o entusiasmo. Quando mete uma coisa na cabeça é para seguir em frente.
É, portanto, teimoso.
MCS Não diria que é teimoso. Muito determinado…
ACS Sentimos que fomos feitos um para o outro, sabe? A gente casa no dia 20, e eu já sabia que ia embarcar no dia 31, isto é passado 11 dias. Então, o que seria a lua de mel? O meu pai, que tinha um Volkswagen, Carocha, emprestou-me o carro para ir à serra da Estrela. Mas eu já sabia que passados cinco dias do meu casamento tinha de me apresentar no quartel da Polícia Militar, para fazer de oficial de dia, deixando a minha mulher sozinha em casa dos tios. Felizmente, depois do jantar, o capitão disse-me “olha, vai dormir a casa”. E lá fui dormir a casa. Portanto, repare a pressa, como que tivemos de preparar tudo. Casar no dia 20, saber que embarcava no dia 31, conseguir que a minha mulher tivesse um bilhete para ir no mesmo paquete, tentar pôr em malas aquilo que precisaríamos e que era essencial.
Como foi a chegada a Moçambique?
ACS Chegámos no dia 16 de novembro. Seis dias depois, dá-se o assassinato do Kennedy, um político moderno. Tanto a minha mulher como eu tínhamos uma grande atração por esse político norte-americano. Estávamos em casa, com o rádio ligado, uma casa que nos tinha sido emprestada para nos acolher no dia da chegada e na semana próxima.
MCS Era hábito que as pessoas viessem passar longas férias na chamada metrópole. E essas pessoas, mais velhas do que nós, estando na metrópole de férias, abriram-nos a casa.
ACS Portanto, é assim que a nossa vida a dois começa. De uma forma muito unida, nesse fim do mundo que era para nós, na altura, Lourenço Marques, hoje Maputo.
Então, falem-me de África.
MCS África era um mundo completamente novo. Uma aventura. “Aqui até se respira melhor”, era o que costumava dizer. Lourenço Marques tinha umas avenidas muito largas. É claro, quando chegámos houve o problema de saber onde é que íamos ficar. O meu marido lá lutou para, pelo menos, podermos ficar em Lourenço Marques, o que foi muito bom, como calcula. Entretanto, fui falar com o reitor de um dos liceus. “Olhe, estou aqui, acabei de chegar, e venho oferecer os meus serviços. Tenho experiência docente.” Aceitou logo, porque havia muita falta de professores, sobretudo de Português. E, apesar de ser de germânicas, estava muito inclinada a ser professora de Português. E muito apta.
O que levaram nas malas?
MCS Alguma roupa. Porque trabalhávamos muito, não tínhamos muito tempo para cozinhar. Mais tarde, tivemos uma casa com cozinha e fogão. Mas, primeiro, comíamos na messe dos oficiais.
E como era a vida na messe?
ACS A comida até não era má. Devo dizer que fomos surpreendidos positivamente com Lourenço Marques. Apresentou-se uma cidade bonita, bem traçada, grandes avenidas, cheias de jacarandás. De tal forma que os jacarandás influenciaram o nome da minha filha. Havia uma rua onde íamos com alguma frequência tomar café que tinha uma profusão de flores de jacarandás. Era a Rua da Princesa Patrícia. Patrícia era um nome bonito.
MCS Também porque era princesa. Rua da Princesa Patrícia.
Para África levou o problema da licenciatura incompleta. Como resolveu então o problema?
ACS É óbvio que tinha de prestar o serviço militar e fazer aquilo que me competia num serviço de contabilidade. Mas, como despachava os meus assuntos com uma certa rapidez, pude continuar a estudar com base nos apontamentos que os meus colegas de Lisboa me mandavam. Deixei aqui, na Universidade, amigos que tinham o cuidado de apanhar as sebentas e tirar apontamentos que entregavam ao meu sogro, e que ele despachava para Moçambique. De maneira que passado um ano tomo um avião para Lisboa. Deixei a minha mulher sozinha durante um mês – foram umas saudades terríveis que passei aqui em Lisboa, ela tão longe.
MCS Fiquei em Moçambique a trabalhar. A dar aulas.
ACS Mas ficou com o Renault Dauphine que tínhamos comprado com um empréstimo do Montepio para a levar à escola e para ir para o meu emprego. Portanto, em 1964, passei aqui em Lisboa um mês a fazer exames. De tal forma correram bem que fui o melhor aluno do curso.
Consta que a Renaut Dauphine andou quilómetros.
ACS Pensámos que, estando em África, tínhamos de conhecer África. Aproveitámos os fins de semana e as férias para desbravar o continente.
MCS Os carros que tínhamos eram… coitadinhos. De vez em quando havia grandes aventuras.
