Ludmila Ulitskaya, a escritora habituada a ataques do Kremlin

Escritora russa, nome de respeito na literatura internacional, frequentemente apontada como candidata ao Nobel, é uma voz dissidente do regime de Putin. Saiu de Moscovo pouco depois da guerra começar. Não voltou. Vive em Berlim, de onde conversou com a “Notícias Magazine”. Os seus livros têm gente de carne e osso, feridas da ex-União Soviética, traumas do Holocausto. Histórias reais. No dia 11 estará no Utopia, festival literário de Braga, para uma entrevista de vida. É a sua primeira vez em Portugal. Tem 80 anos.

Chegou tarde à literatura, pode dizer-se, tinha pouco mais de 50 anos, construiu uma das carreiras mais consistentes da literatura russa atual, conquistou um lugar de respeito na escrita internacional. Ludmila Ulitskaya tem 80 anos e uma obra traduzida em mais de 40 línguas, entre romances, contos, literatura infantil, peças de teatro. Confessa que a inspiração, palavra que se cola a tudo o que diz respeito à arte, não lhe diz grande coisa. “Inspiração não é uma palavra que funcione para mim”, revela. “Gosto muito de escrever, sempre gostei, então gradualmente o processo de converter os meus pensamentos e sentimentos em textos, juntando palavras e anotando-as no papel (e mais tarde no computador), tornou-se a minha profissão. Demorou anos.” Será uma escritora intuitiva, como já escreveram sobre si? Não sabe o que dizer em relação a este assunto. “Quanto à intuição, é uma questão difícil. O meu marido acha que eu tenho uma intuição muito boa”, diz apenas. Por via das dúvidas, prefere não acreditar muito nessa capacidade porque, confessa, nunca se sabe se essa confiança no poder intuitivo não poderá, um dia, tirar-lhe o tapete debaixo dos pés perante um qualquer imprevisto.

No caminho que fez e que faz, tudo lhe interessa. Desde cozinhar, admite, a estudar Genética na Universidade de Moscovo como fez, ao seu trabalho no teatro, como consultora literária, diretora de repertório, guionista, antes de se tornar escritora, seu ofício atual. Esse interesse e essa entrega aplicam-se à escrita. “Nunca escrevi sobre coisas nas quais não estava interessada.” Não poderia ser de outra, percebe-se.

No seu livro “Medeia e os seus filhos”, publicado em Portugal, expõe feridas e traumas da União Soviética pelo olhar de uma matriarca, viúva e sem filhos, enfermeira e católica ortodoxa. Em “Mentiras de mulher”, também traduzido em português, entra na intimidade de várias mulheres da sociedade russa nos anos que se seguem à queda do regime soviético através de confidências, lutos, traições, mentiras. No seu primeiro romance “Sonechka”, de 1995, conta a história de Sonechka, rapariga invulgar e pouco atraente, míope e sempre de óculos, que se refugia na leitura e se torna bibliotecária. Aqui, a escritora resgata lembranças de mulheres do passado da sua família para a narrativa, com o regime soviético e o seu desmoronamento em pano de fundo. Com “Sonechka”, venceu o Prémio Médicis Étranger do Russian Booker Prize e o Prémio Literário Giuseppe Acerbi. Demorou a chegar à literatura, como afirma. Chegou em grande, como se vê.

De uma forma ou de outra, todas as histórias dos seus livros são reais, garante. “Todas elas são baseadas em histórias reais ou ocorrências que aconteceram a pessoas que conhecia. Todas essas histórias refletem o meu pensamento sobre determinada questão ou outro problema ou assunto, ou um certo sentimento ou ideia que desejo partilhar.” Todas, sem exceção. Se há quem leia o que escreve, fica grata por isso. “Se a minha escrita ressoa num determinado público leitor, fico feliz.” Feliz quando essas mesmas pessoas compram e leem os seus livros, o que publicou, os que vai publicar.

