Do Irão à Ucrânia. Xeque-mate à opressão

As lutas pela abertura do Irão à liberdade e à democracia e pelo fim da guerra na Ucrânia têm vozes maiores em Shohreh Bayat, juíza-árbitra, e Natalia Zhukova, jogadora, que participaram no Festival Internacional de Xadrez da Maia e contaram à “Notícias Magazine” como é batalhar contra regimes que as reprimem de diferentes formas. Sem medo. Apenas com uma coragem que ultrapassa o imaginável.

Shohreh Bayat é iraniana. Trinta e seis anos, corpo magro, pele morena, sorriso tímido quase permanente num rosto de coragem infinita. Cabelo solto, sempre. Totalmente solto, qual símbolo de liberdade. Foi por não o cobrir em público numa deslocação ao estrangeiro, como mandam as apertadas regras do estado islâmico onde nasceu, que acabou perseguida e obrigada a guardar-se segura em Londres, como refugiada. “Não irei desistir até o Irão ser um país livre, sem opressão”, faz disso promessa.

Natalia Zhukova é ucraniana, 44 anos. Alta, louríssima, expressiva, imponente, voz clara, discurso incisivo e seguro feito de palavras muralha contra a opressão. Vereadora na Câmara de Odessa desde outubro de 2020, aponta alto os valores da cidade e do país que há ano e meio luta contra a opressão da vizinha Rússia e reclama com o sacrifício do sangue dos seus a soberania perdida. “Defenderei a Ucrânia até à morte”, assegura sem hesitar.

Ambas têm em comum o facto de serem mulheres feitas de valentia que escolheram ficar do lado dos oprimidos em nome de um bem maior, o da liberdade. E de fazerem do xadrez segunda vida, Shohreh como das mais prestigiadas juízas internacionais da disciplina, Natalia enquanto jogadora de currículo farto, feito de títulos nacionais e internacionais, classificações de honra e o estatuto de grande mestre atribuído pela FIDE, órgão máximo do xadrez, em 2010. Estiveram em Portugal para participar em mais uma edição do Festival Internacional de Xadrez da Maia. Sempre com os seus ideais em alta, em nome de causas maiores, as dos seus compatriotas.

O nome de Shohreh Bayat saltou para a ribalta em janeiro de 2020 quando uma atitude corajosa lhe valeu o princípio do resto da sua vida. Durante um torneio internacional realizado em Moscovo, desafiou as leis iranianas e despiu o hijab, véu que cobre a cabeça das mulheres muçulmanas e é obrigatório no Irão. “Comecei por o descer um pouco, depois mais um pouco e ainda mais. Até que o deixei ficar preso no pescoço, cabelo inteiramente à vista”, rebobina. As ameaças começaram imediatamente. “Recebi telefonemas e mensagens de altos responsáveis do regime que ordenaram que voltasse a colocar o hijab. Alegavam que estava a ir contra as regras e a projetar uma má imagem do país.” Não acatou as ordens. Recusou, também, publicar nas redes sociais um pedido público de desculpas pelo ato, como lhe impingiram. O desejo de liberdade foi maior do que o medo das represálias, mormente soubesse da gravidade das consequências. “Percebi imediatamente que seria impossível regressar ao Irão, escolhi o estatuto de refugiada. Mas fi-lo conscientemente porque no Irão as mulheres devem ter o direito de se expressarem e vestirem como bem entenderem. Luto e lutarei por isso, não baixarei os braços”, promete.

Em janeiro de 2020, durante um torneio realizado em Moscovo, Shohreh despiu o hijab e desafiou as leis do seu país. Alguns dias antes, em Vladivostok, também na Rússia, a foto regista o início do primeiro jogo de desempate do título mundial feminino, em que a iraniana foi a árbitra principal (Smityuk/TASS)

O gesto de Shohreh correu Mundo e valeu-lhe reconhecimento global. Recebeu, em 2021, o International Women of Courage Award (Prémio Internacional Mulheres de Coragem), atribuído pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos. Tem protagonizado palestras, divulga o seu exemplo a plateias que a aplaudem de pé, dá voz às mulheres de um país que as relega para segundo plano. “No Irão, somos cidadãs de segunda”, lembra. Ainda assim, Shohreh Bayat demove-se de autoelogios, foge do estrelato, estabelece fronteiras de humildade de que não abdica, nega o papel de heroína. “Não me sinto especial. Sou uma entre os muitos iranianos que querem um país diferente, sem amarras. Apenas isso”, diz entre um sorriso tímido. E com os seus olhos vivos a baixarem em condescendência em nome do bem maior que a ultrapassa e de que se sente apenas honesta porta-voz.