ACS Grandes aventuras. Desde a Ponta do Ouro (praia no extremo sul), que era a fronteira entre Moçambique e a África do Sul, até ao Bazaruto (arquipélago) conhecemos tudo. Depois, conhecemos também a África do Sul, o Kruger Park, o Transvaal. As viagens foram um ponto alto da nossa vida em Moçambique.
Qual dos dois é mais aventureiro?
MCS/ACS Ambos, muito.
MCS Há dias, a ver um programa daqueles que nós gostamos, no National Geographic ou no Odisseia, verificámos que tínhamos feito todos os erros no Kruger Park. O elefante só ao cair do dia, os hipopótamos, que achávamos muito ternurentos e são terríveis, os bisontes. Até comentei: “Marido, fizemos as asneiras todas”.
ACS Penso que a nossa atração por programas televisivos de Natureza vem de Moçambique. Gostávamos muito de contactar com a Natureza.
MCS As praias eram lindas. A areia branca, o mar azul.
ACS Falar das aventuras que tivemos aí daria quase um livro.
Suponho que haja registo de muitas delas.
ACS O que é que nós fazíamos nessas viagens? Filmar. Gostávamos muito de filmar. Tinha máquina de filmar, de projetar, de colar.
MCS Ainda temos essas imagens.
ACS Passávamos tardes a tratar disso. Fora da parte militar, e quando não estávamos em viagem, dedicávamo-nos a preparar os nossos filmes. Era cortar aqui, cortar acolá, introduzir o som. Conseguíamos introduzir o som através de um gravador. Conseguimos fazer desenhos animados. Sabe, éramos estudiosos dos Cahiers du Cinema. Líamos muito sobre cinema. Éramos apaixonados pelo cinema. O objetivo era mostrar a nossa habilidade aos amigos e, mais tarde, à família. Eram momentos únicos da nossa vida. E nós queríamos deixá-los registados.
Falando das primeiras discussões…
MCS Toda a gente tem.
ACS Todo ocasal pode ter um amuo aqui ou acolá. Mas os nossos são muito raros. De tal forma que não retemos isso.
Qual é o maior motivo doméstico de discussão?
MCS Não sei. Posso dizer que é mais arrumado do que eu.
ACS Sou muito arrumado e ordenado. Diferenças? A minha mulher é muito mais expansiva do que eu sou. Sou mais reservado. Mais racional.
MCS Somos complementares. Se for igual, não funciona. Mas, voltando ao cinema: mal percebemos que havia um cineclube inscrevemo-nos. Vimos tudo o que não se podia ver aqui. Vimos o Eisenstein todo, vimos os filmes proibidos, vimos tudo, porque eles eram mais soltos. Cheguei a traduzir legendas de filmes para o cineclube.
ACS E quem era que lá aparecia? O Zeca Afonso. Chegámos a encontrar-nos nessas reuniões de filmes.
MCS Uma vez fomos a um concerto dele. “Quando sairmos daqui vamos todos presos”, diziam as pessoas. Ninguém foi preso.
ACS Foi um tempo de aventura. Foi uma vida a dois, em que não havia tempo para as discussões que se imaginam entre casais.
MCS Tínhamos ido para um mundo longe e tínhamos de tomar conta um do outro também. Não havia ajudas de lado nenhum, tínhamos de dar um ao outro, e tínhamos de andar para a frente. A nossa experiência correu tão bem que um amigo nosso disse que vinha à metrópole buscar a mulher. (sorri)
E sem a angústia de ter o marido na frente de batalha.
ACS Tivemos sorte. Primeiro, estive no quartel-general, depois na contabilidade e pagadoria. Dei-me bem com os oficiais, foram relações muito corretas. De tal forma a nossa relação afetiva com Moçambique foi importante que decidimos levar os filhos e netos a visitar o que nós vivemos. Em 2008, era presidente de República, depois de uma visita oficial, passámos para uma privada, em que fomos mostrar-lhes todos aqueles lugares. Levei-os mesmo ao Bazaruto, onde tínhamos tido uma aventura, que não vou contar agora, porque é demasiado longa.
E uma menos longa?
ACS Imagine-se num Volkswagen de um amigo no meio do capim quando o carro se parte. Uma pane numa picada. Como sair dali? Apareceu um negro com uma bicicleta.
MCS E com uma catana.
ACS Aproximou-se de nós, lá nos informou que a uns 10 quilómetros havia quem pudesse ajudar-nos. Alugámos-lhe a bicicleta, mas dos três amigos só eu sabia andar de bicicleta. Aquilo não era estrada. Era areia.
MCS Tivemos sorte. Tu eras muito ginasticado e muito atleta.
