Elétricos e autocarros proporcionam uma viagem ao passado pelas ruas da capital

Durante 364 dias, elétricos e autocarros que ao longo de décadas serviram os lisboetas têm morada no Museu da Carris. Mas há um dia em que os clássicos passeiam pela zona Ribeirinha de Lisboa. No próximo sábado, os veículos históricos voltam a sair à rua. Entre substituição de peças, retoques, pinturas e limpezas a fundo, está tudo a postos para deslumbrar passageiros, moradores e turistas.

De luvas postas e fato-macaco, Luís Vila Viçosa lubrifica com cera a peça que dá movimento ao manípulo de um elétrico que está a ser arranjado na oficina da estação de Santo Amaro. Não será um dos veículos que vai estar nas ruas lisboetas na edição deste ano do desfile de clássicos do Museu da Carris. Esses já estão prontos para a celebração do 151.º aniversário da empresa de transportes públicos de Lisboa. Nesta garagem acontecem verdadeiros milagres: daqui os elétricos históricos conservados na exposição da Carris saem completamente operacionais. “Tratamos destes carros com muito carinho. A manutenção é feita, geralmente, um mês ou dois meses antes. É arregaçar as mangas e começar logo de manhã a tratar de todos os carros que estão no museu para ficarem operacionais e correr tudo bem no passeio”, aponta o técnico de reparação de 52 anos.

No desfile deste ano, no próximo sábado, dia 23 de setembro, vão estar nas ruas desde o inconfundível elétrico n.º 283 – o único elétrico “salão aberto” que durou até hoje, recuperado há uns anos para que tivesse a aparência que outrora teve em meados dos anos 1940 – ao elétrico n.º 535, um dos primeiros construídos nas oficinas da empresa, entre outros “amarelos”, semelhantes aos que ilustram postais ou os mais diversos souvenirs da capital.

Nos últimos dois meses, Luís Vila Viçosa pôs mãos à obra para que os elétricos da coleção do museu estivessem operacionais
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

O passeio acaba por ser uma forma de restaurar os clássicos que fazem parte da coleção do Museu da Carris. Nestes seis anos de casa, Luís Vila Viçosa já viu passar pelas suas mãos muitos destes veículos centenários. “É verdade que os carros estão parados no Museu, mas andam. Fazemos um esforço para mantê-los. Dá muito trabalho, como é óbvio, e há muitas peças que já não existem e têm de ser fabricadas de raiz por serralheiros e carpinteiros. É um trabalho gratificante”, conta o técnico de reparação. Para além da parte mecânica, por esta altura há pinturas para retocar e limpezas a fazer.

Nos preparativos, Luís Vila Viçosa e a restante equipa da oficina guiam-se por uma lista dos carros escolhidos para participar no desfile. “É preciso ver se têm algum problema e fazer a manutenção. Já prontos da parte da mecânica são lavados e só depois é que voltam para o Museu para o dia do passeio.”

Aos veículos históricos juntam-se três elétricos forrados com elementos portugueses tradicionais: bordados da Madeira, cortiça e tapete de Arraiolos
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

Este ano será desde a Estação de Santo Amaro até Algés. Seis elétricos do início do século XX, mais três elétricos temáticos da “Carristur” com elementos portugueses tradicionais (um forrado a cortiça, outro a tapete de Arraiolos e um último a bordados da Madeira) e dois autocarros das primeiras frotas a circular na cidade, desde os anos 1950, irão desfilar pela zona Ribeirinha. Os autocarros estão na oficina de Miraflores.

Uma visita ao passado

Se se contam histórias de que na altura os moradores estavam aterrorizados com a ideia de se colocarem linhas com medo de que os elétricos chocassem uns com os outros devido às colinas, também se contam muitas outras de como foram, durante décadas, o transporte de eleição na capital. É esse o legado que para Sara Coelho, 46 anos, torna o dia do desfile o dia mais especial do ano.