“Todos os dias são terríveis”

Natalia Zhukova personifica o que foram os tempos pré e pós-independência da Ucrânia. Nasceu em 1979, na cidade alemã de Dresden, onde o pai prestava serviço no Exército da União Soviética na então República Democrática Alemã (RDA), mudou-se ainda criança para Kakhova, na região ucraniana de Kherson, fixou-se depois em Odessa. Os pais e os irmãos vivem agora na Crimeia, invadida e anexada em 2014 pela Rússia de Vladimir Putin. Resumindo, nasceu soviética, viu-se ucraniana com pouco mais do que dez anos, assistiu à consolidação da sua pátria, sofreu quando a casa dos familiares próximos passou para mãos russas, tremeu quando a guerra ordenada por Vladimir Putin se fez realidade a 24 de fevereiro do ano passado.

“A minha luta será sempre pela liberdade da Ucrânia”, garante sem hesitação. “Todos os dias são terríveis. Os bombardeamentos são constantes, não sabemos se poderemos ser nós as próximas vítimas. Teme-se pelos outros, por quem conhecemos e por quem não conhecemos”, descreve.

Natalia Zhukova, ucraniana campeã olímpica e do mundo de xadrez e autarca de Odessa, que participou no Festival Internacional de Xadrez da Maia

E o receio de perder a vida, onde fica? “Quando a luta é justa, tudo passa para segundo plano. Não tenho medo de morrer”, jura. “Não me passa pela cabeça abdicar dos meus princípios. Os ucranianos são um povo bravo, que não merece o que lhe está a ser infligido e que vai lutar até quando e onde for necessário para que lhes seja devolvido o que é deles por direito. Eu sou um deles, faço o que posso para seguir esta luta.”

Olhos de luta e de coragem

Os olhos delas dizem tudo. Falam por elas, traduzem fielmente o que lhes vai no corpo e corre no sangue. Muito negros, os de Shohreh, muito azuis, os de Natalia, enchem-se de brilho quando relatam os sonhos que as conduzem e de que não abdicam, povoam-se de tristeza quando exprimem o que sofrem os seus povos na caminhada que anteveem longa até chegar a hora da vitória final, a do fim da guerra na Ucrânia e da reposição das fronteiras de 1991, ano em que foi declarada a independência do país, a da deposição do regime islâmico que governa o Irão desde a revolução de 1979 que depôs o xá Mohammad Reza Pahlevi.

Na Câmara de Odessa, Natalia Zhukova assiste os mais necessitados, ouve queixas, ampara dores, tenta remediar um quotidiano feito de incertezas diárias, de sangue, de destruição, de sofrimento, de morte. Aspira projetar um presente e um futuro marcados pela incerteza constante. “Nunca se sabe o que vai acontecer. Quando seremos atacados de novo e onde. Quem irá morrer e ficar ferido… É uma aflição constante”, conta Natalia.

O cenário dantesco e as notícias cobertas a vermelho de sangue não a demovem da missão diária. Veste colete antibalas, sai para as ruas, procura quem necessita de ajuda, cumpre o desígnio que garante ter em mãos, o de “ajudar a libertar a Ucrânia”. Um desígnio que se fez companheiro desde o início da guerra e do qual recusa separar-se, mesmo que por vezes a força anímica esgote as reservas de resistência e haja que encontrar forma de as preencher de novo sabe-se lá com que forças.

Natalia, na pele de autarca de Odessa, onde diariamente desempenha trabalho no terreno (Boris Bukhman)

“Todos os dias ao acordar, a primeira coisa que faço é ler as notícias e perceber o que se passou durante a noite e a madrugada, quem foram os novos alvos, os novos mártires”, afirma. Uma rotina quase automática. “É impossível não pensar nisso, impossível. O sofrimento do povo está sempre comigo, marca. Porque pode ser qualquer um de nós o próximo, nunca sabemos o que nos espera”, aflige-se. Por ela e pelos pais e irmãos. Que vivem perto mas imensamente longe, na Crimeia, a península que os russos tomaram militarmente há nove anos e que continuam a dominar, impedindo famílias de se verem ao fim de tanto tempo. Como a de Natália. “Não podem sair e eu não posso ir visitá-los. Comunicamo-nos apenas por telemóvel. Quando tal não é possível, fica sempre a preocupação, a angústia, a ansiedade por recear que lhes tenha acontecido algo de mau. O alívio maior é quando retomamos o contacto, por vezes ao fim de vários dias”, suspira.

Eleita pelo partido Servo do Povo, de Volodymyr Zelensky, rasga elogios maiores ao presidente da Ucrânia, ela que em outubro de 2020 falhou a eleição para deputada nacional, então por outra força política, o Movimento Novas Forças, também defensor de uma abertura da Ucrânia à Europa. “Zelensky é o homem perfeito na época perfeita. Ninguém melhor seria capaz de guiar a Ucrânia num período tão delicado e decisivo como este na história do país”, elogia.

