Este país não é para morar

São jovens, idosos, famílias. De classe baixa, média, até média alta. A crise na habitação é um vendaval que está a chegar a todos (com impactos diferentes, é certo) e a desarrumar vidas sem perdão. Um fenómeno europeu agravado em Portugal, num país onde o salário mínimo é de 760 euros e onde mais de metade das pessoas ganha menos de mil euros por mês. A inflação foi o abanão que faltava numa estrutura que já ameaçava ruir. Taxas de juro a disparar sem fim à vista, rendas cada vez mais altas, cidades tomadas pelo turismo, a oferta a não dar conta da procura. Há quem escolha vender o apartamento antes de se afundar em despesas, quem volte a casa dos pais aos 30 anos. E depois há situações-limite de gente despejada sem rumo, outros a viver no carro. O artigo 65.º da Constituição está a transformar-se numa miragem. Deixou de ser suficiente ter trabalho para ter casa. O retrato da realidade atual faz-se a várias escalas.

Quando o tejadilho do carro vira teto

Artur Neves já leva uns meses a viver no carro, em Valongo, a baixar os bancos e a estender a espuma para dormir todas as noites. Estaciona junto às garagens de uns prédios, debaixo de uma varanda. Tem pouca roupa, uns sacos na mala chegam para arrumar a vida, que foi um ziguezague desde que se divorciou. Tem 50 anos, é segurança privado, recebe uma média de 750 euros por mês, vai dependendo se consegue trabalhos extra. A profissão também é incerta, tanto vai tendo trabalho como não. Agora está num contrato de um ano, em Gondomar, depois é esperar para ver. E tem andado a saltitar entre casas nos últimos anos.

Pelo caminho, já se viu vezes de mais sem alternativas, a cair no fundo do poço, na tristeza de não ter teto. Chegou a dormir numa tenda nuns prédios em construção, mais tarde num canto escondido de um parque de estacionamento do Porto, onde estava a trabalhar. Há tempos, conseguiu arrendar com um colega de trabalho um anexo, “um T2 muito jeitoso”, 400 euros de renda a dividir pelos dois, mais as contas. A vida a entrar nos eixos. “Estivemos lá uns meses, mas depois ele mudou-se para Lisboa, arranjou lá um novo emprego, fiquei sozinho a pagar, subiram a renda para os 520 e não tinha hipótese, para comer, pagar as contas, o gasóleo para ir trabalhar e a renda não dava, decidi sair”, relata.

Desde então que mora no carro, emprestado por uma senhora que lhe vai pondo a mão, ele assume todas as despesas. É “a dona Conceição”, que ainda o deixa usar a sua morada no Fisco para não perder o trabalho, e às vezes o deixa lá comer e descansar. “Ela tem a família dela, o neto, não me pode ajudar mais.” Para lavar a roupa, Artur vai à lavandaria, quando consegue toma banho no trabalho, outras vezes em casa da dona Conceição, também em casa do irmão, que vive com uma filha e que o ajuda quando pode.

Artur das Neves, segurança privado, está atualmente a viver no carro
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

“Neste momento, estou a trabalhar a 35 quilómetros de Valongo, mas prefiro vir aqui dormir, porque já conheço, é a minha terra, sinto-me mais seguro. Não quero ir para o desconhecido.” Quando faz noites no emprego levanta as mãos ao céu, é menos uma na solidão do carro. Se fizer “dois turnos seguidos, melhor ainda”. Custa-lhe menos o dia, os fantasmas ganham tamanho na escuridão.

Pediu ajuda na Câmara de Valongo, “dizem que não há casas para habitação social, que têm pessoas há dez anos à espera”. E ele farta-se de procurar. “Para arrendar um quarto estão a pedir muito, além de dois e três meses adiantados, de fiador. E não há oferta. O que há são apartamentos bons e muito caros. Os baratos estão cheios.” Das certezas, tem uma: “Hoje em dia, uma pessoa sozinha com 700 euros não consegue fazer nada. Estou há meses nesta situação precária e não consigo sair”.

Aumentos das rendas em números
49%
É a percentagem de aumento das rendas das habitações em Portugal entre 2017 e 2022.

733 euros por mês
Arrendar um apartamento com uma área útil média em Portugal de 112,4 m2 custa 733 euros por mês, um valor quase 240 euros superior ao registado em 2017 por um apartamento com a mesma área (494 euros/mês).

6,94%
é o aumento previsto nas rendas para 2024, segundo o INE, se o Governo não impuser um travão.