Sara Coelho e João Alberto são dois dos guarda-freios que vão passear os elétricos clássicos pelas ruas lisboetas
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

A guarda-freio já foi convidada a participar em cinco desfies. Este ano irá conduzir o 283, o “ex-líbris” da coleção e o mais procurado pelos viajantes do passeio. Originalmente, este elétrico aberto (sem janelas e todo em madeira) de 1902 circulou pela cidade até à década de 1960. Antes da sua morada ser o Museu da Carris, esteve vários anos no Parque Infantil de Alvito. “Cada vez que entro no elétrico sinto que está carregado de histórias. Pergunto-me quantos colegas é que já não terão passado por ali. Eram épocas diferentes, cada um destes carros tem uma condução mais pesada, por isso, imagina-se que tinham de ser homens fortes, que comiam bem. Ou se terão passado imenso frio e chuva porque o carro é todo aberto.”

Sara Coelho nunca pensou que acabaria por ser uma das 27 mulheres entre os 160 guarda-freios ao serviço da Carris em Lisboa. Só a partir de 1995 é que a empresa começou a contratar mulheres para exercerem essas funções. Cresceu no bairro dos Anjos a ver passar o elétrico para a Graça. Como qualquer outro lisboeta, via o “amarelo de forma normal, como mais um transporte”. Por vezes, até preferia subir a rua íngreme a caminho da escola para poupar viagens. “Dizia à minha mãe que apanhava o elétrico para as aulas, mas não o fazia porque não queria gastar os módulos.” Só quando começou a conduzir elétricos é que conseguiu perceber a “forma especial e completamente diferente” como os turistas e quem não é da capital olham para este meio de transporte. Na altura, “foi um recurso para mudar de vida e tentar trabalhar numa empresa mais estável”. Agora, admite, com todo o orgulho, já faz parte de si – mais concretamente há 21 anos – o “bichinho” de conduzir elétricos.

Um dos elétricos mais procurados é o n.º 283, que entrou ao serviço em 1902
(Foto: DR)

“Não gosto tanto de conduzir os elétricos novos. Para mim, os da carreia 28, que passam nas várias colinas e em paisagens muito bonitas da cidade, serão sempre especiais”, partilha Sara Coelho com um brilho nos olhos. Não troca “as caixinhas amarelas” para exercer outras funções “por nada”, embora note que ser guarda-freio acarreta cada vez mais responsabilidades. “Há mais transportes públicos, ubers e tuk-tuks pela cidade. Lembro-me que quando comecei havia mais movimento de turistas e imigrantes na altura da Páscoa, Natal e fim de ano. Agora, o desassossego é diário e os outros condutores nem sempre têm cuidado para evitar acidentes.”

Sara Coelho sabe que durante o passeio não passará pelas zonas habituais e que para si são especiais, como Alfama. Mas este dia não é um dia qualquer. Com o prolongamento do percurso até Algés, já imagina os carros de várias cores, como o n.º 1001 – autocarro laranja da Volvo que veio substituir a frota verde, em 1975 -, a passarem em frente ao Mosteiro dos Jerónimos numa celebração nas ruas que lembra a importância que a Carris têm na cidade das sete colinas.

Na oficina da estação de Santo Amaro, técnicos, serralheiros e carpinteiros fazem de tudo um pouco para dar uma nova vida aos elétricos e elevadores de Lisboa que ali chegam para serem reparados
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

O desfile dos clássicos nasceu em 2009, ano em que se assinalou uma década do Museu da Carris. A iniciativa também tem sido marcada pela marcha da Banda da Carris. A associação cultural, fundada em abril de 1929 por iniciativa dos trabalhadores, está quase soprar 100 velas. Nos últimos anos, o passeio tem ocorrido em setembro, mês em que se celebra o aniversário da empresa de transportes públicos lisboeta, mas também a Semana da Mobilidade. A pandemia suspendeu o desfile em 2020 e 2021.