Escrever é um ato de liberdade e a literatura é chão fértil e livre. Mas isso, por si só, não é suficiente, não chega, em sua opinião. “Além da liberdade de expressão, para ser um escritor digno, um escritor precisa de outra coisa igualmente importante: ter uma mensagem própria que gostaria de partilhar.” “Se não existir tal mensagem, então nenhuma liberdade ajudará o texto a tornar-se literatura”, observa. Há, porém, alerta, a poesia, esse modo de dizer e de juntar palavras em que a mensagem não será tão importante. “A mensagem pode ser banal e não é decisiva, mas a ênfase está no jogo de palavras, na música da linguagem que pode ser muito emocionante por si só.” Ludmila Ulitskaya recorda, a propósito, a poesia russa das décadas de 1920-1930, o fulgor das tendências literárias de então, o Oberiuts, um grupo vanguardista de escritores e artistas russos dessa época. “Eles seriam um assunto para outra longa e interessante conversa.” Daria pano para mangas, é certo.

Antes da escrita, uma profissão

Quando se começa a falar da atribuição do Prémio Nobel da Literatura, o seu nome surge com frequência nas conversas à roda dos potenciais candidatos. “Aceito esses rumores esporádicos, sobre a possibilidade de ser premiada, com calma. Estou absolutamente relaxada com isso”, assegura. Fala-se que esteve cinco ou seis vezes nessa pequena e restrita lista. Todavia, não há confirmação oficial. “Quem sabe se se tornará público dentro de várias décadas, quando todos os pretendentes – tanto reais como imaginários – estiverem mortos”, comenta. Não é assunto que lhe ocupe os dias. Nada disso. “Vejo que todos os vencedores dos anos anteriores são autores muito merecedores e altamente estimados. Então porquê reclamar? Estou muito feliz por ser o número dois. Para mim, em todas as competições, o segundo lugar é melhor do que o primeiro”, vinca.

“A mensagem pode ser banal e não é decisiva, mas a ênfase está no jogo de palavras, na música da linguagem que pode ser muito emocionante por si só. (…) Se não existir tal mensagem, então nenhuma liberdade ajudará o texto a tornar-se literatura”, garante Ludmila Ulitskaya

As suas obras são intemporais, entram por conflitos civilizacionais, pelo papel da mulher na sociedade russa, por episódios domésticos, pela história da História. Purgas, doenças, ilusões perdidas. Política, ciência, religião. Em 2014, recebeu o prestigiado Prémio Estatal Austríaco de Literatura Europeia pela sua obra. Com “Medeia e os seus filhos”, “O caso Kukótski” e “A escada de Jacob” recebeu várias distinções.

Os comentários, os elogios ou as depreciações sobre o que escreve, os seus livros e a sua obra também não a desassossegam. Não há um elogio marcante que guarde na memória. Nem uma qualquer crítica positiva ou negativa. Alguma coisa lhe terá escapado? Não parece. “Talvez seja porque não estou realmente interessada no que os outros pensam sobre o que escrevo”, confessa. “Para mim, escrever é a minha forma de expressar a minha opinião sobre algo, bem como o meu instrumento muito pessoal de resolver os meus problemas internos e chegar a um acordo comigo mesma.”

O ato de escrever, essa arte de juntar palavras e construir frases, histórias e narrativas, tem várias camadas. Tem passado, tem presente, tem futuro também. A passagem pelo teatro, poder-se-á pensar, condicionou, de alguma forma, a construção da sua narrativa, a linha dos enredos. Ludmila supõe que sim, mas nunca parou para analisar a fundo se há aqui alguma ligação. Os leitores e os críticos julgarão por si, realça. “Eu ainda gosto de escrever para teatro, aliás, tenho várias coletâneas de peças para teatro.”

A métrica de longas descrições, parágrafos curtos, poucos diálogos que, por vezes, se usa para resumir a sua obra literária, não é totalmente correta, não encaixa em tudo o que já escreveu. Todo o contrário também é verdade. “Tenho livros com parágrafos longos, descrições curtas, e muitos diálogos, mas esses ainda não estão traduzidos para português.”

No próximo sábado, dia 11, a escritora está no Utopia, festival literário de Braga, para falar da sua obra, do seu percurso, das suas histórias, às 16 horas no auditório do Espaço Vita. Responderá ao que lhe for perguntado, ao que a curiosidade quiser saber. É a primeira vez em Portugal, um dos poucos países europeus ainda de fora da sua longa lista de viagens feitas nas últimas duas décadas. Está expectante e curiosa, conta, quer conhecer e entender o país. Tanto mais que as referências dadas pelos colegas sobre o público que lê em Portugal são entusiasmantes.