ACS Era corredor de 110 metros barreiras e cheguei a ir a Angola fazer demonstrações, integrado numa equipa de Lisboa. De qualquer maneira, era uma picada de areia. A certo momento vejo aproximar-se um carro onde vinha a minha mulher e os outros amigos. E o motorista diz: “Estes levo-os, mas o senhor tem de continuar de bicicleta”. Lá fui. Tudo isto para reforçar a ideia de que África foi uma experiência inesquecível.
Como foi regressar a Lisboa?
ACS Quando regressei, em novembro de 1965, já trazia um convite para assistente da universidade. Vim com essa promessa de emprego. Partimos para Lisboa, de avião, deixando todas as malas, que viriam depois, de barco. Nessa altura, fui também convidado para investigador da Gulbenkian, no Centro de Economia e Finanças. Portanto, o meu primeiro emprego foi pensado a partir de Moçambique.
MCS Temos uma ligação muito forte a Lisboa, gostamos muito de Lisboa.
ACS A minha mulher passou a vida dela em Lisboa.
MCS O meu marido ainda esteve um tempo no Algarve. Eu apenas nasci lá. Portanto, era também o reencontro com uma cidade de que gostávamos muito. Quando chegámos já tinha começado o ano letivo. Depois engravidei e vomitava tanto que dar aulas deixou de ser uma prioridade.
Como encarava a paternidade?
ACS Muito sentido de responsabilidade. E com este pensamento, sempre: “O que é que eu vou fazer no futuro para, juntamente com a minha mulher, criarmos as condições para os meus filhos”. De idades muito próximas. Primeiro uma menina, e passado um ano, o rapaz.
MCS Da Patrícia passei mal. Do Bruno, melhor. Ele adorava ser pai. Em África, não quisemos ter filhos porque eu trabalhava muito e precisávamos desse lastro de dinheiro para começarmos a nossa vida no regresso.
ACS Estava na Gulbenkian, mas rapidamente comecei a pensar que não me bastava ser assistente da universidade. Tinha de fazer o meu doutoramento. E o professor com que trabalhava aconselhou-me a ir para Inglaterra. Outra decisão difícil.
MCS Mas na mesma linha: para onde vai um, vão todos.
ACS A minha filha tinha quatro anos e o meu filho três. De maneira que em 1971, setembro, tomamos um ferry em Lisboa, o Eagle, que nos levou para Southampton. A nossa primeira preocupação, e a minha mulher pode falar sobre isso, eram os filhos.
MCS Nessa altura, não havia ecografias, mas o meu marido sempre disse que ia ser uma menina. Um homem quer sempre um filho. O meu marido, não. Uma menina. E assim foi.
ACS Quando fui pai, trabalhava muito. Tinha de preparar as minhas lições e a minha investigação. Começava as aulas normalmente às oito horas e o trabalho estendia-se até ao fim do dia. A minha mulher foi decisiva na relação com os nossos filhos. A nossa maior preocupação ao chegar à Universidade de York eram os filhos.
MCS A Patrícia ia fazer cinco anos. Foi para a escola. Logo no primeiro Natal fez de Virgin Mary. O meu filho ficava em casa comigo e quando ia aos chás com amigas inglesas e o levava, chorava. Provavelmente porque me via falar umas palavras que ele não entendia.
Em Inglaterra não trabalhava?
MCS No aeroporto assinei um papel em como me obrigava a não ganhar nada.
ACS Na Universidade de York, como tínhamos filhos, foi-nos atribuída uma casa no campus, uma casa com um jardim na frente. Não conhecíamos ninguém em particular, levava comigo apenas a indicação de quem ia ser o meu supervisor. Um dia, batem à porta. Era um negro que me disse “sabe, sou o único português aqui na Universidade. Chamo-me Fernando Honwana”. Entrou, começámos a conversar, percebemos que na nossa estadia em Moçambique tínhamos contactado com a família dele.
MCS A irmã dele foi minha aluna. O irmão, Luís Bernardo Honwana, estava preso. Tinha publicado, na altura, o “Nós matamos o cão tinhoso”, livro que me marcou muito, que li e que tenho autografado por ele. Portanto, foi como se já conhecêssemos o Fernando.
ACS Tornámo-nos grandes amigos, de tal forma que o Fernando vinha à nossa casa tomar chá e jantar. Gostava imenso de sopa. Uma relação tão próxima que lhe pedíamos que ficasse com os nossos filhos quando saíamos. Era um rapaz simpático, inteligente, estabelecemos uma relação muito amiga com o Fernando. Um dia, entra-nos em casa com um ar muito sério, e diz, “venho-me despedir”. “Se voltar para Moçambique, sou mobilizado, mas eu estou contra o exército português. Por isso, vou para a Tanzânia, e juntar-me-ei à FRELIMO.” Foi uma despedida triste. Íamos perder alguém que nos era próximo. De facto, perdemos o contacto. Mais tarde, já era primeiro-ministro, recebi a notícia do desastre aéreo que vitimou Samora Machel. O Fernando ia no avião. Era então um destacado general, prestes a ser nomeado embaixador em Inglaterra. O pai e a mãe do Fernando vieram visitar-nos quando eu era primeiro-ministro para agradecer a amizade que estabelecemos com o filho.
