Como resistir à avalanche comercial desta época

Primeiro é a Black Friday, depois a Cyber Monday, logo a seguir vêm o Natal e os saldos de janeiro. O apelo ao consumo é uma bola de neve gigante. O consumidor é cada vez mais atento, e o marketing, por isso, torna-se mais engenhoso. Há que saber como o nosso cérebro funciona e conhecer as estratégias para fugir às compras por impulso. Mesmo que as campanhas publicitárias nesta fase apelem mais à emoção do que à razão.

Os alertas começam semanas antes, a Black Friday está quase aí, avisam as marcas em letras gordas em todos os cantos e esquinas, no mundo virtual, na televisão, na rádio, em vistosos múpis na rua, nos centros comerciais. Antes eram promoções de apenas um dia, hoje estendem-se por uma semana, até mais. Ainda o calendário assinala novembro. E o marketing aguerrido vai por aí fora num loop quase interminável. Logo a seguir vem a Cyber Monday, depois o Natal, todas as marcas têm o presente perfeito. Até aos saldos de janeiro. É uma avalanche comercial a que é difícil (ou quase impossível) resistir – e, sim, há estratégias, lá iremos. Comecemos, pois, pelo princípio.

“O apelo ao consumo é cada vez maior, mais sofisticado e prolongado no tempo. Porque as marcas percebem que já há uma maior resistência dos consumidores ao consumo intensivo que se faz nesta época. E as estratégias tornam-se mais criativas, fazendo apelos a aspetos que não são apenas racionais, como o preço mais baixo, mas também à carga simbólica, às emoções”, aponta Raquel Barbosa Ribeiro, professora e investigadora em Sociologia do Consumo e em Marketing no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa. A maior resistência dos consumidores é um ponto importante. Todos eles são diferentes, uns são mais suscetíveis do que outros, uns mais emocionais, outros mais racionais, não há homogeneidade nesta matéria. Mas, “no geral, as pessoas hoje são mais informadas, mais prudentes, recorrem a plataformas de comparação de preços, estão mais atentas”. A investigadora sublinha que “não estamos num tempo de consumo tão impulsivo proporcionalmente ao que tínhamos na primeira metade da década de 2000”. Os gastos, no total, até podem ser maiores – o consumidor português tem muito interesse nos produtos tecnológicos, que são habitualmente mais caros -, “ainda assim, é um consumo mais calculado”.

A publicidade tem, por isso, de se fazer engenhosa. Tem de ser capaz de apelar às tais emoções e de entrar num jogo mais desafiante. Edson Athayde, um dos publicitários mais premiados da história do nosso país, CEO e diretor criativo da FCB Lisboa (a única agência de publicidade a trazer um Grand Prix de Cannes para Portugal), defende que nada em publicidade são fórmulas exatas. “Mas é um facto que nesta época do ano é mais comum vermos campanhas que apelam para aspetos emocionais. Mesmo quando é um perfume ou um relógio, a marca vai tentar embrulhar, a palavra é mesmo essa, a comunicação do produto para que a pessoa perceba que é um presente, que é a representação de um sentimento que tem por alguém de quem gosta.” Esta é a época perfeita “para as pessoas acharem que as marcas são seres humanos”, diz. “Gostamos de marcas que pareçam pessoas, que nos contem histórias bonitas.” Muitas associam-se até a causas solidárias, erguem bandeiras sociais, sabendo que os consumidores hoje estão interessados no que as marcas pensam, em procurar aquelas com que se identificam.

Porém, o fenómeno vai muito além do presente ideal, o Natal é a época-rainha até para campanhas institucionais, comum em marcas que não vendem produtos, mas sim serviços. A bola de neve publicitária agiganta-se e salta fronteiras. “Por exemplo, no Brasil, já se sabe que Natal e Ano Novo é a altura de os bancos fazerem grandes filmes publicitários. E competem entre eles para terem o filme mais bonito, mais emocional. Em Espanha, é a lotaria que tem essa tradição”, observa o especialista. Em Portugal, nos últimos anos, foram as marcas de telecomunicações a assumir esse papel – há coisa de uma década este era território dos supermercados.

