Francisco, o Papa verde

A questão não é nova no seio da Igreja, mas nunca, antes dele, um Papa tinha conferido semelhante élan ao “cuidado da casa comum”. E assim o ambiente é tema crucial na Jornada Mundial da Juventude que está prestes a acontecer. Começa nas discussões, acaba nas medidas adotadas por uma organização que aspira à “Jornada mais sustentável de sempre”. Ou ao contrário. A ideia, na verdade, é que não acabe aqui. Longe disso.

Milhares de novas árvores plantadas, voluntários massivamente instruídos para poupar água e energia – para separar corretamente o lixo também -, variadas campanhas de sensibilização, uma calculadora que mede a pegada carbónica (e um manual de dicas para a minorar), um kit do peregrino minimalista onde cabe uma garrafa de água reutilizável, o merchandising de sempre, mas sem invólucros nem plásticos. Eis alguns dos pergaminhos que prometem fazer desta Jornada Mundial da Juventude (JMJ, que decorre de terça a domingo, em Lisboa) a mais sustentável de sempre. O objetivo foi anunciado ao Mundo já lá vai mais de um ano, a 22 de abril de 2022, Dia da Terra. Chegou sob a forma de uma carta-compromisso assinada entre o Comité Organizador Local (COL) e 16 outras entidades, câmaras de Lisboa e de Loures incluídas. Lá se reiteravam as preocupações ambientais, lá se vincava o desígnio de “fazer da sustentabilidade um objetivo central”, lá se assumia a intenção de transformar a JMJ Lisboa 2023 numa “referência no compromisso” com a causa, lá se lançava um apelo direto e veemente a cada um dos participantes: “O ponto de partida para este compromisso é a sobriedade de cada um de nós em relação à utilização de bens”.

Jornada Mundial da Juventude, que decorre de terça a domingo, pode juntar cerca de um milhão de visitantes em Lisboa, um “peso brutal” em termos de pegada carbónica, admite Francisco Ferreira, da Zero
(COD Lisboa)

Se a mensagem será devidamente captada e aplicada pelo grosso dos jovens que estarão em Lisboa é ainda um exercício de futurologia arriscado. Bem mais seguro é afirmar que, muito antes de a JMJ sequer começar a ganhar forma física, já a organização passava da teoria à prática. Foi a 8 de dezembro do ano passado, a Global Tree Initiative (GTI) associou-se desde o primeiro momento, lançou-se o desafio, a todos os entusiastas da Jornada, de plantar, no local onde residem, uma árvore autóctone, dedicando-a à JMJ, através do registo no site da GTI. Para alertar para a importância da biodiversidade e das alterações climáticas, pois. Mas também para ir mais além, pôr mãos à obra, ser parte ativa da solução ao invés de ser mais uma peça do problema. Lembrando que a Igreja, por natureza, se preocupa com a Criação, Carmo Diniz, diretora do Gabinete de Diálogo e Proximidade do Comité de Organização Local da JMJ, explica o princípio maior que esteve na génese desta iniciativa pioneira no seio da Igreja. “Quisemos passar a mensagem de que nós não somos só guardiões da Criação, também temos o dever de tomar uma ação, de recuperar o que se tem vindo a perder. A plantação mundial de árvores permite uma resposta coletiva, juntar o Mundo inteiro no cuidado da casa comum. E não se trata só de uma ação bonita, é algo muito importante para o futuro. Somos nós a cuidar da Mãe Terra, que fomos destruindo, a dar uma resposta mais completa. Mais do que poupar água e separar resíduos, significa o reverter de um caminho.”

(2023-07-22_ LISBOA SIMBOLOS_Comunidade vida paz_Ana Pina)

O repto lançado assenta no primeiro de quatro eixos estruturantes da carta tornada pública em abril de 2022: o compromisso. Carmo Diniz enumera os restantes: a formação aos voluntários, por um lado, a sensibilização por outro, e, por fim, espécie de realização prática de tudo isto, as ações concretas. Por partes. Primeiro, os voluntários. Todos eles foram sujeitos a formação, primeiro online, depois presencial, com as questões da sustentabilidade sempre presentes. Sobretudo em duas áreas, salienta a responsável. “Por um lado, a poupança de água e energia. Foram-lhes dadas várias dicas práticas no sentido de reduzirem os consumos. Por outro, a questão da reciclagem, visto que as cores utilizadas para cada tipo de resíduo, por exemplo, não são iguais em todos os países.” Depois, a sensibilização para a sustentabilidade pretendida no evento e os cuidados a ter por cada participante. Neste campo, as redes sociais, o site e as próprias entrevistas dadas ao media foram canais privilegiados. Por último, e porventura mais relevante, as ações concretas.

