As aplicações de encontros estão cada vez mais refinadas

Um algoritmo que junta seis pessoas aleatórias à mesa para travar novas amizades, familiares e amigos que podem dar dicas sobre possíveis “matches”, quais cupidos da era moderna, plataformas onde só estão pessoas com a mesma ideologia política ou até currículos com finalidades estritamente amorosas. Eis algumas das novidades.

Carlos Miguel, 35 anos, todos eles vividos em Palmela, andava pelo Instagram quando, algures no verão, lhe apareceu um anúncio que o deixou curioso. “Achei piada ao conceito e fui tentar saber mais.” O anúncio era da Timeleft, uma plataforma que promove encontros entre desconhecidos, não de âmbito amoroso ou sexual, como se clarifica desde logo, antes numa perspetiva de conhecer pessoas novas e eventualmente alargar o leque de amizades. “São jantares de grupo com pessoas desconhecidas, três homens, três mulheres. Respondemos a uma série de perguntas e depois somos ‘emparelhados’ através do algoritmo.” Para Carlos, a parte aliciante do desafio está bem estabelecida. “É mais uma forma de conhecer pessoas.” Sendo que no caso dele, ressalva, isso nunca foi propriamente um problema. “Eu adoro conhecer gente. Aliás, quando comentei com um amigo que ia a esse jantar, ele disse-me logo: ‘Já conheces pouca gente, ainda queres ir conhecer mais’.” E que tal? “Fui, foi giro, a conversa fluiu muito bem, tanto que fomos os últimos a sair do restaurante. Criámos logo um grupo de WhatsApp e até já estivemos juntos outras vezes depois disso. Inclusive, convidei-os para vir à festa das Vindimas [festa tradicional de Palmela que se realiza anualmente em setembro] e vieram todos.”

Carlos gosta sobretudo da ligeireza que está inerente ao facto de ser um jantar de grupo. “É zero aquele conceito de date, o que torna as coisas mais leves. O facto de serem seis pessoas tira qualquer pressão.” E isso torna estes jantares bem diferentes dos encontros que resultam das “dating apps” tradicionais. Também ele chegou a usá-las “logo no início, com aquela curiosidade que todos temos”. Mas durou pouco tempo. “Não é a minha cena”, resume. “Nessas aplicações, é tudo muito forçado. Na verdade, nenhuma das partes vai a pensar que vai só beber um copo. No mínimo, vai-se a pensar que, mais à frente, depois de dois ou três encontros, pode acontecer alguma coisa. E se correr mal só tens aquela pessoa à tua frente, não vais querer sair a meio do jantar.” Por isso, não tem dúvidas: “Não sendo demasiado comparáveis, porque os objetivos são diferentes, gosto muito mais do conceito de um jantar de grupo. Não é que não possa correr mal, mas tem pouco por onde correr mal. Repetia fácil. Só não repito mais porque o meu horário de trabalho não me permite muito.”

Gizada por dois franceses residentes em Portugal, Maxime Barbier e Adrien de Oliveira, a Timeleft nasceu há mais ou menos três anos, mas só em maio adquiriu os contornos que hoje tem. “A ideia foi juntar as pessoas para jantar, de uma forma que não se relacionasse com um ‘date’”, admite Ricardo Amaral, o ítalo-brasileiro que é responsável pela plataforma no nosso país. Daí a necessidade de juntar várias pessoas à mesa. “Apostamos em mesas de seis pessoas porque fizemos alguma pesquisa e percebemos que esse era um número legal para gerar conversas e dinâmicas de grupo. Também tentamos que haja sempre um balanço entre homens e mulheres, apesar de termos mais mulheres a inscreverem-se para os jantares [cerca de 64%].” O objetivo é claro. “Combater a solidão urbana”, garante o responsável. E o facto de a maioria das pessoas que se inscrevem serem portuguesas (correspondem a 73% do total) parece mostrar que a premissa faz sentido. “Fazemos questão que não haja fotos de perfil, por exemplo, porque a ideia é que toda a gente tenha lugar à mesa.”

Depois, há as tais perguntas a que todos os interessados têm de responder. Umas mais centradas na personalidade (se se é mais racional ou emocional, se se é mais tímido ou extrovertido, se se é criativo, stressado, etc.), outras nos gostos (ao nível do cinema e da música, por exemplo). Mas também as há sobre a espiritualidade, a visão política, a classe social de que se provém, a orientação sexual. Ou até a predisposição para consumir drogas em contexto recreativo. Tudo informações para alimentar o algoritmo que vai emparelhar os “convidados” entre si. “Temos um backoffice bem robusto em termos de inteligência artificial que vai fazer com que os inscritos sejam colocados na mesma mesa com pessoas que têm potencial para combinar entre si, em termos de valores, em termos de ideias.”

