Marante: “Música pimba não existe, nunca existiu, nunca vai existir”

Primeiro faz a melodia, depois trata da letra. Cada canção é uma história. “Os êxitos não se procuram, acontecem.” Começou a trabalhar aos 11 anos numa casa de miudezas, moço de recados, depois numa drogaria. Litógrafo, carpinteiro, fazia caixas de dominó e mesas de bilhar. Foi à tropa, esteve no Ultramar. Foi ourives e distribuidor de peças de automóvel. Jogou futebol no Salgueiros. Gostava de viola e tinha voz. Perdeu-se um futebolista, ganhou-se um cantor romântico, um dos maiores da música popular portuguesa. Em 1994, foi considerado o melhor cantor do ano em Nova Inglaterra, Estados Unidos. Nunca disse a ninguém (até agora). No passado domingo, dia 20 de agosto, fez 75 anos pela segunda vez - nasceu a 15 de julho, foi registado a 20 de agosto. A idade é um pormenor. Acredita em Deus e no destino - e não sabe rezar.

Mora no rés do chão de um prédio modesto em Gondomar. Abre-nos a porta do seu T4 com menos dois quartos, um transformado em estúdio, outro em sala onde compõe e passa horas nas teclas junto à janela. Está bem-disposto, cheio de genica, à noite tem concerto em Trás-os-Montes. O seu cão Kenzo, preto e de olhar doce, está no terraço. É uma tarde quente de verão, oferece-nos café e água. E começa a conversa.

António Marante é um homem de rotinas, feliz por fazer o que gosta, contente por ter cada vez mais juventude nos seus espetáculos. Dorme muito ou pouco, ou quase nada, conforme a agenda. Vai ao ginásio, toma o pequeno-almoço sempre às oito e meia, dois pães com manteiga, uma caneca de café com leite, um copo de sumo. Coleciona perfumes e relógios.

Tem um novo disco e anda na estrada. Chegou a cantar em cima de tratores e em paragens de autocarro, caiu duas vezes, uma de cabeça. Por via das dúvidas, entra em palco com o pé direito. Uma coisa é certa: não vai cantar até que a voz lhe doa.

É um dos maiores cantores da música popular portuguesa. Este estatuto é a medida do seu sucesso?
Será ou não será. O sucesso não somos nós que o fazemos. O nosso sucesso é-nos dado não só pela comunicação social, pelas televisões, que são uma grande ajuda, mas acima de tudo por quem gosta do nosso trabalho, compra os discos, ouve as nossas canções. Depois há a postura de cada um. Há pessoas que não se identificam muito bem com o sucesso, mas isso é em todas as atividades, não é só na música. É preciso saber dosear o sucesso porque subir demora, descer é rápido, é de um momento para o outro, e nunca mais se sobe.

Fala de postura. Sente-se uma vedeta?
Não, nunca fui. É preciso saber lidar com o sucesso. Se antes éramos humildes temos de continuar a ser. Não é por ter mais ou menos sucesso que se vai deixar de ser humilde.

É um homem rico?
Rico? Por acaso, sou. Graças a Deus, tenho saúde.

Rico de dinheiro. Enriqueceu com a música?
Nunca vou ser rico porque nunca fui rico. Éramos uma família pobre, mas há uma coisa que posso disser: nunca os meus pais me fizeram passar fome. Nunca passei fome. Há, com certeza, muitas pessoas que enriqueceram com a música, abençoadas sejam, mas nem toda a gente pode ter essa sorte.

Tem um novo disco, “Tudo o que sou”, com canções de baile e baladas. Como afina e equilibra um álbum?
Não é fácil. Tudo depende do gosto, da responsabilidade, e de servir quem vai ouvir. Nunca fui pessoa de gravar 12 canções, primar pela primeira, a número um, e depois fazer um preenchimento do disco com mais 11. Nunca gostei disso. Gosto de gravar um disco e quando as pessoas o começam a ouvir não sabem o que vem a seguir, não sabem como é a segunda, como é a terceira, como é a quarta. Despertar um certo interesse para não ser tudo igual.