A calculadora, a garrafa, o diário

A propósito, uma das grandes novidades da JMJ que decorrerá em Lisboa (a outra, entende Carmo Diniz, é a já referida plantação mundial de árvores) é o facto de, pela primeira vez, ser disponibilizada aos peregrinos, através da aplicação do evento, uma calculadora da pegada carbónica, desenvolvida pela Novo Verde, entidade gestora de resíduos de embalagens, e a ERP Portugal, gestora de resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos. O objetivo é que cada um possa introduzir os dados relativos à sua proveniência, aos meios de transporte usados, ao tipo de alojamento escolhido, à forma como se deslocará durante o evento. E ainda as bebidas consumidas, o regime alimentar ou mesmo o tipo de banhos. Depois, haverá um segundo questionário, focado na atuação do peregrino ao longo da Jornada e nas atitudes que vai adotar para mitigar o impacto das suas ações. O resultado é uma escala que permitirá avaliar a pegada ecológica ao longo dos dias da JMJ.

Paralelamente, a Novo Verde desenvolveu uma espécie de guia, onde, entre outras coisas, se explica como é realizado o cálculo e como pode o peregrino reduzir a pegada de carbono. “É possível compensar essas emissões mesmo após a JMJ”, pode ler-se no documento, citado pelo jornal “Expresso”. E é dado o exemplo concreto de como pode ser mitigada uma viagem de ida e volta entre Atenas e Lisboa. A saber: fazer a viagem casa-trabalho de comboio ao invés de utilizar o carro pessoal, durante dez anos, aceitar o desafio de ser vegetariano durante um ano (considerando-se uma redução das emissões associada a um elevado consumo de carne), apoiar programas de conservação de árvores, também durante um ano. Para cada uma das opções, são feitas as contas em relação ao impacto ambiental positivo que representam. Num plano mais geral, são ainda deixadas outras sugestões, como beber água da torneira ou tomar duches rápidos. No entanto, o dito guia deu que falar Internet, com a ideia de compensar as necessárias viagens de avião com uma dieta vegetariana e a ingestão de água da torneira a ser amplificada e satirizada nas redes sociais. Talvez por isso, quando contactada pela “Notícias Magazine” para ceder o documento em causa, fonte do gabinete de comunicação da Novo Verde recusou, esclarecendo que a empresa não estava a gostar da forma como este estava a ser usado.

(Duarte Mourão Nunes/JMJ Lisboa 2023)

Polémicas à parte, há outras ações concretas destinadas a poupar o ambiente. A começar no próprio kit do peregrino, este ano reduzido a uma versão minimal, para que, também neste caso, o desperdício fique fora do programa. “Quisemos evitar brindes que depois acabam por não servir para nada. Este ano o kit inclui apenas a mochila, a t-shirt, o chapéu, o terço, uma fita de pendurar ao pescoço e uma garrafa reutilizável.” Que deverá ser abastecida nos vários pontos pensados para o efeito. Ou uma outra forma de tentar minorar o plástico utilizado no evento. Preocupação essa que é também notória nos produtos que estão à venda. “Houve uma recusa deliberada de plástico, de tal forma que, mesmo no merchandising da JMJ, optámos por não usar embalagens.” Os mesmos cuidados foram tidos em relação à alimentação.

A organização do evento procurou encontrar formas de o tornar o mais sustentável possível. Um bom exemplo disso é o kit do peregrino, este ano em versão minimal, e com uma garrafa reutilizável
(Patrícia Correia/JMJ Lisboa 2023)

Carmo Diniz destaca ainda o diário da sustentabilidade, que compilará todos os cuidados com o ambiente tidos ao longo do processo e “pode vir a servir de referência para futuras jornadas”. Ou a sinalética própria para a separação de resíduos, que “tem de ser muito clara”, dada a diversidade de proveniências dos participantes. Ou os selos da EPAL – Empresa Portuguesa de Águas Livres, a apelar aos cuidados a ter numa lógica de poupança de água, que estarão presentes nos alojamentos destinados aos peregrinos. Ou as máquinas de compactação de garrafas de plástico que estarão espalhados pelo espaço. Ou a parceria com o Banco Alimentar, que permitirá entregar as sobras dos alimentos que estejam em boas condições às instituições apoiadas. Além dos cerca de 700 ecopontos que foram distribuídos pelas paróquias dos distritos de Lisboa, Santarém e Setúbal, na tal lógica de sensibilização que se pretende que extravase o âmbito de ação do evento.

Ainda assim, estará a organização a fazer o suficiente para mitigar o impacto do evento? Francisco Ferreira, presidente da Associação Zero, que, há uns meses, até reuniu com responsáveis do evento, vê os dois lados da moeda. “É óbvio que há muita coisa que não se consegue evitar, falamos de um evento com um impacto significativo em termos de emissões, as viagens têm um peso brutal e isso não será compensado de forma imediata, mas parece-nos que há um conjunto de esforços para minimizar os danos causados.” A propósito, deixa duas reflexões pertinentes. Desde logo, lembra que “mais vale genuinamente fazer todos os esforços de minimização da pegada ecológica do que estar com anúncios que depois se percebe que não são rigorosos”. E concretiza: “Foi o que aconteceu com o Mundial do Catar, que se disse que ia ser neutro em carbono. E depois percebeu-se que era mais marketing do que outra coisa.” A segunda reflexão tem a ver com o conceito de compensação, elencado no tal guia desenvolvido pela Nova Verde. “Acho que é uma ideia a evitar. Se reduzirmos o consumo de carne, não deve ser numa lógica de compensar a viagem de avião. Devemos pautar-nos por atitudes positivas e não compensatórias. A ideia de compensação, a meu ver, de alguma forma distorce a questão”.