“Iranianos perderam o medo”

Shohreh Bayat é independente. Diz, aliás, que a vida política não lhe está nos objetivos. “Só quero o melhor para o Irão, ponto. Quando formos livres não me imagino num cargo público”, vaticina. A política que faz é a da cidadania ativa, a de porta-voz de um ideal que sabe complexo e que não tem perspetiva futura assegurada no tempo, o de um país, o seu, em que homens e mulheres tenham direitos iguais e possam respirar o ar puro da liberdade. Até lá, Shohreh continua afastada da família, ela própria habituada ao sofrimento porque descendente de judeus, condição que foi obrigada a esconder sob pena de represálias.

Ela em Londres, eles no Irão natal, as saudades matam-se através de curtos telefonemas, palavras à distância que não substituem o afeto de um abraço, o carinho de um gesto de amor. “Tenho imensas saudades, claro. E temo por eles, também. A minha felicidade é saber que estão bem, apesar da distância e do tempo que não passamos juntos”, expressa.

“Foi através dos torneios de xadrez que me fui apercebendo que havia uma realidade diferente daquela que vivia e que me era vendida no Irão”, conta Shohreh Bayat, iraniana refugiada em Londres e juíza internacional de xadrez

Aguarda pacientemente o dia em que voltará a vê-los olhos nos olhos, a sentir o cheiro da terra natal, a comer os pratos tradicionais iranianos. “Esse dia vai chegar, eu sei que vai. Não sei quando, apenas sei que vai”, confia.

Até que chegue, assevera que continuará a dar voz aos que não a têm e a espalhar pelo Mundo a mensagem por um Irão diferente, livre do regime que o domina e esmaga há 44 anos e que com ele arrasta direitos humanos e garantias básicas.

“As manifestações do ano passado foram um marco que promoveu uma viragem importante no Irão. Pela primeira vez, os cidadãos perderam o medo e quem ganhou medo aos cidadãos foi a Polícia. Isso é muito relevante porque antecipa uma viragem nunca antes vista no país”, prevê Shohreh Bayat.

“Não irei desistir até o Irão ser um país livre, sem opressão. As mulheres devem ter o direito de se expressarem e vestirem como bem entenderem”, Shohreh Bayat

As manifestações a que se refere foram as que desde setembro de 2022 varreram o território iraniano depois da morte da jovem Masha Amini, detida depois de, tal como Shohreh, ter recusado usar hijab em público. Segundo relatórios realizados por fontes independentes, os protestos terão causado 185 mortos.

“Os iranianos estão sedentos de liberdade. As novas gerações cansaram-se das restrições do regime, querem algo novo e lutam por isso. Eles, os que saem à rua e se sacrificam pela causa, são os verdadeiros heróis. Não sou nada disso, apenas uma simples cidadã que quer um país justo e livre”, define.

Até ao xeque-mate

Os torneios de xadrez em que participam amiúde Shohreh e Natalia são também formas de espalhar a mensagem que ambas recusam calar. Falam com colegas, contactam com jornalistas, expressam-se livremente, ganham novos adeptos para as suas convicções. “A guerra é exatamente como um jogo de xadrez. As peças movem-se até conseguirmos encurralar o adversário e vencê-lo através das nossas jogadas. É isso mesmo que se passa na Ucrânia. Os soldados no terreno vão continuar a movimentar-se até derrotarem o inimigo e o expulsarem do país. Para que na Ucrânia se possa novamente viver em paz, o sonho de todos os ucranianos”, sublinha Natalia Zhukova.

“Defenderei a Ucrânia até à morte. Quando a luta é justa, tudo passa para segundo plano. Não tenho medo de morrer”, Natalia Zhukova

“Foi através dos torneios que me fui apercebendo que havia uma realidade diferente daquela que vivia e que me era vendida no Irão. Foi o xadrez que me fez perder o medo e que me vai continuar a acompanhar na minha caminhada pela liberdade”, promete Shohreh Bayat.

Porque as vidas delas, a de Natalia e a de Shohreh, apesar das origens longínquas na geografia, partilham propósitos comuns e são feitas de coragem. Imensa coragem. Uma coragem feita de combate incessante pela liberdade que tanto buscam, de resiliência, de bravura, de atenção, de choque, de esperança. Um xadrez constante no tabuleiro que é a vida. Para vencer em xeque-mate. Seja quando for, que o verbo desistir não faz parte dos seus dicionários.

A espera pode ser longa, mas um dia encontrará a luz. Assim o desejam e por isso batalham. Até à jogada final que deixará os ferozes adversários fora de jogo. Para sempre. “Essa é a luta, esse é o objetivo”, vinca Shohreh. “Baixar os braços é impossível”, completa Natalia.