Sempre fez questão de manter o seu estilo musical.
Exato. Preocupo-me muito com isso. Ouve a primeira canção, pode gostar, pode não gostar, vai experimentar a segunda, o ritmo é diferente, as orquestrações são diferentes, interpretações completamente diferentes. É o que faz com que possamos explorar aquele disco, ouvindo.

Como é o seu processo criativo? Primeiro a letra e depois a música?
Primeiro faço a música, depois é que faço a letra.

Cada canção é uma história com princípio, meio e fim?
Se não for assim, não faz sentido. Faço a letra, a história, mediante o andamento da música. Se for uma balada, é uma coisa. Se for uma música mais ligeira, será outra. Se for tipo rumba-cigana, outra. Não quero falar de, como muitas pessoas intitulam, música pimba. Música pimba não existe, nunca existiu, nunca vai existir.

Porquê? Acha que o rótulo não faz sentido?
Foi um rótulo que lhe aplicaram quando algumas pessoas não gostaram muito da popularidade que certos e determinados artistas tiveram. Entende? Música pimba não existe. Muitos antes de existir o “pimba, pimba” do Emanuel, já existia o mesmo ritmo. É tudo uma questão de ritmo. Não tem nada a ver com pimbas.

Então o título “Deixem o pimba em paz”, do seu amigo Bruno Nogueira, e no qual chegou a participar, é perfeito?
O projeto “Deixem o pimba em paz” é uma sátira, músicas portuguesas interpretadas e orquestradas de uma forma completamente diferente. Foi perfeito. Tudo era diferente do que já estava gravado, ou seja, eram originais. Até o próprio “Som de cristal” estava diferente. Aí é que desperta o interesse, quem estivesse na plateia nunca sabia o que ia aparecer. Foi fantástico.

Nunca sentiu a tentação de usar trocadilhos linguísticos?
Era impossível fazer isso.

Porquê?
Não condiz comigo, não quer dizer que os outros não estejam certos. Acho que não estou dotado para isso. Primo sempre por nunca me preocupar em noticiar, alertar, avisar, para que fiquem a saber o que tive, o que fiz, onde vou, o que ganhei, o que perdi – basicamente é publicidade nos rodapés da televisão. Nunca me preocupei com isso. Em 1994, fiz a primeira digressão pelos Estados Unidos, 18 espetáculos mais um em Toronto. Fui considerado o cantor do ano da Nova Inglaterra, recebi uma placa de um senador da Casa Branca. Nunca disse a ninguém.

É a primeira vez que o diz publicamente?
Nunca disse a ninguém. Nunca fiz questão de me premiar com divulgação.

Discreto, portanto. Incomoda-o quando lê notícias ou vê peças sobre si?
Não incomoda nada. Não só na vida artística, como em outras atividades, há sempre críticos. Há sempre quem goste, há quem não goste. Há uns que gostam muito, outros que não gostam tanto. Mas isso não dá o direito de dizer mal da pessoa. Isso é outra coisa. Agora, estamos sujeitos a tudo, basta estarmos em cima do palco. Se tivermos uma postura não adequada àquilo que as pessoas estão à espera, podemos ser criticados. Estou preparado para isso.

Lida tranquilamente com a crítica?
Embora, interiormente, podemos não saber lidar com isso.

Elas moem?
Podemos interrogar, porquê? Fiz isto não foi com a ideia, sei lá, de provocar alguém ou de fazer uma coisa diferente. O que não consigo fazer é uma coisa diferente da linha musical que tenho.

Sempre fiel ao seu estilo?
Paciência.

É o seu maior crítico?
Muito. E tenho também dois críticos que não são fáceis de aturar: os meus filhos. O meu produtor é o meu filho Luís. A preocupação que tenho é como é globalmente o disco, como aconteceu agora. Eu posso ter uma ideia, ele pode ter outra. Posso aprender com essa ideia dele. Já aconteceu.