Há uma certeza: somos bombardeados no espaço físico e digital com imagens de presentes perfeitos, de chocolates, de vinhos, de emoções e promoções. Não é um mês para se lançarem novidades, “porque ninguém vai prestar atenção”, é para se embrulhar bem a mensagem. “Como se diz no Brasil, dezembro é para as pessoas alargarem os cintos e chutarem o balde. No mundo ocidental, é uma época para comprarmos coisas novas, para nós e para os outros. Até para a casa, um frigorífico novo, uma televisão nova. Também por isso foi criado o 14º mês, um suplemento para as pessoas terem mais acesso ao consumo”, comenta Edson Athayde. “É um mês para se gastar dinheiro, que ninguém tenha dúvidas disso.” E mesmo apesar de o comboio de campanhas ser cada vez mais extenso, o publicitário não enfia a Black Friday e a Cyber Monday no mesmo saco do Natal. “Novembro é para quem tem alguma poupança aproveitar e comprar mais barato. Dezembro é para todas as pessoas, aquelas que correm atrás do dinheiro no final do mês, as que deixam tudo para a última hora, toda a gente.”

Fazer listas, esperar, comparar

Parece evidente que hoje há um apelo contínuo ao consumo (que se agrava no Natal) e há que saber resistir. Ou melhor, há que saber detetar as técnicas de marketing para não nos deixarmos levar. “Sabemos que os nossos processos de tomada de decisão não são inteiramente racionais ou conscientes. Ficamos muito contentes de nos considerarmos animais racionais, e somos efetivamente, mas há uma série de coisas mais emocionais do que racionais que influenciam as nossas decisões”, explica Andresa Oliveira, psicóloga que trabalha a área de Ciências e Práticas Psicológicas na Ordem dos Psicólogos. A verdade é que o nosso cérebro utiliza uma espécie de atalhos, ou enviesamentos cognitivos, para processar informação, “sobretudo quando há muita informação, que é o caso desta época”. Vamos a exemplos concretos. O enviesamento da ancoragem, para começar. “Por exemplo, o preço de uma promoção normalmente vem ancorado ao preço original. O preço original até pode estar inflacionado, mas a estratégia de acoplar os dois preços faz com que achemos que é um negócio espetacular, quer seja, quer não.”

Também há o enviesamento da escassez, “aquelas ofertas por tempo limitado, em que se não comprarmos logo aquilo acaba, o que cria um sentido de urgência e nos leva a fazer compras que não faríamos se não estivéssemos influenciados por esta criação artificial”. Depois, o enviesamento da prova social. Aquela sensação de vermos outras pessoas a comprar, os centros comerciais cheios, os telejornais a noticiar enchentes às compras de Natal, as redes sociais a mostrá-lo também. Tudo isso influencia a nossa decisão de comprar. E a aversão à perda também. “Não gostamos nada de perder. Preferimos até não perder a ganhar. Porque a dor de perder é maior do que o prazer de ganhar.” Isto para dizer que os preços exclusivos – como é o caso de uma newsletter a anunciar exclusividade de acesso a preços mais baixos só para certos clientes – “podem fazer-nos sentir que estamos a perder um bom negócio, uma grande oportunidade e acabamos a comprar coisas que não precisamos para evitar o sentimento de perda”.

Segundo Andresa Oliveira, “todos nós somos sujeitos a este tipo de enviesamento, porque somos humanos e não podemos fugir-lhes completamente”. Mas ajuda estarmos conscientes deles e ter estratégias para não ceder à gratificação imediata, à compra emocional. Já toda a gente sabe que não se vai ao supermercado com fome, neste caso a fórmula é idêntica, entender como o nosso cérebro funciona é o segredo. Primeiro, há que estabelecer um orçamento, um teto máximo, antes de mergulharmos nas compras. E fazer uma lista das coisas que estamos a planear comprar, em vez de respondermos ao impulso de comprar o que nos vai aparecendo. “Até porque o marketing sabe como levar-nos à festa.” Depois, comparar preços, ver o mesmo produto noutras lojas, procurar saber se é, de facto, um bom negócio. E esperar. “Esta é muito difícil. Mas esperar umas horas, idealmente um ou dois dias, é uma boa técnica. Se ao fim de 24 ou 48 horas continuarmos a querer comprar, então a probabilidade de não ser uma compra por mero impulso é maior.”

