Coco e Alcaraz sobem à rede do ténis mundial

Dificuldades financeiras, o papel decisivo dos pais, períodos depressivos e estratégias mentais para lidarem com a pressão que sempre tiveram trilharam a ascensão dos dois prodígios à elite do ténis mundial.

A não ser que os imprevistos e os imponderáveis desta vida se mostrem e se repitam com uma força tal que seja impossível fazer-lhes frente, os próximos anos de Coco Gauff e Carlos Alcaraz seguirão uma previsibilidade às tantas aborrecida mas, acima de tudo, grandiosa e a transbordar de troféus, títulos, recordes, dinheiro. Atualmente, a questão – a grande questão – já é saber apenas o quão bem-sucedidas serão, a mesma que, por acaso, lhes faz companhia praticamente desde que pegaram numa raquete, mais ou menos na mesma altura, embora em lados opostos do Oceano Atlântico, ela na Florida (EUA) e ele em Múrcia (Espanha). Aos 19 e aos 20 anos, respetivamente, não estão só a impor-se na elite do ténis mundial; também se tornaram grandes figuras planetárias, referências desportivas, a cara de grandes marcas internacionais, a voz de causas sociais e o exemplo a seguir pelos (ainda) mais jovens. Um eventual grande problema é que ainda estão a apalpar terreno fora da adolescência e já levam a vida ao som de toda esta fanfarra ensurdecedora de pressão e atenção mediáticas, capazes de enlouquecer até as mentes mais ajuizadas, mais preparadas e mais alertadas, como dizem ser a dela e a dele.

Com 14 anos, Carlos Alcaraz rumou à Academia Equelite, onde ainda passa muito tempo, e começou a ser treinado por Juan Carlos Ferrero, um ex-número 1 do Mundo e ainda atual treinador
(Foto: Sebastien Bozon/AFP)

Com 14 anos, Coco Gauff conquistou o torneio de juniores de Roland Garros. No ano seguinte, com 15, foi a mais jovem de sempre a entrar no quadro principal de Wimbledon. Nada disto, contudo, era uma surpresa. Era, sim, o corolário de uma década de preparação intensa que ia fazendo progredir um talento imenso, uma personalidade incomum e uma maturidade quase impossível de conceber, a tal ponto que pai e mãe decidiram abdicar das respetivas carreiras profissionais para se dedicarem exclusivamente à formação, desportiva e escolar, da filha. Não fazia falta explicar-lhes o risco que corriam, eles sabiam-no. Muitos anos depois, num inesquecível 9 de setembro de 2023, tudo fez sentido, quando Cori – que se autointitulou Coco para não ser confundida com o pai, Corey – venceu o US Open, tornando-se a segunda mais jovem da história a ganhar o Grand Slam americano.

Os pais tinham razão

É aqui que as jornadas dos dois prodígios começam a ter contornos comuns. Carlos Alcaraz é filho e neto de dois ex-tenistas, também nomeados Carlos, mas o mais sortudo desta genealogia. O pai, por exemplo, teve que abdicar da carreira profissional por não ter capacidade financeira para a suportar. E, ao contrário do herdeiro, também não teve quem o ajudasse, um amigo como aquele que numa fase decisiva da formação de Carlitos aceitou suportar os custos relacionados com viagens e alojamentos para torneios internacionais. Claro que o facto de nessa altura já todos os murcianos estarem ao corrente de terem em mãos um futuro campeão facilitou a decisão. Depois de ter recebido a primeira raquete, aos quatro anos, Alcaraz nunca mais a largou. “Nasci com o ténis no sangue”, diz e reitera frequentemente, às vezes quase como que a desculpar-se por ser tão bom ou por, aos 20 anos, já ter dois títulos do Grand Slam (US Open em 2022 e Wimbledon em 2023) ou por, com 19 anos e quatro meses, se ter tornado no mais jovem de sempre a liderar o ranking mundial.

Carlos Alcaraz em 2019
(Foto: DR)

O ponto de partida para o estrelato aconteceu no Club de Campo de El Palmar. Ali, sob os olhares atentos do pai, coordenador da academia de ténis, e do avô, um dos fundadores da mesma, deu as primeiras raquetadas, fez os primeiros amortis, correu os primeiros sprints, bateu as primeiras bolas paralelas ao longo de court, começando a desenvolver os atributos que na altura espantaram tudo e todos e que hoje são imagem de marca de alguém que “tecnicamente é incrivelmente completo”. “Nas primeiras vezes que o vi, disse logo que era melhor do que Rafael Nadal, Roger Federer e Novak Djokovic com a mesma idade. Muitas pessoas disseram que eu estava a exagerar”, conta Miguel Seabra, especialista e comentador de ténis, à “Notícias Magazine”. Nessa altura, Carlos Alcaraz já estava a ser polido por Juan Carlos Ferrero, a viver e a treinar num ambiente minimalista, pouco mais do que frugal, debaixo de regras apertadas e num regime de quase reclusão. Saídas só para ir aos torneios e para ir visitar a família, normalmente ao fim de semana. Apesar de o primeiro ano ter sido um suplício, feito de noites mal dormidas e com algumas lágrimas, estoicamente suportado, tal o grau de disciplina e sacrifício a que estava sujeito, Charlie, a outra alcunha com que espera que o tratem (“Quando me chamam Carlos, parece que fiz algo de errado”, já explicou), não só sobreviveu como ficou a gostar. Desde então, Villena, a Academia Equelite e uma casa pré-fabricada lá situada, pequena e modesta, continuam a ser o refúgio preferido: ainda hoje, feito estrela mundial, é lá que mantém a cabeça no sítio, os pés na terra e alguma sanidade mental.