Nasceu a 15 de julho, foi registado a 20 de agosto, o que era normal nas aldeias. Este ano já lhe cantaram os parabéns no Marés Vivas, no concerto da Cláudia Pascoal. Faz duas festas de aniversário?
Festejava sempre ao dia 20, começaram a dizer que devemos festejar o aniversário quando nascemos. O 15 de julho era desconhecido totalmente, ninguém sabia. No bilhete de identidade está 20 de agosto, é o que prevalece como documento e para sempre. Depois aproveitei. Ora bem, fazendo a 15 e a 20, há sempre hipótese de receber prendas duas vezes. Às vezes, festeja-se para uns certos amigos, depois festeja-se para outros.

Este ano é especial, são 75 anos.
É fixe, é porreiro. Não se trata de ser mais velho ou menos velho. Trata-se de ser uma pessoa que durou pelo menos até aos 75. Isso, para mim, é o importante. A idade, para mim, não interessa, não adianta nada estar a pensar nisso.

Foi importante estar no Marés Vivas pela primeira vez e cantarem-lhe os parabéns?
Sim. Em primeiro lugar, agradeci à Cláudia o facto de me ter convidado. Não era fácil entrar no Marés Vivas derivado ao estilo musical que tenho. Se bem que a juventude que lá estava, juntamente com aquela que não estava, são os meus maiores fãs, por incrível que pareça. A malta jovem acompanha-me em todos os espetáculos, canta as canções todas comigo, e mais do que uma vez, e isso dá-me muita satisfação. Há pessoas mais velhas que também vão, mas ver aquela juventude toda a vibrar é qualquer coisa.

Consegue perceber porque é que tem mais juventude nos seus concertos?
Acho que começou um pouco num espetáculo que fiz no “Maus Hábitos”, no Porto. Aí foi o despertar de uma situação que via, mas que nunca imaginei que fosse assim. Depois fiz outros, no Lustre, em Braga, no São Mamede, em Guimarães, discotecas e não sei que mais. Através dos festivais, toda a gente vê que a juventude tem uma preferência repartida, não só por ingleses como portugueses, malta jovem e tal. O Marés Vivas foi devido à canção que gravei com a Cláudia, “Onde vais amanhã”. Convidaram-me e eu, ‘sim senhor, não tem problema’.

É interessante a nova geração convidá-lo não só para um festival, como para colaborações.
Sim, partiu da Cláudia e do produtor David Fonseca, para eu gravar uma canção com ela. Fui a Lisboa, gravei. Surgiu o Marés Vivas, ela ia e fez-me o convite.

Para o dia dos seus anos.
Calhou, calhou. O mais importante, no meio disto tudo, foi estar lá. Foi falado, telejornais e tudo, e isso é bom. Mediante aquilo que aconteceu, acho que nem todos, mas alguns espetáculos, como o caso do Marés Vivas e outros festivais, deviam seguir o rumo ou então experimentar. Acho que ia ser um sucesso. Como as Queimas das Fitas, que têm um dia popular, reúnem o cortejo com a festa popular. Eu já fiz isso em Braga, em Coimbra, no Porto. O Quim (Barreiros) vai sempre e fomos com o Quim.

Está a dizer que os festivais deviam ter um dia dedicado à música popular? Seria um sucesso?
Acho que seria. Às vezes, as pessoas não fazem por medo que seja um fracasso. Quando entrei a cantar “A bela portuguesa”, aquilo parecia uma mola, toda a gente se levantou e lá estava juventude. O que têm é de escolher as pessoas indicadas para esse tipo de coisas.

A sua música encaixa-se?
Sim. As pessoas que vão a um festival já sabem o que vão ver, a programação está feita. E depois têm duas coisas: ou vão ou não vão. Ninguém as obriga. No dia da festa popular, está fulano, fulano, fulano, eh pá, impecável, vamos lá, vamos divertir-nos.

A música popular portuguesa resiste por ser genuína?
Tenta resistir. A música portuguesa, sem ser aqueles que são fiéis ao estilo musical que criaram, saía um bocadinho da originalidade, fruto também de alguns avanços de instrumentos e maneira de interpretar as canções, ritmos novos. Mas acho que, muito sinceramente, a música portuguesa poderia estar muito melhor.

Em que sentido?
Acho que se está a tornar muito igual, não há coisas novas.