MCS A nossa ligação a África é de tal maneira forte que, quando o meu marido terminou a licenciatura, o presente que tinha à espera dele em Lourenço Marques era um desenho do Malangatana. Mas, para conseguir o desenho – que me custou 300 escudos -, tive de ir ao Bairro do Caniço. Muito discretamente.
ACS A PIDE andava em cima dele.
MCS Os amigos sabiam como lá chegar, mas era tudo clandestino.
ACS No regresso a Moçambique, depois dos exames em Lisboa, ia todo dorido de saudades de um mês de ausência.…
MCS Dorido de saudades é muito bonito.
ACS E não só reencontro a minha mulher como tenho à minha espera um desenho do Malangatana. Afinal ela não se esquecera de mim. Até pensara num presente. (ri)
Algum dia teve medo de a perder?
ACS Não. Nós sentimo-nos protegidos um pelo outro. Andamos sempre de mãos dadas. Voltando a Inglaterra, um dos aspetos igualmente positivos da estadia em York foi podermos conhecer o norte da Inglaterra, a Escócia e os países escandinavos. Foi interessante explicar aos nossos filhos que o monstro de Loch Ness não existia. Portanto, somos mesmo grandes viajantes.
MCS Mas aí o carro já era melhor. (ri)
ACS Conhecemos a Suécia, a Noruega toda.…
Quem é que preparava essas viagens?
ACS Não havia agência de viagens. Era o mapa, nós e o mapa. Partíamos sem saber onde dormir. Em Estocolmo, andámos à procura de um hotel que nos acolhesse. E, tal como em Moçambique, fizemos novos amigos.
MCS Em York havia amigos da Argentina, da Polónia, da Suíça, de Espanha, do Brasil. E até havia uma da Sibéria.
ACS A Valentina tinha um medo do KGB que não imagina. E havia uma polaca, a Irina, que a provocava. Dizia mal do comunismo.
MCS Porque a polaca tinha sofrido e continuava ainda a sofrer com o controlo soviético. Lembro-me que uma das vezes que o lago da universidade gelou, a Valentina, coberta com um xaile russo, apenas, disse: “se estivesse frio, até parecia que estava n a Sibéria”. É nós a bater o dente.
Como era a vida lá?
MCS Quando não há nada para fazer, invento. Fui aprender italiano, melhorar o meu alemão, dar aulas de inglês sobretudo às mulheres dos espanhóis, uma desgraça com o inglês. E cozinhava muito, aí tinha uma boa cozinha e um bom fogão.
ACS As sopas eram famosas. Iam lá só para comer a sopa.
MCS Fazia uma panela muito grande. Já sabia que eles passavam pela minha casa e diziam logo, “Maria, may I have a bowl of soup?”. Era a sopa dos pobres.
O que disse ao marido na manhã do doutoramento?
MCS Que ia correr tudo bem.
Houve presente de doutoramento?
MCS Não houve. Não encontrei nada tão original quanto o de licenciatura.
ACS Depois do doutoramento, ficámos ainda cinco meses em Inglaterra. Regressámos a Lisboa no dia 15 de abril de 1974.
Entra a política em cena.
ACS Como já percebeu, o meu sonho profissional era ser professor universitário.
MCS Catedrático.
ACS Depois do doutoramento, fui convidado a ficar em York a ensinar. E ainda lecionei um semestre. Mas depois regressámos.
MCS Já tinha havido o golpe das Caldas.
ACS O contacto com uma democracia avançada, que era a inglesa – a ministra da Educação era Margaret Thatcher e o primeiro-ministro Edward Heath -, deu-nos uma visão importante do Mundo. Estávamos em York durante a greve dos mineiros. Não tínhamos gás, eletricidade, anunciavam os dias em que podíamos tomar banho com água quente.
MCS O pior era o fogão. Não podia fazer comida.
ACS Regressámos a Portugal dez dias antes do 25 de Abril, fomos apanhados em toda a confusão. Chegámos e, face à confusão, amigos que tínhamos agora no estrangeiro aconselhavam-nos a sair.
MCS Eu só dizia “vamos embora”.
