Aura Miguel: “Estou farta de ouvir falar em mulheres padres e padres casados”

Seguir o Papa é a vida de Aura Miguel, a única vaticanista portuguesa. Recebeu beijos de João Paulo II, ouviu anedotas a Bento XVI, conta com um prefácio de Francisco no seu novo livro - “Um longo caminho até Lisboa”, ou a história das Jornadas Mundiais da Juventude. Das 14 edições, esteve em 13.

Recebe-nos na Quinta do Bom Pastor, às portas de Lisboa, sede do grupo Rádio Renascença (RR). Nos finais do século XIX, ainda propriedade de João António Lopes Pastor, a casa senhorial receberia Garrett por longas temporadas. Vendida mais tarde ao Patriarcado, a quinta de 29 200 metros quadrados serviria de recolhimento a Cerejeira, o cardeal patriarca do Estado Novo, que ali morreria em 1971. Nos jardins e hortas fez-se a sessão fotográfica. A conversa teve lugar numa das cabinas da rádio. Com bom humor, e alguma irritação. Muita mesmo, quando colocada perante temas “fraturantes” da Igreja – o casamento dos padres, a ordenação das mulheres. Mas também com muito entusiasmo sempre que se falou de Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ). Aura Miguel, aos 65 anos.

“Um longo caminho até Lisboa” é um relato de viagens. É, sobretudo, uma jornalista viajante?
Diria que sim. É uma vida muito cansativa, mas da qual gosto muito. Porque viajo, coisa que adoro, e ainda por cima viajo com o Papa, qualquer que ele seja. No caso das JMJ, estive em todas, excetuando a de Buenos Aires. Uma experiência maravilhosa que começou em 1989. Também era uma jovem, uma jovem católica, participando enquanto tal e enquanto jornalista.

A ideia partiu de João Paulo II, o seu Papa. O Papa que acompanhou durante 15 anos.
As JMJ são uma intuição fundamental de João Paulo II, que não perdeu a força. Nem ao fim de 40 anos. Mudaram os desafios, as realidades sociológicas, até os jovens – os de hoje são muito diferentes dos jovens dos anos 1980. Ainda havia muro de Berlim, imagine. Porém, apesar das mudanças, as JMJ continuam vivas.

Francisco, no prefácio do livro, pede aos jovens que não fiquem no sofá.
Pede uma atitude diferente perante a vida. Para o Papa, um jovem tem um potencial para render no encontro com os outros. Mas esse encontro não pode ser filtrado por ecrãs de telemóvel ou de computador. As jornadas são um convite do Papa e a resposta implica uma opção existencial. Mas, ainda que vão apenas pela festa, o Papa já fica aliviado. Lisboa é uma cidade de encontros, multifacetada, com gente de outras religiões, de outras culturas, com bairros muito diferentes. E com o rio.

Não basta convidar. A Igreja tem sabido ir ao encontro do olhar dos jovens?
Na velha Europa há um desgaste da fé. Bento XVI tinha razão em nos alertar para os perigos de darmos a fé por adquirida. A fé tem de ser cultivada e há muita distração da própria Igreja em não avivar a fé. Hoje, já não dá ser católico porque sim. Há muito tempo que já não dá. É preciso saber dar as razões da fé. Sem esse percurso, os jovens desiludem-se. A Igreja está viva, mas não tanto aqui, na Europa.

A melhor maneira de cativar os jovens não teria sido denunciar desde sempre os abusos sexuais, em vez de os encobrir? Como se convoca para uma experiência de fé a juventude, com tal fardo às costas?
Essa realidade terrível já existia em 2008, nas jornadas de Sydney, com Bento XVI. E foi um acontecimento extraordinário. Depois disso, aconteceram mais quatro. Num texto para a Cimeira sobre os abusos sexuais, convocada por Francisco, Bento XVI lembra que, sendo o contexto dos abusos tão horroroso, a tendência é pensar que temos de fazer uma nova Igreja. Mas não é assim, acrescentou. Seria até injusto que, por causa de uma realidade tão aberrante, se perdesse uma iniciativa com tal grandiosidade.

Estas JMJ podem ficar marcadas precisamente pelas conclusões da comissão encarregue de avaliar a extensão dos abusos sexuais na Igreja em Portugal. Que levaram, de resto, os bispos ao Parlamento. Pela primeira vez. Foi um momento histórico?
É a primeira vez, mas não o entendo assim. Não me parece que o poder legislativo queira controlar a Igreja. Espero que não tenha sido esse o critério. O que ficou também claro é que havia uma certa ignorância dos deputados sobre o funcionamento da Igreja.