Sempre a mesma fórmula?
Exatamente. Anda tudo à procura de um êxito e os êxitos não se procuram, acontecem, quando menos se espera. E quem é que faz esses êxitos? O público. Já me aconteceu gravar um álbum e apostar numa canção. Esta é que vai ser boa. E não é por isso. Foi outra canção, a número oito.

Foi o que aconteceu com “A bela portuguesa”?
“A bela portuguesa” foi feita exclusivamente para nós, em 1995, pelo Tó Luís, um grande autor, compositor e intérprete também, um bom músico, juntamente com mais quatro ou cinco, “Canção da Maria”, “Mulher malvada”, “Feitiço cigano”.

Percebeu que aquela canção seria um êxito?
Nunca imaginámos que tivesse o sucesso que teve, que tem, que continua a ter.

Vendeu mais de um milhão e meio de cassetes, esteve em segundo lugar durante quatro meses no TOP+ da RTP…
E nunca fomos ao primeiro lugar.

… até foi usada para um anúncio do detergente Skip. Há algum segredo para esta longevidade?
É impossível, em qualquer lado, seja em Portugal ou fora, não ter de cantar essa canção. Aliás, são basicamente três: “A bela portuguesa”, “Garçon” e “Som de cristal”. É imprescindível, seja onde for. Quando as pessoas saem de casa para ir ver um artista já vão com a cabeça ocupada com uma ou duas ou três canções que conhecem, gostam de ver ao vivo o que está gravado.

Nunca se esqueceu de cantar os seus maiores êxitos?
Não. Continuo a cantar desde o primeiro disco. A primeira canção que fiz foi “Eu não quero mais trocar de amor”, gravada por uma outra editora que existia na altura, a Horizonte. Ao fim de duas semanas, tinha vendido, naquela altura, 500 mil cassetes. Ainda não existiam discos de ouro, de prata e assim. Os vendedores disseram à entidade patronal que queriam dar um prémio aos Diapasão porque, de facto, em tão pouco tempo conseguimos vender tanta cassete. Acho que aquele trabalho deve ter ultrapassado um milhão e meio ou mais de cassetes, fora os LP. E, depois, foram outros.

Quem era aquela “linda portuguesa” de casaco amarelo que aparece no videoclipe da canção?
Segundo aquilo que sei, de que fui informado, era uma funcionária do Carrefour, escolhida pela empresa que fez o vídeo. Só estivemos com ela naquele dia.

Em 1980, surge a banda Diapasão, ou melhor Vira-Latas, nome que pedem para mudar por não ficar bem no jornal. O que aconteceu?
Éramos os Vira-Latas e o logotipo era um buldogue com uns auscultadores. Fomos convidados para fazer uma passagem de ano no Praia Golfe, em Espinho, e o diretor do hotel disse: ‘Ei, Marante, Vira-Latas para pôr nos jornais não fica bem’, não sei que mais, e eu disse-lhe: ‘Olhe, ponha Eclipse só para esta noite’. E foi. Depois saímos, começámos a pensar, fazer eventos em certos e determinados locais com esse nome era um bocado complicado. Como comprávamos os instrumentos e material de som na Diapasão, na Rua Formosa, pensei ‘oh pá, olha, Agrupamento Musical Diapasão’. Diapasão é um instrumento de afinação e ficou. Começámos a nossa campanha, costuma-se dizer, e corrida contra o tempo, no dia 9 de junho de 1980.

Marante e Diapasão. O seu nome diluiu-se na banda e a banda diluiu-se no seu nome?
Tive muitas propostas e ofertas para seguir uma carreira a solo há muitíssimos anos. E a primeira resposta foi logo não, não vou abandonar os meus colegas, nem vou para uma carreira onde possa ganhar mais dinheiro, antes quero continuar a ganhar como eles e quero continuar com os Diapasão. Os Diapasão vão acabar quando tiverem de acabar. Se saísse dos Diapasão com dois, três, quatro ou cinco anos, nunca mais era igual e, se calhar, acabava. Cada um ia para outra banda ou qualquer coisa.