ACS Eu tinha um instrumento válido, que era o reconhecimento internacional do meu doutoramento. Mas sempre disse à minha mulher que a confusão não podia durar muito. O país não aguentaria. Neste contexto, fui surpreendido pelo bom senso evidenciado por Francisco Sá Carneiro. Foi por isso que aceitei, a certo momento, ajudar a escrever o programa do partido. Apenas uma contribuição cívica, não mais do que isso. Aliás, nessa matéria da política, devo dizer que a minha mulher nunca teve atração partidária.
MCS Nunca tive atração pela política. Enfrentei mesmo Francisco Sá Carneiro quando lhe disse que o meu marido era um professor muito bom, o professor catedrático que toda a vida tinha desejado ser, e ele a insistir para que fosse o seu ministro das Finanças. Resposta imediata: “Professores catedráticos há muitos, mas para meu ministro das Finanças só quero o seu marido”.
Portanto, foi contra a entrada do marido na política.
MCS A ponto de ter dito uma vez que o meu marido na política só por cima do meu cadáver.
ACS Devo dizer que a minha mulher sempre me apoiou nos caminhos da política. É óbvio que…
MCS A partir do momento em que escolhe, está escolhido.
Nunca disse, estás a ver, eu tinha razão?
MCS Nunca.
ACS Até porque nunca trouxe para casa os problemas do Governo nem os problemas da Presidência da República. Por outro lado, a minha mulher decidiu manter a sua profissão de professora na Universidade Católica, e ela pode explicar como isso foi importante na nossa vida.
MCS Enquanto estive em São Bento – e nós tivemos de ir para São Bento por uma questão de segurança, uma vez que ali ao lado morava um representante da UNITA, que vivia constantemente sob ameaça de bomba.
Custou deixar esta casa?
MCS Não foi assim tão mau. Em São Bento, há um jardim muito bonito. E os meus filhos habituaram-se. A Patrícia já estava mais avançada, o Bruno, que ia atrás, também já estava na universidade. E eu trabalhava muito. Sim, esse foi um ponto de honra, continuar a trabalhar. Quando fomos para Belém, aí pôs-se o problema. Seria possível conciliar? De qualquer maneira, nessa altura já estava a atingir a idade de reforma. Faltavam dois anos. Porém, fiz questão de terminar o ano letivo em curso.
Nunca ouviu nada de desagradável nos corredores da faculdade?
MCS Nada, nunca. Às vezes diziam assim “ah, não sei como aguenta”. Respondia sempre que sem as aulas é que não conseguiria aguentar. As aulas, a sua preparação. Tratava-se da minha vida, da minha cabeça, do meu mundo. Era um escape. E por isso foi tão importante manter a minha profissão.
Nunca se arrependeu de ter trocado a academia pela política?
ACS Senti sempre uma certa saudade da universidade, dado que gostava muito de dar aulas. Mas, quando escolhido para desempenhar uma certa função, empenho-me ao máximo. Em maio de 1985, fui eleito, de forma surpreendente, líder do PSD. Poucos meses depois, fui nomeado primeiro-ministro. Não tinha experiência política ainda que como ministro das Finanças e do Plano tivesse observado muito o exercício da função de primeiro-ministro. Com o Francisco Sá Carneiro, fui aprendendo. E, sabe, sou muito organizado.
MCS Muito profissional.
ACS Metódico, muito organizado e profissional nas funções que me são atribuídas. Era importante que a minha mulher estivesse na vida profissional dela, de que gostava tanto.
MCS A Universidade Católica estava a começar. Um dia, através do meu marido, chega informação de que precisavam muito de uma professora de Português. Não estava a fazer nada de especial, e dar aulas foi sempre o que gostei de fazer. Monetariamente, não era nada de especial, mas era algo que me realizava.
Em algum momento se arrependeu de entrar na política?
ACS Quando se assumem funções destas, não podemos pensar em arrependimentos. Temos de fazer o melhor que podemos.
Como é que o casal convivia com a crítica. Liam jornais?
ACS Os gabinetes de apoio mandavam-nos muitos recortes. Mas, sempre fui cuidadoso em relação à seleção daquilo que justificava a minha atenção, pondo de lado aquilo que entendia que apenas me prejudicava do ponto de vista psicológico. E, assim, consegui viver relativamente bem com as dificuldades que enfrentei no exercício das funções de primeiro-ministro.
Fale-me delas.
ACS As dificuldades foram sendo ultrapassadas porque estabeleci algo muito importante: a distinção entre Governo, por um lado, e partido e grupo parlamentar, por outro. Como primeiro-ministro e chefe do Governo, sempre disse que tínhamos um programa para cumprir, e que iria ser cumprido. O combate político, esse, ficaria reservado para o partido e para o grupo parlamentar. Mas isso, neste momento dos 60 anos de casamento, não é tema essencial. (sorri)
De que maneira apoiava o marido mediante críticas na comunicação social, por exemplo?
MCS Acreditava nele, sempre.