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Voltar à casa de partida aos 30

Tinha definido a meta dos 25 anos para sair de casa dos pais, foi assim que sonhara o futuro desde novo. E conseguiu cumprir. Guilherme Sousa formou-se em Marketing, aos 25 tinha acabado de ficar efetivo numa empresa, quis fazer-se à vida, arriscou. Mesmo com ginástica financeira pelo meio – aceitou receber o subsídio de férias em duodécimos para ter margem de segurança ao final do mês, sedento da emancipação. Partilhou sempre casa, sujeitou-se a arrendamentos sem contrato, que é como quem diz “por baixo da mesa”. “Arrendar um espaço completo era impensável. Fui sempre partilhando apartamentos, passei por dois. No primeiro, pelo quarto pagava 225 euros, no segundo 300, fora as despesas”, conta.

É de Almada, mas foi em Lisboa, onde trabalha, que assentara arraiais para facilitar a vida. Tem as ideias arrumadas, hoje é responsável pela área digital numa agência de comunicação. “Fui conseguindo dar saltos na carreira e no salário, mas foi sempre acontecendo alguma coisa que me impediu de dar o passo de arrendar um apartamento completo. Primeiro foi o boom de turismo em Lisboa em que os preços dispararam e a oferta de arrendamento caiu, depois veio a pandemia, logo a seguir a inflação.” E aos 30 anos o “murro no estômago”. Voltou a casa dos pais há uns meses. O senhorio do apartamento onde estava avisou que ia deixar de arrendar, Guilherme desatou numa busca desenfreada, encontrou quartos a 500 euros, “é de loucos”, apartamentos “com as rendas mais surreais que se possa imaginar”. Até na periferia os preços escalaram, um labirinto sem saída. Preferiu dar um passo atrás para não ficar com a corda ao pescoço, para continuar a “conseguir pagar o ginásio, a jantar fora de vez em quando, não viver só para pagar um quarto”.

Após cinco anos a alugar casa em Lisboa, Guilherme Sousa foi obrigado a regressar a casa dos pais
(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

“É um sentimento de frustração gigante, ter a conversa com os meus pais de que afinal vou voltar para casa porque não dá. Ficaram eles mais felizes do que eu.” Quer que o revés seja temporário, continua na luta. “Há apoios públicos interessantes ao arrendamento, mas são todos temporários, e ao fim de cinco anos faço o quê? Volto à estaca zero?”, questiona. “O que me chateia é chegar ao fim do mês e não conseguir pagar uma renda sequer. E até recebo relativamente bem em comparação com os meus pares, o que me faz concluir que o problema não são só os salários, é a realidade do nosso país. Não há incentivos para os jovens conseguirem adquirir casa própria. Além disso, a sociedade está organizada para que a vida seja sempre partilhada com alguém.” Guilherme voltou à casa de partida, mas não desistiu do futuro. Ainda.

922.810
É o número total de casas arrendadas em Portugal

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O desespero de ser despejado na rua

A carta do Tribunal de Execução chegou, o despejo é certo, está por dias. “A qualquer momento vêm tirar-nos daqui para fora. Isto é uma aflição”, desabafa Alcina Lourenço, 49 anos. O marido Carlos Alberto, 61 anos, anda hiperativo a desmontar armários, há caixotes por todo o lado, as paredes com tinta a lascar. Neste rés-do-chão na Rua de Arroios, bem no centro de Lisboa, mora também o pai de Alcina, José Manuel, 89 anos, está numa cadeira de rodas, o olhar alheado. Há muito que andam à procura de alternativa, os preços das rendas são exorbitantes, não têm hipótese, o tempo a esgotar-se.

Alcina viveu sempre com a tia nesta casa, desde muito catraia, os pais viviam no norte do país. Pagavam 29 euros de renda. Casou com Carlos há mais de uma década e o pai mudou-se para junto deles quando ficou dependente. A tia faleceu há coisa de seis anos e aí começou o calvário. “Comuniquei ao senhorio, o contrato estava em nome dela e, mais tarde, recebi a carta do advogado dele a propor-nos um contrato de 600 euros de renda.” Foi há pouco mais de três anos, quando Carlos ainda estava a lutar contra um cancro, tinha deixado o trabalho na construção civil, tirou um pulmão entretanto, está inválido.