Recuemos uns anos. Nasceu numa aldeia, em Barqueiros, Mesão Frio, aos seis anos mudou-se para o Porto. O seu pai trabalhava na CP, a sua mãe era costureira. Teve uma infância feliz, apesar de o dinheiro ser curto e da vida remediada?
Fiz a primeira classe em Barqueiros e viemos para o Porto. Vivíamos num quarto os quatro, eu, os meus pais, a minha irmã. Acho engraçado falar disso hoje. Dormia numa cama de corda, uma cama que se fechava e abria. O meu pai veio para a CP como servente, passou para capataz de manobras, acabou por subir sempre a ronda, e acabou nas telecomunicações. Foram 55 anos. A minha mãe era costureira, dava dias a costurar e a passar a ferro para pessoas ricas. Fiz a segunda classe na Rua Pinto Bessa, perto da estação, depois abriu a escola nova na Lomba e fiz a terceira e quarta classe lá. Aos 11 anos, não quis continuar a escola.

Aos 11 anos estava numa casa de miudezas, era moço de recados.
Naquela altura, havia o exame de admissão e o meu pai não tinha possibilidade. E eu disse: ‘Pai, quero trabalhar’.

Trabalhou numa drogaria, foi litógrafo, depois passou para uma fábrica de carpintaria e marcenaria, fazia caixas e peças de dominó.
Depois fui para uma fábrica de bilhares na Rua de Santo Ildefonso, foi o último emprego que tive porque depois comecei nas escolas do Salgueiros aos 15 anos, nos juniores. Depois fui para a tropa, regressei, fiz um contrato para casar, acabei o futebol, ainda trabalhei como ourives e como distribuidor de peças de automóveis. Em 1991, já tinha os Diapasão e decidi ser profissional.

O primeiro trabalho, aos 11 anos, foi importante para lhe moldar o caráter? Tornou-o rijo?
Tive um pai e uma mãe que nunca me disseram ‘queremos que sejas médico, engenheiro’, que sejas isto ou aquilo. Decidi sempre aquilo que havia de fazer, embora com a supervisão dos meus pais. Nunca, mas nunca, me disseram ‘deves fazer isto, deves fazer aquilo, tens de ser isto, tens de ser aquilo’.

Quais eram os seus planos e os seus sonhos quando era jovem? Queria ser jogador de futebol?
Tive duas atividades nas quais fui exemplar e responsável pelo que fazia. A partir dos 15 anos, em que começo a jogar futebol, era só futebol. Era um profissional dedicado, era ao futebol que me dedicava. Nunca pisei o risco porque era uma coisa que adorava e adoro ainda hoje. Por acaso, era bom jogador, por acaso.

Diz-se que era bom a driblar, tinha velocidade, era aplicado nos treinos.
Por acaso. Depois optei pela música porque sempre gostei de tocar viola. O meu pai fazia parte do rancho folclórico da nossa terra, tocava viola, ensinou-me três acordes, o que sabia. A partir daí, comprei um livro e comecei a aprender sozinho. Tudo aquilo que sou, musicalmente, devo-o a mim. Trabalhei para isso e continuo a trabalhar. Depois temos a grande ajuda quando saímos de uma editora pobre e vamos para uma que tinha outra dimensão. A Vidisco tem uma quota parte daquilo que aconteceu comigo e com os Diapasão porque para se levar a cabo todos os nossos objetivos temos de ter alguém por trás que seja capaz de também nos dar aquilo que é necessário. É assim desde 1989 até hoje.

Voltando ao futebol, tinha faro para o golo?
Marcava bastantes.

E jogava com a camisola 7.
Camisola 7, extremo-direito.

Uma premonição?
Já tinha de acontecer, mas não tem comparação. A única coisa comparável é a camisola, o número 7. Nada a ver.