O Utopia, com o tema “Territórios literários”, tem conversas, oficinas, workshops, espetáculos, sessões com escolas, passeios literários. O festival começou na quinta-feira, tem mais de 100 convidados, termina no próximo domingo, dia 12. A presença da escritora russa é aguardada com expectativa.

Para quem está a começar na literatura, ou está a pensar fazê-lo, Ludmila Ulitskaya deixa um aviso e um conselho. “É um caminho muito difícil.” Ela sabe do que fala. “E recomendo a qualquer pessoa que está a pensar seguir a carreira de escritor que tenha uma profissão antes de se envolver na escrita. Seria muito útil.”

As guerras e a humanidade

Ludmila Ulitskaya nasceu nos Urais, zona de fronteira entre a Europa e a Ásia, território russo, numa família russa judaica da burguesia soviética instruída, pai engenheiro, mãe bioquímica. Saiu muito cedo dali. Aos nove meses, estava a morar em Moscovo. Bióloga de formação, formou-se na Universidade de Moscovo, trabalhou no Instituto de Genética, foi demitida na década de 1970, por ler e distribuir literatura proibida na época. Esse momento, não tem qualquer dúvida, foi um ponto de viragem na sua vida. Largou a Genética, casou-se, divorciou-se, criou dois filhos, conseguiu um trabalho no teatro, começou a escrever peças e contos. Dedicou-se à escrita.

A sua história com o Governo soviético é antiga. Tem sido uma voz pública contra o regime de Putin, o seu rosto já apareceu em cartazes de dissidentes do sistema. Em março do ano passado, pouco depois da invasão russa na Ucrânia, deixou o seu país. É considerada traidora pela oposição a esta guerra, está habituada a ataques do Kremlin. Desde então, mais de ano e meio depois, ainda não voltou a Moscovo, vive exilada em Berlim, na Alemanha. Sente falta do seu chão. Não sabe quando voltará.

A escritora nasceu e foi criada no seio de uma família judaica. Acompanha, de manhã à noite, a guerra entre a Ucrânia e a Rússia e agora também o conflito no Médio Oriente, entre Israel e a Palestina. “Claro que fiquei chocada com os acontecimentos em que os terroristas do Hamas massacraram centenas de jovens, que se reuniram num festival de música no sul de Israel, e depois invadiram e mataram milhares de israelitas de todas as idades e sequestraram outros. Uma terrível tragédia.” Conhece bem Israel. Houve um tempo em que vivia entre a Rússia e Israel. “Estive em Israel muitas vezes, acho que é um dos lugares mais interessantes e bonitos do Mundo. Viajei por Israel de cima a baixo como poucos moradores locais”, lembra.

Apesar de tudo, do que aconteceu e do que acontece, tem esperança na humanidade, essa massa de gente capaz do melhor e do pior. “O Homo Sapiens é apenas uma de milhares de espécies que vivem no nosso Planeta. É uma espécie muito agressiva. Todos os anos, destrói dezenas de outras espécies animais e causa grandes danos ao Planeta.” Ludmila Ulitskaya vai ao detalhe, vê ao microscópio. “O Homo Sapiens extermina um grande número de florestas, transforma muitas terras em desertos, destrói a atmosfera da Terra, envenena as suas terras, oceanos e ar. Ao mesmo tempo, o Homo Sapiens é capaz de criar canais, irrigando terras sem água, de povoar áreas antes vazias.”

“O Homo Sapiens é apenas uma de milhares de espécies que vivem no nosso planeta. É uma espécie muito agressiva. Todos os anos, destrói dezenas de outras espécies animais e causa grandes danos ao planeta”, reconhece a escritora russa

A espécie entre o bem e o mal, conforme o lado para que está virada. “A humanidade é capaz de fazer muitas coisas úteis e bonitas, mas depende muito para onde direcionamos o nosso potencial – para o benefício do Planeta ou para a sua destruição. Até agora, a imagem é bastante desesperante. Mas o movimento dos defensores da Natureza e todos os tipos de ativistas ‘verdes’, que surgiram nas últimas décadas, podem reverter esta tendência. Acredito que há esperança.”

Mulher, mãe, esposa, escritora. Um nome forte da literatura mundial que, como aconselha, andou por outros caminhos até chegar à escrita. Essas experiências enrijecem e dão traquejo. Não lamenta o passado, tão-pouco o percurso até ao presente. “Olhando para trás, para a minha vida, não posso dizer que foi difícil, mas sim que foi muito interessante.”