Viagem pelo eixo ribeirinho

Foi na zona escolhida para o percurso deste ano que começaram por circular os primeiros carros sobre carris conhecidos como “americanos” (importados dos Estados Unidos), na altura, ainda no século XIX, puxados a cavalos. Só conseguiam andar nesta zona mais larga da capital. “Tradicionalmente o desfile realiza-se no eixo ribeirinho, ao longo do trajeto da carreira 15E, percorrendo a ligação entre a estação de Santo Amaro e a Praça da Figueira. Este ano, vai, pela primeira vez, percorrer a outra metade do trajeto, passando por Belém, por forma a, por um lado, homenagear a ligação histórica deste eixo da cidade e, por outro, a marcar a entrada em operação dos novos elétricos articulados que vêm reforçar esta emblemática carreira ribeirinha”, revela Ema Favila Vieira, secretária-geral da Carris. O primeiro dos novos elétricos articulados chegou a Santo Amaro no final de abril deste ano.

Os passageiros que se inscreveram no desfile deste ano vão ter a oportunidade de passear no eixo ribeirinho da capital a bordo de um dos seis elétricos da coleção do museu da Carris – alguns do início século XX -, de um dos três elétricos temáticos ou de um dos dois autocarros clássicos
(Foto: DR)

No dia do desfile, há duas viagens para os mais curiosos poderem subir a bordo ou acompanhar nas ruas a passagem dos clássicos: uns às 10.30 horas e outra às 16 horas. Todos os anos, as vagas nas inscrições para conseguir um lugar em algum dos clássicos têm voado em poucos dias. Ema Favila Veira fala de uma “atividade intergeracional” muito procurada por passageiros portugueses e estrangeiros, que normalmente participam em família.

Os que querem apenas ver os veículos históricos ao vivo costumam aguardar a passagem ao longo do percurso. “A diversidade das viaturas é grande, e por isso mais atrativa, tendo em conta as diferentes características estéticas, técnicas, e mesmo cromáticas, que foram opção da empresa ao longo dos anos da sua atividade na cidade de Lisboa”, resume a responsável.

Passear um dos primeiros elétricos

Para João Alberto, 39 anos, os passeios especiais da Carris não são novidade. Há pelo menos oito anos consecutivos que o guarda-freio troca, durante uns dias, em dezembro, o uniforme por um fato de Pai Natal, para encantar os mais novos no elétrico natalício da Carris. Mas esta será a primeira vez num desfile. “Fiquei muito contente quando me convidaram porque conduzir um elétrico histórico acaba por ser um marco na vida dos guarda-freios”, partilha.

Como é habitual, a estação será o ponto de partida do desfile que este ano segue até Algés
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

Quando chegou à Carris, João Alberto nunca tinha andado de elétrico. Veio para a outra margem do rio Tejo para agarrar a oportunidade de ser motorista de autocarros, mas o destino tinha planos diferentes. Nessa altura, abriam também vagas para guarda-freio. João Alberto aceitou “experimentar”, mediante a possibilidade de voltar ao plano A, se assim desejasse. “A primeira vez que entrei num elétrico foi mesmo para o conduzir. E assim estou desde 2010, a conduzi-los pela cidade.”

No sábado, o guarda-freio estará ao volante do histórico T1, o elétrico vermelho de 1901 que durante todo o ano leva visitantes do museu da Carris do núcleo I ao núcleo II da exposição dentro das instalações da estação de Santo Amaro. É outra das “estrelas” do desfile mais aguardadas. Hoje, os assentos originais de palhinha já não existem. Os cortinados, os candeeiros de teto e os assentos acolchoados transportam os aficionados ao passado.

Outro dos elétricos mais procurados é o inconfundível vermelho T1, de 1901
Outro dos elétricos mais procurados é o inconfundível vermelho T1, de 1901
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

João Alberto está habituado a conduzir o elétrico centenário no espaço da estação. Nesta primeira vez que o irá levar a passear pelas ruas lisboetas, o guarda-freio acredita que as pessoas se surpreendam como é que um elétrico com mais de 120 anos continua a funcionar. “É preciso haver uma preparação antes dos carros irem para a rua porque muitos deles estão o ano todo fechados.

Está tudo a postos para, no sábado, durante algumas horas, o “zumbido” característico dos elétricos roubar as atenções de lisboetas e turistas que ali passem na zona ribeirinha, num ambiente de celebração que, deixará, certamente, muitos deslumbrados.