Filho e neto de ex-tenistas, Carlos Alcaraz cresceu a idolatrar Roger Federer
(Foto: DR)

As dificuldades financeiras também têm um certo peso na evolução de Coco Gauff. No início, foram uma das razões que levaram Corey a assumir a responsabilidade de treinar a filha, inspirado pelo exemplo de Richard Williams, pai e primeiro treinador das irmãs Serena e Venus. Mais tarde, serviram para ela rumar a França e ser integrada na Champ’seed Foundation, um programa criado por um dos treinadores mais conceituados do Mundo, que tem como objetivo primordial ajudar tenistas jovens e promissores de todo o Mundo com poucas possibilidades económicas. Patrick Mouratoglou também ficou impressionado imediatamente. “Na primeira conversa que tive com ela percebi logo que era diferente, mesmo assim surpreende-me com regularidade. Aos 14 anos, já tinha mais maturidade do que mulheres de 25”, referiu numa entrevista ao “The Guardian”. Feliz, ou infelizmente, já teve oportunidade para o mostrar.

Reset mental

É que, como já se viu, e ao contrário de Carlos Alcaraz, que, apesar de todo o suposto potencial, não ganhou nenhum grande título como júnior e nunca passou do 22.º lugar no ranking mundial desse escalão, conservando assim alguma distância quanto às expectativas futuras, muitas vezes exageradas e desmedidas, Coco Gauff foi posta à prova muito cedo, consequência dos tais feitos precoces. A primeira grande vitória da sua carreira é que ela prevaleceu, ultrapassando períodos de grande desânimo e até momentos de dúvida sobre se o ténis era mesmo o que ela queria e devia fazer. Chegou a ponderar interromper a carreira e a repensar a vida. “Durante um ano estive realmente deprimida por causa do ‘hype’ à minha volta. Estava perdida, confusa. Chorei e pensei muito, ponderei muitas coisas. Acho que esse período me tornou mais forte e permitiu-me conhecer-me melhor”, contou ao site Behind The Racquet.

Carlos Alcaraz com os pais e o irmão mais novo
(Foto: DR)

Alguns anos depois, ainda há vestígios dessa altura nas atitudes e na abordagem de Gauff à carreira e à forma de levar a existência. Por exemplo, o uso das redes sociais está cingido a apenas uma hora por dia, numa tentativa, aparentemente bem conseguida, de evitar ler, ver e escrever o que não deve e de não desperdiçar a limitada capacidade de atenção e concentração de que dispõe. Por outro lado, encontrar nas palavras e nas considerações dos outros uma vitamina de motivação extra e não algo capaz de a deixar em baixo foi uma aprendizagem para a vida. “Obrigado às pessoas que não acreditaram em mim. Há um mês ganhei um WTA 500 e pessoas disseram que eu ia parar por aí. Há duas semanas venci um WTA 1000 e pessoas disseram que era o mais alto que eu ia ter. Três semanas depois estou aqui com este troféu. Para aqueles que pensavam que estavam a colocar água no meu fogo, estavam apenas a colocar gás”, disse, após receber a taça de campeã do US Open e um cheque de três milhões de euros.

Coco Gauff
(Foto: Francisco Guasco/EPA)

Não foi de maneira tão drástica nem tão problemática, contudo, o caminho Carlos Alcaraz também exigiu uma espécie de reprogramação mental. A certa altura, a frustração foi um empecilho gigantesco no progresso do marciano – ou murciano, como queira -, ao limite de Juan Carlos Ferrero decidir-se a incluir uma psicóloga (Isabel Balaguer) na equipa técnica. Era urgente pôr cobro aos ataques de raiva e de fúria do jovem promissor, que incluíam partir raquetes, chorar e recusar-se a deixar o campo depois de uma derrota, por insignificante que fosse. “Estava sempre zangado, a queixar-me”, deu de barato Carlitos. Tendo isto em conta, é quase inconcebível pensar no Alcaraz atual, o que compete sempre com a faca nos dentes mas como se estivesse no recreio da escola, a jogar com os amigos, e que tem sempre um sorriso pronto, principalmente nos momentos mais delicados. “Quando estou a atravessar momentos duros, digo a mim mesmo que estou a tornar o meu sonho realidade, que é neste sítio que quero estar, e é impossível não sorrir e tentar divertir-me ao pensar nisso”, referiu. Esta forma de estar até já inspirou Coco Gauff: “Estava a perder, não estava a jogar bem e mesmo assim sorria. Se ele, com toda a pressão que tem, consegue fazê-lo, eu também consigo”, frisou a americana.