Ainda sobre o apelo aos jovens. Uma Igreja que só fala em sexo ou uma Igreja que prega o amor ao próximo, qual é a proposta mais radical e próxima de Jesus?
A proposta mais difícil de todas é fazer amizade com Cristo a sério. Há uma maneira de olhar para a Igreja sob o ponto de vista moralista: isto podes, isto não podes, isto dá, isto não dá. Quem tem fé, adere à Igreja.

A que Igreja?
É preciso ir ao fundo da questão do que é a Igreja. A Igreja não existe sem Cristo nem Cristo existe sem a Igreja. E Cristo é uma pessoa. Não é um conceito, um conjunto de valores, uma doutrina, que é aquilo a que está sempre reduzido. Cristo é uma pessoa e se é uma pessoa relaciono-me com ele como com qualquer outra. Essa experiência está muito esquecida no Ocidente. Se a fé é uma adesão pessoal a Cristo, quem a tem está disposto a abdicar de uma data de coisas. Seguir Cristo é uma questão de liberdade de tal maneira que depois não há nada a perder. Faz-se por amor. Uma amiga minha, linda de morrer, trocou uma carreira brilhante pelo Carmelo, optando por uma liberdade maior.

“A fé tem de ser cultivada e há muita distração da própria Igreja em não avivar a fé. Hoje, já não dá ser católico porque sim”, reconhece Aura Miguel
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

É a única vaticanista portuguesa. O Vaticano continua um lugar de muitos segredos. Como jornalista que segredo gostava de conhecer?
Quando comecei a trabalhar, um dos bispos da Conferencia Episcopal da altura, D. José Garcia, chamava-me “a coscuvilheira”. É o que eu sou. Sou coscuvilheira. Mas, apesar de toda a minha curiosidade, há certas coisas que não me importo de não saber. Reconheço, porém, que João Paulo II tem muitos filões. Por exemplo, a conversa que teve com Fidel Castro. Estive nessa viagem, superhistórica.

Como decorrem essas viagens?
É preciso saber a justa medida entre a profunda curiosidade – e é por isso que vamos, se não era impossível aguentar uma viagem papal, que tem horários alucinantes e carga de trabalho imensa – e a realidade do Vaticano. Há um conjunto de regras não ditas que é preciso descodificar – um vaticanês, que faz parte de um estilo protocolar, tal como existem regras na Casa Branca ou na monarquia inglesa. Logo que me deram a acreditação, um colega, mais velho, avisou-me de que no que diz respeito à organização das viagens, há uma palavra obscena, a evitar a todo o custo: “porquê?”. Quer dizer, as viagens são de tal maneira estudadas ao pormenor que se nos mandam levantar às quatro da manhã para estar em certo sítio é para o fazer sem questionar.

Fale-me desse vaticanês.
Uma das entrevistas com João Paulo II foi feita numa visita dele a uma exposição organizada por bispos portugueses, à porta fechada. O Papa estava rodeado pelos monsenhores, num segundo círculo pelos guarda-costas e ainda depois por uma corte de convidados. Só então seguia eu. Por sorte, cruzei-me com o secretário do Papa, que me conhecia e a quem pedi umas palavrinhas com o Papa. “Não sei de nada”, respondeu ele. Essa frase foi um sim. Aliás se tivesse pedido uma entrevista pelas vias oficiais teria sido recusada. Avancei, furei o círculo, informei os guarda-costas que olharam para o secretário. Ele encolheu os ombros. Novo sinal verde. Quer a melhor? A entrevista não ficou gravada. Acha normal?

Acho, acho. Devem ser muito raros os jornalistas que não passaram por essa angústia.
Consegui o mais difícil. Inclusivamente, o Papa pegou-me na mão que tinha o microfone. Pois quando olho para o gravador percebo que não está a gravar. E para a rádio é fundamental gravar.

Não é condição para se ser vaticanista ser católico. A Aura é. Como compagina a sua fé com o exercício do jornalismo?
O facto de ser católica não é um menos. É um mais.

O que vê quando olha para o Papa?
Um homem com uma responsabilidade imensa, única no Mundo e que tem coisas para nos dizer. Fico atenta, de maneira a ler nas linhas e entrelinhas. Isto não é coisa sentimental.

