Disney celebra 100 anos. Tudo começou numa garagem

Foi em 1923 que Walt e Roy, dois irmãos norte-americanos, decidiram oficializar os desenhos que vinham sendo criados numa garagem em Chicago. Às portas de comemorar o centenário, fomos em busca de histórias que falem pela própria Disney. Estivemos à conversa com Didier Ghez, historiador, com Sara e Luís, responsáveis pelo maior grupo de fãs em Portugal, e com Nuno Dias, o mais recente português a participar num filme da cadeia.

Um inocente e banal convite para jantar parte de Luís para a namorada, Sara. Parece estranho o restaurante estar quase vazio, mas deve fazer parte, afinal, é dia de semana. O jantar decorre como tantos outros ao longo de sete anos de namoro. Até que, com a sobremesa, vem algo mais. As luzes apagam-se. O que será? Ouve-se “Can you feel the love tonight”, música do filme original do Rei Leão e que tem a versão portuguesa com o título “Esta noite o amor chegou”. E chegou mesmo. Assim que as primeiras notas se fazem ouvir, um holofote incide sobre Sara, que nem uma superestrela a atuar num grande palco. Entretanto, Luís já se ajoelhou. A voz de Elton John continua a fazer-se ouvir. Até que surge a esperada pergunta: “Queres casar comigo?”. Poderíamos estar a descrever o argumento de um filme da Disney. Mas ainda que as referências à marca de entretenimento estejam lá (e em muitos mais pontos da vida de Sara e Luís), trata-se da vida real. Este foi um dos momentos “mágicos” do casal que provam que a Disney não é só (nem sobretudo, mas já lá iremos) para crianças.

Sara Pedro e Luís Pinto são os responsáveis pelo maior grupo de fãs da Disney em Portugal
(Foto: Rita Chantre/Global Imagens)

Comecemos por contextualizar Sara Pedro e Luís Pinto. São eles os responsáveis pelo maior grupo de fãs da Disney em Portugal. Na rede social Facebook, o grupo já caminha para os 23 mil membros. O gosto pela animação do renomado Walt, tal como a grande parte das crianças, começou desde cedo. Mas o “fanatismo” surgiu muito mais tarde, já em adultos. Antes do já descrito pedido de casamento ao som de Rei Leão, houve também disfarces de carnaval, os primeiros bonecos comprados para a coleção e, claro, o primeiro filme em casal. Era 2008 e estreava no cinema a longa-metragem de animação “Wall-E”. Com poucos meses de namoro, a ida ao cinema foi dos primeiros encontros do casal. No mês seguinte, em setembro, era o aniversário de Sara, a quem Luís ofereceu uma “Eva”, um peluche da personagem feminina do filme. O qual ainda hoje permanece guardado, entre a coleção que se foi avolumando.

A paixão e dedicação de Sara Pedro e Luís Pinto ao tema cresceu após a segunda visita à Disneyland Paris, em 2019
(Foto: Rita Chantre/Global Imagens)

A vida do casal, por todas as referências e momentos criados a partir ou inspirados na magia da Disney dariam, por si só, um filme. E o grande momento, como se de um argumento pensado ao detalhe se tratasse, foi o casamento. Houve um castelo a três dimensões, construído pelos dois, houve um topo do bolo inspirado na Cinderela, um porta alianças que era um coche de princesas. Poderíamos ficar a enumerar todos os detalhes – até ao ponto em que não houve ramo de flores atirado, mas antes um sapo (de peluche) que, do avesso, se tornava um príncipe. Com tudo isto, a pergunta que poderá surgir – mas que Pedro e Sara garantem que nunca surgiu – é: não será demasiado infantil? Envergando uma camisola do Mickey e da Minnie enquanto conversa com a “Notícias Magazine”, Sara Pedro chega-se à frente e responde: “A magia da Disney é exatamente essa. Os filmes, as séries e todo o entretenimento não ser pensados para as crianças, mas antes para todos. Há espaço para uma criança de cinco anos, mas há sobretudo espaço para um adulto de 40, por momentos, sentir que tem cinco outra vez”.