Tropa aos 18 anos, mobilizado para Angola aos 20, passou 14 meses num quartel, no mato, perdeu camaradas. O Ultramar deixa marcas difíceis de apagar?
Joguei futebol lá, fui campeão provincial nos Coqueiros, jogava pelo Cazenga. O Ultramar deixa marcas em toda a gente, não só pela guerra, mas também porque ainda hoje há pessoas que sofrem com isso, que estão doentes, sem possibilidade de trabalhar porque ficaram mutiladas. Também aprendi muito, não só estava a defender a minha vida, como passei por momentos muito bons, muito maus, como a guerra nos pode proporcionar. Tenho pena que muitas famílias, mães, mulheres, pais, filhos, tenham perdido os seus entes queridos lá. Foram e nunca mais voltaram.

A sua mulher foi a sua madrinha de guerra, trocaram cartas, conheceram-se quando chegou a Lisboa, casaram-se meses depois. O amor pode acontecer à distância?
Foi um compromisso de madrinha de guerra, escrevíamos cartas por uma questão de conversar. O meu pai não escrevia porque não tinha tempo, a minha mãe não sabia escrever, era analfabeta. Numa ocasião, fizemos uma peça de teatro, “Uma fábrica de malucos”, eu era o maior maluco, coloquei uma ligadura na cabeça, mandei uma foto à minha mãe, ‘ui, o meu filho levou um tiro na cabeça’. Depois escrevi ‘não, não tem nada a ver com tiros, foi isto assim e assim’.

Tratou da sua mulher, Deolinda, até ao fim desde que teve o AVC. Cuidar é um ato de amor?
Foi no dia 26 de abril de 2012, estava a chegar de um espetáculo, normalmente ela estava a ver a televisão lá dentro, era meia-noite e pico, não conseguia ver onde é que ela estava. De repente, ouvi um gemido, entre a mesinha de cabeceira e a cama estava ela enroscada, mal olhei percebi que tinha sido um ataque, sozinho consegui pô-la em cima da cama, chamei os meus filhos, liguei ao meu sobrinho, chamei o INEM. Tinha sido um AVC, a partir daí, foram nove anos. Não quero que tenham pena de mim. Nunca me preocupei em dar uma entrevista para que as pessoas tenham pena de mim. As coisas são para se dizer. Fiz aquilo que tinha de fazer, nunca lhe faltar com nada, porque sabia, e toda a gente sabia, que ela nunca iria ficar melhor. Nada lhe faltou. Tinha duas empregadas, uma para tratar dela, outra da casa. Tive noites em que vinha de um espetáculo e em que me levantava quatro e cinco vezes para levá-la ao quarto de banho, para isto, para aquilo. A situação foi-se deteriorando, 15 dias antes de falecer, sabíamos que não havia hipótese. Pelo caminho, algumas pneumonias, algumas sequelas.

O que é para si o amor?
O amor é uma coisa maravilhosa. Há amor de todas as maneiras e sempre diferentes. Quando encontramos tudo aquilo que pensamos que é o melhor para nós, quando encontramos o que precisamos, quando temos alguém do nosso lado que faz aquilo que mais gostamos e somos recompensados também por aquilo que fazemos. Nunca poderia gostar de alguém que não gostasse de mim, não sei como me sentiria. Mas há uma coisa muito importante: é preciso também saber lidar com o amor porque o amor tem muitos casos bicudos.

Como assim?
Um deles é o ciúme que pode destruir o amor. Outro é a obcecação. Há duas coisas que, para mim, são essenciais: o respeito e a confiança. E nós sempre tivemos isso. A minha mulher foi a três ou quatro espetáculos meus, na passagem de ano ia sempre, as mulheres dos outros músicos também iam, estava ali tudo a conversar. Sozinha, não ia.

É um homem de fé?
Sou. Não fiz comunhão nenhuma, não sei rezar, quando era para ir para a doutrina fugia para ir jogar à bola. Mas sou crente, acredito em Deus e acredito no destino.

O destino está traçado?
Acredito que todos temos um destino.

Traçado por Deus?
Sim, sim. Quando for a hora, lá vamos.

E antes de chegar a hora?
Há exemplos. Tivemos agora aqui uma jovem espanhola que era cega e, de um momento para o outro, viu. Essas coisas não acontecem por acaso porque, se tivesse de acontecer, já tinha acontecido. Essa pessoa tinha o destino traçado. Não sei se vou morrer num desastre de automóvel, já tive para aí uns dez ou doze acidentes, e ainda não fui. Às vezes, digo não é por aqui que eu vou.