Laudato si’, Francisco

As questões relacionadas com a degradação ambiental e a forma como podemos ajudar a combatê-las serão ainda centrais em duas iniciativas que decorrerão no âmbito da JMJ. Por um lado, a 4.ª Conferência Internacional sobre o Cuidado com a Criação, que acontecerá já nesta segunda-feira, 31 de julho, ainda antes do arranque oficial do evento, e que terá como tema “O compromisso dos jovens com a ecologia integral: estilos de vida para uma nova humanidade”. A ideia é promover um diálogo entre jovens e especialistas nas áreas da economia, da educação e vida familiar, dos recursos naturais, da política e da tecnologia.

(COD Lisboa)

Já no decorrer do evento propriamente dito, destaque para os encontros Rise Up, que, este ano, se debruçarão sobre três grandes temas, sendo um deles o da ecologia integral (os outros dois são a amizade social e a misericórdia). O conceito tem sido uma das bandeiras do pontificado de Francisco e remete-nos para o facto de tudo estar interligado e interdependente. Ou seja, de as dimensões humana, social, cultural, económica e ambiental da vida e das crises que vivemos não serem de todo estanques. O próprio modelo destes encontros, totalmente reconfigurado para esta JMJ, vai ao encontro daquela que tem sido outra ideia dominante no Vaticano desde que o Papa Francisco lá chegou: a do método sinodal. Matilde Cortez Pinto, membro da Direção Pastoral e Eventos Centrais da JMJ e responsável pelos encontros Rise Up, explica isso mesmo.

As questões relacionadas com a ecologia, nomeadamente o conceito de ecologia integral, são também um dos temas centrais que serão discutidos na JMJ, em particular nos encontros Rise Up

“Deixa de ser uma catequese dada por um bispo e passa a ser uma catequese em que não só os jovens são protagonistas, como são orientados por equipas de animação. Por sua vez, o bispo passa a ter uma função de sintetizar partilhas das reflexões. Isto está completamente alinhado com o método sinodal que tem sido defendido pelo Papa Francisco, que no fundo defende que a Igreja precisa de escutar-se, para depois ser ouvida. Durante três meses, houve encontros preparatórios para que os jovens do Mundo inteiro pudessem refletir sobre estes temas.” Dos mesmos, saíram ícones de casas, todas elas compostas por frases e ideias-chave, que agora servirão de base para os cerca de 270 encontros que irão decorrer ao longo de três dias, num total de 32 idiomas. Sendo que as reflexões saídas destas discussões, e eventuais medidas práticas a adotar, hão de depois ser transmitidas e propostas pastoralmente aos vários países para ações futuras. “Só ainda não sabemos em que formato”, admite Matilde.

O Papa Francisco é, aliás, figura central nesta história de atenção crescente às questões do ambiente e da sustentabilidade. Mesmo que seja justo ressalvar que o tema há muito integra o leque de preocupações da Igreja. José Maria Brito, padre da Companhia de Jesus (jesuíta) e mestre em Teologia, sublinha isso mesmo. “Foi havendo, nos vários pontificados desde o Concílio Vaticano II, uma preocupação no modo como nos relacionamentos com a Criação e com ações que degradam o meio ambiente. O que assenta muito na ideia cristã de que tudo o que nos é dado tem de ser reconhecido como um dom de Deus e não pode ser manipulado como se fôssemos donos das coisas. Mas a verdade é que o Papa Francisco, com a encíclica Laudato si’, acaba por ter um papel grande em tudo isto.” Trata-se de um texto de 2015 onde o Sumo Pontífice lançou um apelo veemente no sentido de se travar a degradação ambiental e as alterações climáticas. “Apesar de haver uma continuidade na preocupação, foi a primeira vez que um Papa dedicou uma encíclica a estes temas e isso por si só é sintomático. A grande vantagem do Papa Francisco é ter uma visão profundamente teológica, que ao mesmo tempo compreende o que se passa no Mundo a partir de uma leitura crítica do Evangelho.”

O objetivo é claro e foi assumido já no ano passado, com uma carta-compromisso pública: fazer desta “a Jornada mais sustentável de sempre”
(2023-07-22_ LISBOA SIMBOLOS_Comunidade vida paz_Ana Pina)

Carmo Diniz reforça esta ideia. “O que foi inovador foi colocar este cuidado com a casa comum no centro das preocupações, foi dizê-lo publicamente e coletivamente.” A propósito, e de volta à Jornada Mundial da Juventude que tem ajudado a preparar, deixa um alerta, particularmente dirigido a todos os que estarão presentes em Lisboa, de terça a domingo: “Este compromisso não é de uma estrutura hierárquica. Só faz sentido se cada um dos voluntários e cada um dos peregrinos o assumir também como seu. É um compromisso coletivo desde o início e ganha forma na medida em que as pessoas que nele participam adiram a ele”.

(COD Lisboa)