E a infalibilidade papal?
Creio nela, sempre que essa questão se colocar.

O papa da Aura é João Paulo II.
Cresci com ele, como adulta e na fé.

Como lidaria com a possibilidade de ter de escrever uma notícia desagradável sobre ele? Por exemplo, a notícia avançada na Polónia de que teria encoberto abusos sexuais?
Nós demos essa notícia citando as fontes. Mas já foi desmentida e o Papa Francisco disse até que se tratava de uma cretinice. Se fosse verdadeira, tinha de ser dada. Fi-lo quando João Paulo II começou a adoecer, a babar-se em público.

É o homem a quem chama Santo Padre.
No princípio ficava um bocado perturbada porque o conhecera vigoroso, jovem, divertido. Depois, foi caindo. Ver um homem tão extraordinário naquela fragilidade implicou um percurso do qual estou muito grata, feito à luz da fé. Porque coincidiu com o convite dele em 2002, já velho e doente, a 14 jornalistas para fazerem meditações sobre a Via-Sacra no Coliseu, a famosa Via-Sacra. Fui uma das escolhidas.

Porquê a Aura?
Não faço ideia. Nunca me explicaram. Fomos 14, todos muito diferentes. Da mesma maneira que nunca explicam por que razão uns entram e outros não entram no avião papal. A tal regra do “porquê”.

João Paulo II não escondeu a decadência. A fragilidade. Porque quis ser mártir ou para mostrar que se é pessoa até ao fim?
A segunda. Manifestamente a segunda. As humilhações foram sucessivas. Um homem vigoroso, com uma voz fabulosa, que deixou de conseguir falar. Na preparação para a última aparição, a bênção Urbi et Orbi do domingo de Páscoa, esteve uma semana inteira a treinar com um terapeuta da fala. Ia dizer apenas uma frase muito curta. Não foi capaz. Perante a praça de São Pedro cheia não lhe saiu nada. Foi primeira página no Mundo inteiro. Pensei: ou isto é uma humilhação horrorosa, um castigo divino, ou então é uma imensa liberdade de quem já deu tudo a Jesus.

Chorou na morte dele?
Muito.

Uma caneta em que não toca porque foi usada por ele, uma encíclica autografada. E uma bochecha papal (a face em que o Papa fez uma festinha).
É uma relíquia. A minha bochecha.

Quando entrevista um papa o guião passa por um crivo?
Há um guião, mas não há crivo. No avião, durante muito tempo as perguntas eram pedidas de braço no ar. Relativamente à conferência de imprensa, somos convidados por países. Por Portugal estou só eu.

Porque é que Portugal não tem mais vaticanistas?
Boa pergunta. A única que se arrisca a desviar uma parte substancial do seu orçamento é a Rádio Renascença. Cada viagem do Papa é milionária. Cada jornalista paga bastante para entrar no avião papal. Acho mesmo que os jornalistas pagam o avião, que é fretado.

Quanto por viagem?
Nas viagens à República Democrática do Congo e ao Sudão do Sul, por exemplo, o bilhete de avião rondou os seis mil euros. Ora, o Papa viaja seis vezes por ano.

Porque há ideia de que são convidados.
Não (ri). Candidatamo-nos, obrigamo-nos a cumprir tudo o que decidirem – hotéis marcados por eles, tudo – e pagamos o avião. Mas, lá está, temos acesso ao Papa.

Foi uma jornalista a aperceber-se da resignação de Bento XVI. Porque sabia latim. Teria percebido?
Não teria percebido porque não sei latim. Falamos sempre em italiano.

Qual foi a pergunta mais provocadora que fez a um Papa?
Fiz uma descarada a Francisco em 2015. Perguntei-lhe como aliava todos os elogios, as primeiras páginas, a possibilidade de um Nobel da Paz com as palavras de Jesus “Sereis odiados por causa do Meu Nome”. A resposta dele foi “muitas vezes pergunto o que acontecerá a mim”.