Dos oito aos oitenta

A diversidade de públicos (principalmente no que toca à idade) é também um dos argumentos de Didier Ghez, historiador, para defender a importância da Disney, uma vez que, considera, “não há outra empresa no Mundo que tenha um impacte e uma influência tão grande na cultura e psicologia de crianças e adultos”. Este foi um dos primeiros entendimentos que teve, ainda jovem, que o fizeram ter a missão que, hoje em dia, desempenha: eternizar a memória da Disney. Passemos a explicar. Didier Ghez, em tempos, ainda na viragem do século, trabalhou para a “empresa que faz sonhos”, mas é longe do cargo relacionado com tecnologias e inovação que hoje se liga à mesma. Foi em 2014 que criou a Hyperion Historical Alliance, uma organização sem fins lucrativos que tem como objetivo procurar, recuperar e digitalizar qualquer tipo de documento relacionado com a Disney e com os seus funcionários e artistas. Graças ao trabalho de Didier, estão guardados milhares de rascunhos, diários, biografias nunca terminadas ou publicadas, entre tantos outros “tesouros”, como lhes chama o historiador.

(Foto: Rita Chantre/Global Imagens)

Mas porquê ter esse trabalho (que na verdade é o seu hobby, uma vez que a ocupação profissional principal de Didier não é historiador) apenas sobre uma única empresa? O francês responde com uma pergunta: “Conhece outra empresa que tenha uma importância tão grande a nível global?” A resposta é um redondo não. E como é que uma empresa chega a este sucesso? Não há fórmulas mágicas, mas com o seu trabalho, Didier tenta explicar.

A casa onde Walter e Roy Disney começaram os primeiros desenhos, no bairro de Los Feliz, em Los Angeles, Estados Unidos
(Foto: DR)

“Aconteceu tudo muito rápido.” E, para perceber essa rapidez, recuemos. Foi em 1923, mais precisamente a 16 de outubro – celebrando-se o centenário na próxima semana – que Walt e Roy, dois irmãos norte-americanos desenhadores oficializaram com uma empresa o que tinham desde há um par de anos antes vindo a desenvolver: uma série de personagens animadas. Este icónico início aconteceu na garagem de uns tios em Los Angeles, para onde se tinham mudado à procura de mais oportunidades na área da animação. A oportunidade, veio a perceber-se, seria criada pelos próprios. Foi logo em 1928 (apenas cinco anos desde a criação da marca), já depois de passarem da original garagem no número 4406 da avenida Kingswell, no bairro de Los Feliz, para um escritório ao fundo da mesma rua e, logo de seguida, para um estúdio na avenida Hyperion, em Silver Lake, que foi criado o icónico Rato Mickey. A partir daí, o crescimento, que já tinha sido rápido, uma vez que da garagem a um estúdio demoraram apenas três anos, foi ainda mais acelerado. Perguntamos a Didier qual foi o grande ponto de viragem para a Disney. Qual foi o desenho animado que tornou esta marca num fenómeno global? “Poderíamos dizer que foi a Branca de Neve, a primeira longa-metragem, lançada em 1937, mas, na verdade, já antes disso o Rato Mickey e outras personagens em filmes curtos estavam espalhados pelo Mundo.” É como se o sonho já tivesse nascido grande.

Da garagem para o Mundo

O historiador pormenoriza a “expansão” para a Europa. “Em 1933, a Disney começou a ter presença local na Europa, com a primeira companhia fora dos Estados Unidos da América a surgir no Reino Unido.” Em agosto de 1934, é criada uma outra na França, que, destaca Didier, é liderada por uma mulher – “mostrando que, já na época, a empresa procurava estar à frente do seu tempo, em todos os aspetos, do tecnológico ao social”. Foi também por volta da mesma altura que a Disney chega a Portugal, “com um representante para o país, Espanha e Itália, sediado no número 13 da Praça dos Restauradores”, em Lisboa, especifica o especialista.

O primeiro Mickey Club, com Walter Disney no centro
(Foto: DR)

Além dos representantes, para Didier Ghez, a estratégia decisiva foi a produção de conteúdos locais. “O primeiro exemplo é a banda desenhada em Itália, com uma paródia ao Inferno de Dante que junta Rato Mickey e companhia, criada por artistas italianos, e que tem como ‘cenário’ paisagens locais.” A partir daí, o famoso rato deixa de ser norte-americano e passa a ser de qualquer sítio a partir do qual esteja a ser lido. “Eu sempre li e vi essa personagem e sempre tive a sensação de ela ser francesa; em Portugal teriam a sensação de ser portuguesa; isto porque a Disney conseguiu fazer daquela personagem uma personagem de todo o Mundo.”