ACS Em casa, podíamos falar, trocar impressões, mas a política não dominava a nossa vida pessoal. Sempre fizemos questão de manter a nossa intimidade.
MCS Apareciam tantos disparates sem ponta por onde lhes pegar.
ACS Normalmente, não trazia a política para casa. Aqui, eram a minha mulher e os meus filhos.
Nunca o viu triste?
ACS Posso responder eu. Triste, por causa da política, julgo que nunca me viu. Preocupado, sim. Mas não se metia nisso. Por exemplo, uma remodelação ministerial é sempre um momento difícil e de uma grande preocupação. Mas não era a minha mulher que ia resolver esse problema.
A política tirou a possibilidade de viajarem em aventura?
ACS A pergunta conduz-nos a outros aspetos pessoais. Sobretudo, à nossa ligação ao Algarve, onde vamos com frequência. Mas quero dizer-lhe: apesar de tudo, há boas recordações da política. Tenho muitos momentos de boas recordações, e a minha mulher também.
MCS Fizemos amigos.
ACS Aquilo que retenho hoje de maior satisfação foi o contacto com a população. Visitei todos os concelhos de Portugal. Organizei, enquanto presidente da República, sete roteiros. Contactei com milhares e milhares de pessoas, dando voz à população e levantando questões e causas que eram do interesse de todos, como a inclusão social, a juventude, a ciência ou o património histórico e cultural.
Quais as personalidades que mais vos marcaram e porquê?
MCS Marcaram-nos muito os três papas que conhecemos: João Paulo II, Bento XVI e Francisco. Guardamos boas memórias dos nossos encontros com cada um deles. O Papa João Paulo II pela paz que irradiava, o Papa Bento XVI pela sua sabedoria serena e o Papa Francisco pelos seus gestos inesperados. Cada um deles deixou em nós uma impressão muito forte.
Falem-me das campanhas eleitorais.
MCS Agora já não teria paciência. Mas, como nos apoiávamos muito, onde estava um estava o outro. Isso ajudava-me também a ajudá-lo.
Mas devia acabar uma campanha arrasada.
MCS Um bocadinho.
Gostou de ser primeira-dama?
MCS Quando cheguei a Belém já tinha sido criado pelo presidente Sampaio o gabinete de apoio à primeira-dama. Que foi uma grande ajuda na concretização do que queria fazer. A minha ligação à cultura e à língua fez com que criasse uma noite de poesia que não era propriamente uma brincadeira. Era um evento de prestígio, com participantes prestigiados. E também um momento feliz de que gostava muito. Depois, estive sempre muito próxima a instituições ligadas a pessoas com dificuldades especiais. De tal maneira que deixei em Belém, um palácio antigo sem qualquer adaptação a essas necessidades, vários corrimãos e um elevador para cadeira de rodas.
Gosta de poesia?
ACS Sou muito mais dado a números. E a minha mulher é dada às letras e à cultura. Portanto, sou um leitor assíduo de matérias técnicas, e de outras que reforcem o meu conhecimento. Aqui está um livro que acabei de ler, “Pátrias” (Garton Ash), um livro extraordinário.
MCS É romântico com números.
ACS É verdade. Quando a minha mulher fez 80 anos, resolvi fazer um cálculo. Quantas noites ao longo destes quase 60 anos não dormi com a minha mulher? A maior separação foi quando, estando em Moçambique, tive de me deslocar 30 dias a Lisboa para concluir a licenciatura. Mas, depois disso e apesar da minha vida política intensa, encontro poucos dias em que não tenha dormido com a minha mulher. Cheguei à conclusão que era muito menos do que 1% dos dias de casados. Depois de deixar de ser presidente da República, estive a olhar novamente, e cheguei à conclusão de que devia ser menos de 0,1%. Conto três casos: os funerais de Bush, do Grão-Duque do Luxemburgo e o de Kohl, em que estive em representação e Portugal. Portanto, pouquíssimos dias, desde que deixei de ser presidente em que não tenhamos dormido juntos. Sabe, sentimo-nos muito bem um com o outro. É uma coisa natural.
Não perguntei quando falámos do casamento. Pergunto agora: teve anel de noivado?
MCS Não, mas já me vinguei. Nos 25 anos, comprei dois anéis ligados, nos 50 mandei fazer um com 50 pequeninas pérolas.
Nas bodas de diamante, só cabem diamantes.
ACS O nosso maior presente é estarmos aqui, com uma saúde razoável, para a idade que temos. Sessenta anos de vida em conjunto têm dado muitos momentos de satisfação. E entre esses motivos de satisfação estão os nossos filhos e os nossos netos. Mas está também, repito-me, as férias que passamos no Algarve, juntamente com toda a família. Na nossa casa da Gaivota Azul, que mereceu um poema de Vasco Graça Moura que guardamos com muito carinho. Tenho também no Algarve uma pequena propriedade que já vem dos meus bisavôs. Gosto muito de pôr as mãos na terra.