“Não me parece que o poder legislativo queira controlar a Igreja (…) O que ficou também claro é que havia uma certa ignorância dos deputados sobre o funcionamento da Igreja”, assegura Aura Miguel
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

Os homens da Igreja têm sentido de humor?
Há muitos com muito humor. E respostas desconcertantes. Numa viagem, um jornalista perguntou a João Paulo II, já com alguns sinais de Parkinson, como estava a saúde dele. Resposta pronta: “”Não posso dizer porque hoje ainda não li jornais”. Ou ouvi o tímido e retraído Ratzinger, que na altura ainda não era Papa, contar uma anedota. Num almoço no Buçaco, mesa de dez pessoas, era ele Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. “Lenine morreu, chegou à porta do Céu e São Pedro recusou-lhe a entrada. Que ia para o inferno. Chegam ao inferno e há duas setas: inferno comunista e inferno capitalista. A fila para entrar no inferno comunista é enorme e Lenine quis saber se havia alguma diferença”. Neste ponto, foi muito engraçado ver o Prefeito para a Doutrina da Fé dar asas à criatividade: “Os infernos são iguais. Lava a queimar os pés, das torneiras saem bichos horrorosos, há um cheiro permanente a enxofre, etc. Então Lenine quis saber por que razão a fila para o inferno comunista era tão grande. Resposta de São Pedro: No capitalista funciona tudo às mil maravilhas. E no comunista nem as torneiras”.

O que comeu?
Uma sopa, pouco do prato principal, mas muitos doces conventuais. Cheios de colesterol.

Francisco e Bento XVI encontraram-se várias vezes?
O próprio Francisco contou que muitas vezes lhe pedia conselhos.

Acha que Francisco vai também abdicar?
O Papa tem dito que a questão não está fora de hipótese, mas que em conversa com Deus ainda não percebeu essa vontade. Acho que vai ficar até ao fim. Está cheio de energia, cheio de planos. Agora quer ir à Mongólia. Tem problemas no joelho, é verdade, mas, como o próprio diz, a Igreja não se governa com o joelho.

A seguir quem vem?
Quem entra Papa sai cardeal.

Já fez dois conclaves.
É o momento mais terrível para mim. Em plena época de tecnologia eles falam com fumos. A preto e branco. No conclave que elegeu Ratzinger percebi que tinha de me preparar melhor. O momento do anúncio é um horror. Fumo, depois os sinos a confirmar, e só uma hora depois o Habemus Papam.

A escolha é política pura e dura?
Também há uma visão política dos conclaves. Mas o conclave tem também uma dimensão do mistério. Pode ser difícil aceitar nos tempos atuais, mas que é assim é assim. E de que maneira. Porque de cada vez trocam-se as voltas. O caso de João Paulo II – nada havia de político.

João Paulo II teve uma missão: ajudar a derrotar o comunismo, ou não?
Não foi eleito papa por causa disso. Aconteceu.

Como é a cobertura dos conclaves?
Estamos num buraco, numa cabina, com os “cascos” nos ouvidos para entrar em direto. Há boas condições, mas muita adrenalina. Antes de anunciar o nome, o porta-voz diz doze palavras. No segundo conclave, arrumei os nomes por ordem alfabética em latim. Há nomes em latim que não são nada como dizemos.

Um Papa português?
Nunca se sabe. Quem entra Papa sai de lá cardeal, repito.

Depois de um mais progressista virá um Papa mais conservador?
João Paulo II e Bento XVI tiveram oposição. Francisco também. Não é de estranhar.

Os conservadores acusam Francisco de populismo. Porque recusa pompa.
Há muita confusão e muito do que diz é descontextualizado. Por exemplo, Francisco mora em Santa Marta apenas porque não consegue viver sozinho. Sempre foi assim. Gosta dos sapatos dele – de resto, certa vez foi a uma farmácia de Roma comprar os sapatos ortopédicos -, usa um relógio Swatch velhíssimo, escolhe carros utilitários. Cada um é como é. Não há Igreja sem Papa. Este é assim. Não têm todos de andar como ele.

Que estilo aprecia mais?
O que eu gostaria ou não gostaria não conta. É como é. Porquê? Porque é assim que Nosso Senhor permite.

Gostava de ver uma Igreja com padres casados?
Não é uma questão de gosto. Os padres casados da Igreja oriental queixam-se imenso. Por exemplo, dizem que as mulheres não querem mudar de paróquia.

E mulheres ordenadas?
Isso está fora de questão.

Mas gostava?
Acho que não. Se não houve até agora por que motivo deveria passar a haver? Está bem assim. Tenho uma amiga divertida que costuma dizer “já viste o que seria ires confessar-te a uma mulher padre. Juntarem-se ao fim do dia a contarem umas às outras as confissões?”. Estou a brincar, mas às vezes apetece. Agora a sério: algum dia Nossa Senhora reivindicou ser pai?