O potencial de Coco Gauff levou pai e mãe a abdicarem das respetivas carreiras profissionais para se dedicarem à formação da filha, tenística e escolar
(Foto: DR)

Miguel Seabra vê nessa faceta de Alcaraz algo inerente à qualidade das pessoas que tem à volta: “Na preparação, no treino, os espanhóis são incríveis. Ainda por cima, o treinador foi um antigo número um do Mundo, tem muito conhecimento e experiência. Por outro lado, os pais são muito relaxados, sabem como funcionam as coisas, não o pressionam”, salienta à NM. Em comparação com os progenitores de Coco, nos quais o habitual comentador da Eurosport nota “uma pressão maior”.

“Call me champion”

Até ver, no entanto, não há muitos reparos a fazer ao trabalho das vidas de Corey e Candi Gauff, a não ser, talvez, os nervos que o pai transporta sempre com ele em cada jogo e que já os levaram, em conjunto, a tomar a medida de o deixar fora do camarote reservado às famílias e às equipas técnicas das jogadoras, afastando-o do campo de visão da filha, a mesma que abraçou comoventemente nas bancadas do Arthur Ashe Stadium, poucos minutos depois de Coco ganhar a final do último US Open. Depois, o que todos fizeram foi vestir uma t-shirt pensada de propósito para a ocasião pela marca desportiva New Balance, que patrocina e veste a campeã americana desde os 14 anos. Aquele já icónico “Call Me Champion” estampado num fundo branco esteve guardado muito tempo, mas, assim que se deu a conhecer, esgotou num estalar de dedos mal foi posto à venda. Surpreendente? Só se, ao mesmo tempo que galgava terreno no ténis, Gauff também não evoluísse como uma mulher de causas, ativista fervorosa em temas como racismo, a pobreza, o uso de armas, os direitos LGBTQ+ ou as alterações climáticas, que lhe tem valido seguidores, fãs e aplausos digitais. Já discursou em manifestações, também criou uma ONG para ajudar crianças afro-americanas desfavorecidas e contribuiu para reconstruir parques públicos em Atlanta, onde nasceu.

(Foto: DR)

Mesmo que parassem de jogar hoje, Coco e Carlitos já seriam mais campeões do que a maioria e teriam dólares e euros mais do que suficientes para viverem longas e boas vidas. Mas isso só seria uma possibilidade se desde que se conhecem não tivessem alimentado sonhos e objetivos muito maiores. Sobre o dinheiro, por exemplo, as estimativas mais contidas apontam para proveitos na ordem dos 20 milhões para o espanhol e de 11 milhões para a americana. Isto tendo apenas em consideração os prémios de carreira. No caso de Alcaraz, ainda há que acrescentar acordos mais ou menos milionários com a Nike, a Louis Vuitton, a Calvin Klein, a Rolex e a BMW. Todos os contratos, as respetivas condições e os gigantes proveitos são supervisionados pelos pais, que também continuam a controlar-lhe as contas bancárias, aqueles gastos mais supérfluos e os investimentos mais significativos. Tanto para ele como para Coco, que ainda vive com o pai e mãe, as contas que importam são outras e mais simples: envolvem um court, uma bola amarelada, uma raquete e um adversário do outro lado da rede.

Ativista por diversas causas, a americana é a principal cara da marca desportiva New Balance desde os 14 anos
(Foto: Michael Owens/Getty Images/AFP)

Com quatro anos, Gauff soube o que é que GOAT (Melhor de sempre) significa e, de acordo com o progenitor, anunciou imediatamente que “quer ser a GOAT”. Na altura ainda não sabia em quê, até o ténis a conquistar em vez da ginástica, da dança, do atletismo e do futebol, que também praticou. Alcaraz também já comunicou que não se contenta em ser o próximo Nadal espanhol (22 Grand Slam conquistados) e coloca a fasquia no pedestal de Novak Djokovic (24). Ambos estão na linha da frente para dominarem o ténis mundial nos próximos 10 ou 15 anos, faltando saber se estarão à altura dos sonhos que carregam. Para Miguel Seabra, o espanhol é quem mostra mais argumentos para atingir esse nível, ressalvando que “há muitos fatores que podem fazer descarrilar uma carreira”. “O grande inimigo dos dois será o tédio, a falta de adversários que os motivem, sobretudo no caso do Alcaraz. Depois têm que perceber, e parecem sabê-lo, que o que mantém alguém no auge não é o talento, mas a disciplina, o trabalho, a motivação”, completa. Estes céus têm limites?