O que colhe e planta?
ACS Tenho muitas laranjeiras. Muitas ortaniques, cruzamento de laranja e tangerina, inventada há uns 40 ou 50 anos na Jamaica. Tenho também goiabas, limões, uvas, galinhas. Estão no Algarve as nossas raízes. Ainda estão lá familiares, irmãos, uns primos que são a nossa ligação a Boliqueime. Às vezes vamos à missa a Boliqueime, numa igreja que fica defronte da minha escola primária.
Nunca mais voltaram a Olhos d’Água?
ACS Não gosto, está muito diferente.
MCS Não regresses a um sítio onde foste muito feliz. Temos a praia da Coelha.
O dia a dia de hoje, como é que é passado?
ACS O dia a dia da semana está muito ligado ao meu gabinete de trabalho da Rua do Sacramento a Alcântara. A minha mulher e eu vamos quase todas as tardes para lá. É lá que recebo as pessoas que querem falar comigo.
MCS Aquilo ainda estava em obras e ele já dizia “aqui é para ti”.
ACS O edifício, o antigo Convento do Sacramento, pertence ao Ministério dos Negócios dos Estrangeiros, exceto uma ala, 10%, que pertence à Presidência da República. É lá que faço os meus estudos, estudo muito, sabe? E as minhas investigações académicas. E até as minhas caminhadas com a minha mulher, no claustro. Portanto, este é o nosso dia a dia profissional.
Começa muito cedo?
MCS Agora, acordamos um pouco mais tarde. Houve demasiadas madrugadas ao longo de uma vida inteira.
ACS De manhã, o que é que eu faço? Recebo todos os jornais em papel. Faço a minha seleção, na leitura. Para ler ao serão, com mais profundidade, guardo sobretudo os estrangeiros. Recebo diariamente “Le Monde”, “Financial Times” e, no computador, “El País”. Ao fim de semana, “Time”, “The Economist” e “L’Express”. “The Economist” é uma revista que me acompanha desde os tempos de estudante universitário. Considerada a melhor revista do Mundo.
E ainda folheia os Cahiers du Cinema?
ACS Agora desbravamos a Netflix, a HBO, a Amazon, o Disney. O que é que estamos a ver agora?
MCS “A small light”. “A small light” é sobre Anne Frank, mas sobretudo sobre o casal holandês que protegeu os judeus. Bem, e como disse, não há programa da Natureza que nos tenha escapado. Não há um único. Somos uns fanáticos do Attenborough. Conhecemos de facto de tudo. Mas também lemos. E não nos cansamos um do outro. Sabemos todos que a vida e um casamento são um longo exercício de paciência. E esse longo exercício de paciência, com o amor que nós temos um pelo outro, é uma coisa bonita.
O envelhecimento pesa para os dois da mesma maneira?
MCS Temos tido sorte. As pessoas dizem-nos “estão tão bem”. Temos tido a sorte de não envelhecer muito rapidamente. Envelhecer bem ajuda. Mas, é claro, vamos tendo os nossos achaques que superamos amparados pelo doutor Daniel Azevedo de Matos. Por exemplo, há pouco, antes de chegarem, estava horrível. Por causa das vacinas da covid e da gripe.
ACS Fomos ao Centro de Saúde da Amadora tomar as vacinas da gripe e da covid. A minha mulher ficou um bocado enjoada. Temos de aceitar que o passar dos anos obriga a prestar mais atenção à nossa saúde. É o que nós fazemos, com confiança total no doutor Daniel de Matos. Foi nosso médico na Presidência da República e continua a apoiar-nos.
MCS Houve um gesto do meu marido que acho muito bonito e por isso vou contar. Quando fui operada a um tumor na cabeça.
ACS Não maligno. No tempo da covid, em 2020.
MCS … O meu marido quis estar comigo. Então, foi para o hospital, mas logo o avisaram de que não podia ficar. Tanto insistiu que lhe disseram: “Se quer ficar tem de ficar todo o tempo de internamento. Não pode entrar e sair”. E ele ficou.
ACS Dormi oito dias no hospital, no quarto, com a minha mulher.
MCS No final, os médicos disseram que a presença dele ajudou muito à recuperação.
ACS O contrário também aconteceria.
MCS Mas tu, graças a Deus, tens uma saúde de ferro. Eu enjoadíssima e tu nem sentiste as vacinas.
Têm cuidado com a alimentação?