Mas Deus também é mãe ou não?
Que quer que responda? Estudei Direito, não estudei Teologia. Sou jornalista. Isso tem a ver com uma agenda da moda. Estou farta dela. Farta de que desviem as atenções para temas que não são importantes. Farta de ouvir falar em mulheres padres e padres casados. As pessoas batem o pé no chão a dizer quero, quero, quero. Mas a Igreja não é isso. A realidade da Igreja é muito mais fascinante.

Se não fosse jornalista teria sido o quê?
Queria ser diplomata.

Mas tem pouco de diplomata.
Deus nosso senhor, conhecendo este caráter, desviou-me. Arranjava logo um sarilho. Uma crise com outro país.

Como é trabalhar consigo?
Não queria nada ser jornalista. Estudei Direito, pensava ser diplomata porque gostava de viajar. Para viajar. Em 1985, fui interpelada para vir trabalhar para a Rádio Renascença. Precisavam de uma pessoa normal para fazer notícias da Igreja. Notícias que tendencialmente ou eram beatas ou teológicas. Ora a maioria das pessoas não está num lado nem no outro. Tentei falar da vida da Igreja com uma linguagem normal.

À única vaticanista portuguesa não se conhece opinião sobre os temas que a irritam. Não acha que fazia sentido dizer o que acha?
Vivo a realidade que Jesus Cristo me dá todos os dias. Esses temas não me interessam.

Reza muito?
Não. Encaro a vida todos os dias, nas suas diversas circunstâncias.

A doença alterou-a em que medida?
Redimensionou a minha vida. Não sabia o que ia acontecer, que grau e que malignidade existia. Cá dentro nasce uma esperança e felizmente correu bem. A minha vida corre em função da agenda do Papa, mas naqueles meses parei. A pessoa abraça as circunstâncias que não controla. De resto, a aventura da fé joga-se aí.

Nunca teve dúvidas de fé?
Nunca.

Pertence ao Movimento Comunhão e Libertação. Movimento favorito de Ratzinger, que propõe uma intervenção política na sociedade.
Essa proposta funciona em Itália, onde existiu uma democracia cristã muito ativa. Cá não foi assim. Não foi assim com o Cerejeira, nem depois do 25 de Abril. A nossa tradição não é essa e a nossa vertente não é política. É um movimento que me impressionou porque os seus membros estavam mais à frente justamente na inteligência da fé.

“O altar de Madrid tinha 21 metros. Este terá quatro. Ninguém vai ver o Papa, mas pronto”, afirma Aura Miguel
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

Em Itália, estão ligados ao poder, nomeadamente financeiro.
Cá não é assim.

Portugal ainda é um país católico?
Só em teoria. Voltamos a Bento XVI: o futuro da Igreja passa por minorias qualitativas. Sem um trabalho pessoal, mais tarde ou mais cedo a fé vai-se desmoronando. Há um desgaste, a partir das próprias estruturas da Igreja.

Como seguiu a polémica sobre o altar do Papa?
Achei tudo muito quintalinho. O altar de Madrid tinha 21 metros. Este terá quatro. Ninguém vai ver o Papa, mas pronto.

Foi difícil convencer Francisco a prefaciar o livro?
Pedi-lhe uma palavrinha. De introdução. Disse que ia pensar. Pouco depois vêm parar-me às mãos quatro folhas maravilhosas.

Que reportagens fora da religião gostava de fazer?
Tenho o grande sonho de fazer o transiberiano. Adorava escrever sobre a Rússia.

Nunca pensou em ter filhos?
Sim, pensei, quando andava a estudar em Direito, sonhei que teria 12. Mas, primeiro, haveria que encontrar um pai para eles. Nunca aconteceu.

O nome, Aura, cabe-lhe bem. Nem de propósito.
A mim, por vezes, causa-me irritação. Ou sou Áurea, Aurora, por aí. Tudo menos o meu nome. Na última aparição de João Paulo II, em São Pedro, alguém na sala de imprensa disse que lhe parecia ter visto uma aura à volta do Papa. Saiu-me de imediato: “aura?? Eccomi (aqui estou eu)”. A sala riu e na verdade um ou dois dos presentes ainda hoje me chamam de vez em quando “a Aura do Papa”.