Desconfiar, também. “Daqueles negócios que são demasiado bons para serem verdade. Perceber que site é aquele, falar com outras pessoas. Há dias confrontei-me com um preço ótimo e depois percebi que o site em causa era de coisas usadas, mas essa informação não era dada logo à partida.” Por fim, pensar nos motivos que nos estão a conduzir à vontade de comprar. Fazer perguntas racionais que atrasem o impulso e ponham travão à emoção. “Será que esta compra vai mesmo contribuir para ajudar crianças carenciadas? É algo que compro todos os meses e está mais barato? Preciso mesmo de uma torradeira nova? Será que não estou a fazer uma compensação emocional, a usar a compra para compensar um dia mau?”, exemplifica a psicóloga.

O online entra neste universo e merece uma reflexão à parte. No mundo virtual é ainda mais fácil fazer compras impulsivas. “Nem tenho de tirar a carteira da mala, não dói nada.” Um dos principais truques é eliminar os dados de pagamento automático que temos guardados nos sites. “Dá trabalho, temos de escrever tudo outra vez, temos de nos levantar, de ir buscar o cartão, mas isso dá-nos um momento adicional para pensarmos naquela compra e pode ser o suficiente.” Também desistir da subscrição de newsletters das lojas, já que quanto mais expostos somos, mais vontade temos de comprar. Como realça a investigadora Raquel Barbosa Ribeiro, “o marketing, ao contrário do que se diz habitualmente, não cria necessidades, mas torna-as evidentes e mais fortes”.

Um carrossel emocional que nos mantém “colados”

Tanto que as marcas estão a tornar-se hábeis em criar uma autêntica montanha-russa de emoções viciante. Cláudia Simões, presidente de Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho e a primeira portuguesa a vencer o Prémio Hunt/Maynard da Associação Americana de Marketing, chama-lhes “sticky journey”. Porque é exatamente isso, uma viagem para deixar os consumidores “colados”. Com as marcas a criarem continuamente momentos de excitação, de novidade, uma espiral de envolvimento que deixa o cliente sempre ligado à oferta. O exemplo mais simples para o entendermos é o da Netflix ou HBO, com as séries, onde há sempre um plot twist, uma coisa nova, que nos deixa agarrados episódio atrás de episódio. Só mais um e depois outro. E a ansiar novas temporadas. “É um novo modelo, que começou a emergir na última década.”

Cláudia estudou esta “sticky journey” principalmente com base em fenómenos digitais, como a série “Guerra dos tronos”, a rede social Tinder ou o jogo Pokemon Go. Mas a verdade é que a Black Friday, “que agora parece durar quase um mês”, a Cyber Monday, tudo isso é também uma forma de “manter o interesse do consumidor, de o manter atento, ligado, antecipando já o Natal”. Nesta época, esclarece, “as marcas precisam muito de estar presentes, nos vários meios de comunicação, nos tradicionais, nas redes sociais, de recordar que existem, de conquistar novos consumidores também”. E a questão é que o consumidor é cada vez mais complexo, “está exposto à marca de formas muito diversas, nem todas controladas pela própria marca, através de amigos, no espaço físico, no digital, redes sociais, sites de reviews”. “Há uma nova complexidade de consumidor, que é muito mais conhecedor e que tem muito mais informação ao dispor sem sequer sair de casa.” O que obriga, claro está, a um marketing “mais agressivo, mais intenso e em mais sítios, já não é só na televisão, é em todo o lado”. Os atalhos que o nosso cérebro cria já são sabidos, as estratégias para os contornar também. “É sempre importante haver emoção, faz parte desta época, mas planear a racionalizar as compras ajuda-nos a não cair nos impulsos e nos exageros”, conclui Cláudia Simões.