ACS O facto de sermos algarvios e passar férias no Algarve ligou-nos muito à comida mediterrânica. Posso dizer que como salada praticamente todos os dias, que o nosso jantar começa sempre com uma sopa e que no Algarve é o carapau, a sardinha, o peixe grelhado. Os tomates e os pimentos da minha horta.
MCS No Algarve comemos sempre na rua, numa mesa de azulejos que uma vizinha fez e nos ofereceu.
ACS Devo dizer que todos os dias faço três quilómetros a andar. Em casa, um quilómetro e meio no tapete, passando o tempo a olhar para a Avenida Infante Santo. No claustro do Sacramento, outro quilómetro e meio. A minha mulher também caminha.
Sempre passou a imagem de frugal.
ACS Sim, sou frugal.
Não são gulosos?
MCS Eu, sim. Mas esquisita. Não é qualquer coisa que me atrai.
ACS Num balanço geral, achamos que a vida nos tem tratado bem. E, para isso, muito conta a família. Temos uma ligação muito forte à família.
MCS Temos cinco netos. Uma única neta, a Mariana, a mais velha, a quem digo sempre que é a minha neta preferida. E quatro rapazes. O mais velho começou na Católica, em Gestão, e fez o mestrado em Barcelona.
ACS Está a trabalhar num banco.
MCS Depois, outro rapaz, muito desportista como o avô. Consegue ainda ser mais alto. Fisicamente são muito parecidos.
ACS Está a terminar Engenharia Agronómica.
MCS O mais novo da minha filha está na Católica, em Management. E o mais novo, do meu filho, tem 14 anos e também é da altura do avô.
ACS O mais importante foi a alegria que trouxeram a esta casa. Os meus netos almoçam aqui connosco uma vez por semana. Ao domingo, vem toda a família jantar. Somos onze à mesa. Mas isto não é de agora, é de sempre. Temos sorte, toda a minha família próxima, filhos e netos, moram a 100 metros da minha casa. Sabe, gostamos muito deles, mas também temos a ideia de que eles gostam muito de nós.
Nenhum dos netos se interessa pela política?
MCS Não. Ficou tudo vacinado. (ri)
ACS Uma coisa interessante. Os meus filhos encontraram os seus empregos sem pedirem nada ao pai. Nenhum deles está ou esteve a trabalhar no setor público. E o mesmo acontece com o neto que está já a trabalhar. Por vezes diz-se que os políticos metem cunhas para familiares. Nunca fui confrontado com isso. Cada um arranjou o seu emprego partindo das suas capacidades e dos seus conhecimentos. E isso dá-me uma certa tranquilidade e satisfação.
Dá muitos conselhos de economia aos netos?
ACS Não precisam. Fui excelente aluno a Matemática e na Economia e Finanças acho que ainda me mexo muito bem. Porque estudo bastante, escrevo, faço investigação. Mas, hoje, eles sabem mais do que eu em muitas matérias. O que lhes dizemos é que não vão ter uma pensão de reforma que seja 50% do último vencimento. Portanto, o melhor é começarem a formar poupanças. Quero que tenham consciência de que a vida é exigente. Não basta ser esperto. Para se atingir um certo nível de vida é preciso muito trabalho.
Foram o primeiro casal de políticos, em Portugal, a andar de mãos dadas.
MCS Depois apareceram algumas imitações.
ACS Creio que nos sentimos mais seguros se, a passear, formos de mãos dadas. Eu penso que ela me protege e ela pensa que eu a protejo. Em nós é natural gostarmos de estar dependentes um do outro. Somos dois, mas somos um.
MCS Somos complementares, mas há coisas que nos são fundamentais. Os valores. Da fé, da família.
ACS Da honestidade, da solidariedade, do respeito pelos direitos humanos. A família é para nós a centralidade. Talvez nos possam considerar desatualizados, mas consideramos a família o centro da afetividade e da ajuda intergeracional, o alicerce mais sólido de qualquer sociedade.
Uma família que começou há 60 anos.
ACS Já é um bom número. Cuidando da nossa saúde, ainda festejaremos mais dez anos.
MCS Um dia de cada vez.
ACS Está aqui o nosso álbum de casamento. Veja.
MCS Nestas fotografias, o meu marido tinha 24 anos. Eu mais um ano do que ele. Não estão mal. Foi uma festa simples, mas quisemos ter um bom fotógrafo.
ACS Quando disse que a minha mulher era a mais bonita e inteligente não estava a exagerar. Vê-se por aqui. Veja as fotografias.
MCS Também eras bonito.
ACS Era um lindo rapaz. Era quase uma criança. Casei aos 24 anos. Agora, sai-se de casa dos pais aos 30.
MCS Não fui ao cabeleireiro, não me maquilhei, não tinha creme, nada.
ACS A minha mulher está linda nas fotografias. Passaram 60 anos. Um com o outro, são 60 anos de felicidade.