Acredita na vida para além da morte?
Não. Acho que não deve haver. A pessoa morre, morreu, acabou. E voltar reencarnado de outra coisa, também não acredito.

É um homem de lágrima fácil, chora com facilidade?
Sou. Andava a acompanhar uma série televisiva que passou há muitos anos, “Um anjo na terra”, o ator era uma pessoa que gostava de ver no “Bonanza”, o Michael Landon. Cheguei a chorar em alguns capítulos. Estava a viver aquilo. Não parece mal um homem chorar. Se um homem tiver de chorar, chora.

E o que o faz realmente feliz?
Sou feliz por ter a possibilidade de fazer o que gosto. Deus deu-me a possibilidade, até hoje, de nunca ter problemas de saúde – tive aqueles problemas rotineiros que, de vez em quando, chateiam um gajo, ou ‘dói-me isto ou aquilo’, mas passa. Enquanto tiver saúde para fazer o que faço, vou continuar a fazer.

Quais são os seus maiores prazeres?
Gosto de estar com quem gosto. Tenho alguns amigos, alguns, vamos jantar ou dar uma volta. Guardo recordações muito boas, não só do futebol, como da guerra, dos amigos. Não sou muito de andar a passear, já passeei demais.

Tem alguma superstição?
Quando jogava futebol, não tinha superstição nenhuma. Num concerto, gosto sempre de pisar o palco com o pé direito, às vezes calha mal, outras vezes calha bem.

Nunca pensou desistir da música?
Desistir? Não. Quando fazemos o que gostamos, não abdicamos. Tudo aquilo que sei tocar, aprendi, ninguém me ensinou. Guitarra, bandolim, viola baixo, bateria, teclas – não sou pianista, atenção, vamos lá ver, não confundir que eu não toco piano, dou um jeito. O que sei dá para fazer aquilo que quero e que gosto porque tenho uma vontade infernal de aprender, seja o que for. Aprendo todos os dias e com toda a gente. Aprendi muita coisa com o Julio Iglesias e o Roberto Carlos. Não é só cantar, é a postura, a maneira como a pessoa interpreta, a colocação de certas frases. Quando se está a cantar tem de se transmitir qualquer coisa. É preciso ter interpretação para que as pessoas que estão a ouvir possam entrar dentro do poema. Temos muitas maneiras de dizer uma frase. A interpretação é muito importante. Cada dia que passa, em Portugal, há menos intérpretes. Os grandes intérpretes já faleceram e vão falecer.

Há novos a aparecer.
Sim. Eu estou a falar em intérpretes, interpretar, não é cantar. Está a perceber? Cantar com as mãos nos bolsos, não dá. Cantar por cantar, também não dá. Se não sentir o que estou a cantar, não canto.

Qual o seu maior propósito na música?
Continuar a fazer o que gosto e proporcionar tudo de bom a todos aqueles que gostam do que faço, que ouvem a música que canto, que gostam do meu trabalho. Tento sempre dar o melhor. O meu propósito é esse. Porque ao dar o melhor, também tenho de ser melhor.

São 43 anos de carreira, 75 de vida, mais de 20 álbuns, discos de platina, ouro, prata. O que lhe falta fazer?
É uma boa pergunta. Há duas coisas importantes na minha vida (na vida dos outros, não sei). A primeira é que não tenho nada a provar, o que tinha a provar já provei. Segunda, quando as pessoas, às vezes, dizem que estão realizadas, é mentira, nós nunca estamos realizados, há sempre qualquer coisa que falta. O quê não sei, muito sinceramente. Continuo a ser o mesmo e continuo a trabalhar em prol do Agrupamento Musical Diapasão e do Marante, dos meus colegas e da música portuguesa. Tentar sempre fazer o melhor. Quando deixarem de gostar de nós é porque estão cheios de nós.

Vai cantar até que a voz lhe doa?
Não. Vou cantar até que possa.