Como já percebemos, desde os primórdios da marca que Walt apostou (e procurou) em artistas para além de si mesmo. E para além dos Estados Unidos da América. Essa realidade perdurou no tempo até à atualidade. Nuno Dias, realizador português, é a mais recente prova nacional disso mesmo. Como? Primeiro, uma descrição.

A primeira longa-metragem produzida pela empresa, Branca de Neve e os Sete Anões
(Foto: DR)

Surge o som imponente do mar. Depois, a imagem de uma onda que preenche todo o ecrã. De seguida, outra. Imponente. Vê-se o espumar da água, ouve-se o ribombar das grandes ondas, que batem numa rocha. Aparece então o título “A pequena sereia”. Não a original, de 1989, mas o live-action lançado no início do presente ano. A tempestade marítima que durante cerca de um minuto faz a abertura da mais recente adaptação da Disney tem cunho português. Cunho nacional não apenas na localização, uma vez que aquelas ondas que se podem ver no início do filme tratam-se, nada mais nada menos, das grandes ondas da Nazaré; mas também cunho nacional pelo talento que as filmou: Nuno Dias, como já referimos.

O jovem de 25 anos é realizador e, digamos, especialista nas ondas da Nazaré. Já as filmou para diversas produções próprias, mas também para outras maiores, como o documentário da gigante HBO, “100 Foot Wave”, sobre a chegada do surfista Garrett McNamara à vila. Foi então que, certo dia, Nuno recebeu um email da Disney. Sem grandes detalhes, sem enunciar qual o filme em questão, referiam apenas o interesse nas filmagens de ondas que já tinha feito vezes sem conta. “No primeiro contacto fiquei com a ideia que apenas queriam licenciar imagens que eu tinha captado antes, o que já seria ótimo, mas quando percebi que eles queriam mesmo gravar algo inédito e que eu seria o responsável por isso…” Há uma pausa. Não encontra bem as palavras para o descrever e há, ainda hoje, volvidos dois anos das filmagens, um maravilhamento na voz. “… foi o realizar de um sonho, acho que isso já descreve bem o que senti.”

Didier Ghez, historiador e fã da Disney
(Foto: DR)

Como qualquer criança da sua geração, cresceu ainda com as cassetes e DVD da Disney. Com as princesas, o Rato Mickey, todos os outros animais. “Para mim, a participação na ‘Pequena Sereia’, um filme que fez parte da minha infância, não foi trabalho, foi lazer, porque eu não consigo chamar trabalho a algo que me deu tanto prazer e fascínio de realizar.” Foram três dias de autêntica magia. A responsabilidade era muita. Nuno Dias teve de escolher o dia ideal de inverno para captar as ondas perfeitas – “todos os dias de manhã ligavam-me a perguntar se já sabia qual era o momento para marcar”. Depois, só teve de se preocupar em levar uma mala com roupa, “tudo o resto foi disponibilizado pela equipa, até tinha três assistentes só para mim”. Agora, espera que outras portas se possam abrir, na Disney ou “mais-além”.

Inaugurar um sonho

Também Didier, na juventude, mas numa outra década, teve a sua primeira oportunidade com a Disney de forma inusitada – “é como se tudo se tivesse alinhado para eu fazer o que faço hoje”. Era ainda adolescente quando, em meados dos anos 1980, uma sucursal da marca abriu em Paris, França, onde vivia. O novo local de criação e produção era liderado por dois irmãos animadores franceses. “Eu falava a língua deles e desde criança que vivia fascinado com o universo, arrisquei a minha sorte e propus a uma revista norte-americana sobre animação fazer uma entrevista aos novos representantes da marca.” E assim foi. Pediu ajuda a um amigo para traduzir a entrevista para inglês, enviou para publicação e o primeiro trabalho ganhou vida.