“Expliquei que naquela fase não conseguíamos pagar aquele valor, ficámos de continuar a pagar os 29 euros de renda e de tentar encontrar uma alternativa. Cumpri sempre, não adiantou de nada.” Andou a procurar casas, as rendas estão para cima de mil euros, “é impossível, e depois ainda pedem fiador, ninguém quer essa responsabilidade”. Mais tarde, a vida já mais organizada, prossegue, ainda tentou aceitar a proposta do senhorio, não teve resposta. Há cerca de um ano chegou a carta do advogado a informar do despejo, ficou sem reação, e agora a do Tribunal de Execução. Não há volta atrás.

Entre a reforma de José Manuel (Alcina trabalhou sempre em restauração e nas limpezas, mas teve de deixar para cuidar do pai) e a pensão de invalidez de Carlos, recebem cerca de mil euros para os três. Ainda têm despesas com medicação. Bateram à porta da Câmara, estão inscritos para habitação social há já dois anos, desesperados, os rendimentos são considerados altos. “Não temos mais nenhum apoio familiar. Para onde é que vou com o meu pai numa cadeira de rodas?”, interroga-se aflita.

Alcina Lourenço com o pai, José Manuel Lourenço Areia, e o marido, Carlos Almeida, na casa que partilham
(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

Estão a pensar, para já, abrigar-se num antigo quartel, fechado faz tempo, que foi doado a um conhecido e que os há de deixar lá pernoitar. E têm tido a ajuda do movimento Vida Justa na procura por uma casa com renda suportável. “Só não quero ficar na rua desalojada.”

Ações de despejo no primeiro semestre de 2023
1412
requerimentos de procedimento especial de despejo deram entrada no Balcão Nacional de Arrendamento no período compreendido entre janeiro e junho de 2023.

550
requerimentos de despejo são relativos a Lisboa, onde foram emitidos 221 títulos de desocupação.

+ 22,6%
é a percentagem de aumento dos processos de despejo no primeiro semestre deste ano em relação ao mesmo período de 2022.

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Vender para fugir à escalada das taxas de juro

O cartaz da Remax anuncia o óbvio: o apartamento T2 que Ana, 34 anos, e José, 36, compraram, no Porto, em 2019, está à venda. Já receberam algumas visitas, estão esperançosos. A ansiedade com as taxas de juro foi determinante, espécie de mar bravo de que quiseram escapar a tempo. Mas comecemos esta história pelo princípio. “Antes, estávamos numa casa arrendada e quando o senhorio decidiu aumentar a renda, percebemos que iríamos pagar menos por uma prestação de um crédito do que pela renda. Por isso, decidimos comprar casa há quatro anos”, partilha Ana, que trabalha na área da gestão num hospital privado.

Só que o cenário mudou, a subida acelerada das taxas de juro ainda não lhes bateu à porta, é certo, têm uma taxa fixa de cinco anos que só chega ao fim no início de 2024, mas antes de se afundarem em despesas foram ao banco saber qual seria a realidade no futuro. “Percebemos que a nossa prestação ia mais do que duplicar. Neste momento, pagamos 450 euros de prestação e a perspetiva seria de mil euros.” Têm uma filha de sete anos, uma fatura de 500 euros por mês de escola, a balança teve de ser bem avaliada, teriam de abdicar de alguma coisa. “Não íamos ter capacidade financeira para tudo, decidimos repensar a nossa vida e pôr a casa à venda.”

Foram rápidos na decisão, equacionaram cenários. Negociar com o banco moratórias era uma hipótese, porém, diz Ana, isso só ia empurrar o problema mais para a frente, empatá-lo. Chegaram sempre à mesma conclusão. “Já andamos a ver alternativas. A renda de um T2, aqui no Porto, anda à volta dos 900, mil, 1500 euros alguns, e não estamos a falar de casas novas. É muito puxado, mas com o valor da venda teremos um pé-de-meia para suportar isso. E o arrendamento é menos arriscado, não sabemos como estará a nossa vida no futuro, com o banco estamos comprometidos durante 40 anos, dependentes das taxas de juro, no arrendamento podemos sempre ir procurando alternativas mais baratas.”

No meio de tudo, as dúvidas de ver o projeto da compra de casa ir por água abaixo. Quiseram antecipar-se, não decidir em cima do joelho, não ter de vender mais tarde às três pancadas. “Será que é a decisão certa? Será que nos estamos a precipitar? Custa sempre, foi a primeira casa que comprámos, é uma coisa nossa, mas fomos aprendendo a ser desprendidos, a adaptar-nos às situações, a não pensar tanto com o coração.”