O culminar da carreira, é, ainda hoje, garante, a abertura da Disneyland Paris, antes chamada de Euro Disney Resort. “Eu fiz parte da equipa que criou e inaugurou o parque.” Didier Ghez esteve lá duas vezes antes de abrir. Viu tudo a ganhar forma. Até à grande noite. “A 12 de abril de 1992, estive lá quase todo o dia, fascinado com o que tínhamos conseguido. Lembro-me de ter ficado à conversa com o diretor dos arquivos da Disney, conversa essa que viria, muitos anos mais tarde, a dar origem à associação.” É como ter vivido um sonho. Sonho esse que passou, mais tarde, para as páginas de um livro. Didier é o autor, além de mais de quatro dezenas de outros títulos relacionados com o tema, de “Disneyland Paris: do esboço à criação”.

Nuno Dias, realizador português que participou na mais recente produção da Disney
(Foto: DR)

O parque europeu foi, aliás, a ignição para o trabalho que Sara Pedro e Luís Pinto desenvolvem “fora de horas” com a página de fãs. “Já tínhamos ido à Disneyland em 2016, mas, olhando para trás, percebemos que não aproveitamos quase nada.” Por isso, regressaram em 2019, agora com a lição mais estudada. “Mas, mesmo assim, faltava informação em português, tivemos de descobrir tudo em páginas de outros países”, adianta Sara. A oportunidade de “mercado” fez com que, dois dias depois do regresso de Paris, estivessem em frente ao computador a criar o grupo. Nunca mais pararam. O objetivo, além de partilhar curiosidades, é ajudar todos e todas a ter “a experiência mais mágica possível”. “Sabiam que há um dragão robotizado por baixo do castelo da Cinderela?” São estas e outras dicas, bem como promoções, que são partilhadas no grupo. Um dia, Sara e Luís sonham conseguir fazer da paixão pela Disney uma ocupação a tempo inteiro, fazendo, na prática, o que chamam de lema da marca, “ajudar a concretizar sonhos como que por magia”.

Nuno Dias com a equipa de filmagens do live-action da Pequena Sereia
(Foto: DR)

E, depois dos festejos, serão mais 100 anos? Perguntamos a Didier, que, em conversa numa sala recheada de livros e bonecos, responde com convicção: “Serão muito mais do que 100”. Esse parece ser, pelo menos, o objetivo da marca, notado tão simplesmente no logótipo dos festejos do centenário, em que os dois zeros que formam um 100 são, na verdade, um infinito. Será até “ao infinito e mais além”.

Factos

32
Número de Oscars que Walt Disney conquistou, individualmente. O primeiro troféu foi arrecadado em 1932.

11
O relógio do Rato Mickey, lançado em 1933 na loja Macy’s, em Nova Iorque, Estados Unidos, vendeu 11 mil unidades só no primeiro dia.

6
Parques temáticos da Disney no Mundo: Califórnia, Orlando, Tóquio, Paris, Hong Kong e Xangai.

Cronologia

1901
Walter Disney nasce a 5 de dezembro em Chicago, Estados Unidos da América

1923 A 16 de outubro, é fundada a “The Disney Brothers Cartoon Studio”, por Walt e Roy, seu irmão

1928 Estreia em Nova Iorque a animação “Steamboat Willie”, que apresenta Mickey e Minnie pela primeira vez

1932 É atribuído a uma das curtas-metragens da série “Silly Symphony” o primeiro Oscar da companhia

1937 Estreia em Los Angeles a primeira longa-metragem da Disney: Branca de Neve e os Sete Anões

1955 Abre o primeiro parque de diversões temático da Disney, localizado na Califórnia

1966 Walt Disney morre a 15 de dezembro devido a cancro do pulmão

1983 Inauguração da Disneyland Tóquio, o primeiro parque temático fora dos Estados Unidos

1992 Abertura da Disneyland Paris, à época apelidada de Euro Disney Resort

1994 Estreia de A Bela e o Monstro na Broadway, a primeira peça de teatro da Disney

1998 Acontece a primeira viagem a bordo do navio Disney Magic

2006 Disney compra a Pixar Animation Studios

2009 É anunciada pela Disney a aquisição da Marvel Entertainment

2017 A Disney adquire grande parte dos conteúdos da 21st Century Fox

2019 Lançamento da plataforma de streaming Disney+

2019 Estreia de Frozen 2, que ainda mantém o título de filme da Disney com maior receita acumulada

2023 Celebração do centenário da Disney