Já durante o jantar, há uma série de perguntas que vão sendo feitas para ajudar a quebrar o gelo e fazer a conversa fluir. A avaliar pelos números, a aposta tem resultado: a Timeleft começou por realizar jantares em Lisboa, mas já está hoje no Porto, em Paris e em Marselha. E em breve chegará a Coimbra, a Londres, a Berlim. Ao todo, desde maio (os jantares, dezenas deles em cada cidade, realizam-se todas as quartas-feiras), a plataforma já juntou à mesa mais de dez mil pessoas, garante Ricardo Amaral. “Temos todo o tipo de feedback, claro, mas a maior parte das pessoas gosta, muitas até nos agradecem. A solidão urbana é um problema muito relevante no mundo moderno, as pessoas conversam cada vez menos. E nós queremos ajudar nisso.” O conceito da Timeleft é também uma prova de que as aplicações de encontros (abordemos aqui os encontros num sentido lato, dissociado de um propósito estritamente amoroso ou sexual) se têm vindo a refinar, que estão cada vez mais criativas e apetrechadas de funcionalidades, que abrangem um espetro cada vez mais alargado de valências e finalidades. Tanto que, nalguns casos, não rivalizam entre si, antes se complementam.

Até a avó pode opinar

Que o diga Júlio, prefere que lhe chamemos só Júlio, tem 30 anos, reside na margem sul do Tejo. Há cerca de dois anos inscreveu-se no Tinder e no Bumble, possivelmente as duas aplicações de encontros mais famosas em Portugal. Para os menos familiarizados com o tema, o conceito é este: cada utilizador seleciona uma ou mais fotos que ficam visíveis para outros e vai selecionando, também a partir de fotos, aqueles que aprova ou não (é o chamado “swipe left” – no caso de as fotos não lhe agradarem – ou “swipe right”, uma espécie de “like”). Sempre que dois utilizadores se aprovam mutuamente há um “match” e a partir daí podem estar em contacto. Em relação ao Bumble, a diferença mais relevante é porventura o facto de só as mulheres poderem iniciar a conversa, mesmo depois de haver um “match”.

Mas voltando a Júlio e à deriva para estas aplicações, que, na verdade, teve muito que ver com a covid-19. “Resolvi aderir para conhecer pessoas novas e eventualmente vir a ter um relacionamento amoroso. Até porque durante a pandemia era complicado conhecer gente”, reconhece. Para aumentar as hipóteses de “sucesso”, aderiu até às versões premium de ambas as aplicações. Entre outras vantagens, garante que o seu perfil tem mais exposição (e que portanto é visto por mais gente), tem um raio de alcance maior (em vez de chegar apenas a pessoas que se encontram num certo raio de proximidade), consegue saber todas as “aprovações” que obteve e goza ainda de cinco “super likes” por semana – o que significa que quem os recebe consegue ver que Júlio gostou do seu perfil. No Bumble, a lógica dos serviços premium é semelhante, juntando-se ainda uma possibilidade de “speed dating” online, três vezes por semana, o que permite “conectar um pouco melhor”. O propósito é óbvio: “Chego a mais gente”. Ainda assim, admite que, até hoje, nenhum dos seus “matches” resultou num date presencial. Muito exigente? “Convém ser sempre um bocadinho, não é?”, questiona, meio a rir.

Algures enquanto navegava no denso mundo das aplicações de encontros, soube da existência da Timeleft e resolveu experimentar. “Sempre quis experimentar o conceito de ‘speed dating’, embora eles não se identifiquem como uma plataforma de dating. Na verdade, não sabia muito bem o que esperar. Depois do primeiro jantar, percebi que não era nesse âmbito que eu queria ir. Que aquilo era sim uma maneira de fazer novas amizades. E que era tudo mais orgânico e natural.” Gostou tanto que se tornou “cliente” habitual. Hoje, já marcou presença nuns “16 ou 17 jantares”. E ainda não se fartou. “Por um lado, gosto de conhecer e falar com pessoas novas. Por outro, seduz-me a parte de descobrir novos restaurantes em Lisboa.” Em tantas experiências, adianta que já teve um pouco de tudo, desde um ou outro que não correu tão bem porque as pessoas “estavam mais retraídas” aos que correram particularmente bem. “Ainda há umas semanas tive um em que, depois do jantar, acabámos por ir todos a um bar, fomos sair logo no fim de semana seguinte e continuamos em contacto.” Um tónico contra um certo isolamento que a pandemia trouxe. E não apenas temporariamente, assegura Júlio. “Depois da covid, deixei de ter tantos programas sociais e passava muito tempo em teletrabalho, sozinho. Estes jantares também são uma forma de colmatar essa parte.”

Mesmo as aplicações de encontros mais “tradicionais” têm vindo a reforçar a aposta em novas opções e funcionalidades para dar resposta aos gostos e interesses dos utilizadores, também eles estão em constante mutação. É o caso do Tinder, a app de encontros mais popular do Mundo que, em 11 anos de existência, já foi descarregada 340 milhões de vezes (garante a empresa), estando hoje disponível em quase duas centenas de países. À “Notícias Magazine”, Vicente Balbastre Tio, gestor de comunicação da plataforma, dá conta dessa premissa obrigatória. “Estamos sempre a par das tendências que vão surgindo entre os membros da nossa comunidade e preparados para lançar funcionalidades que permitam aos utilizadores estabelecer conexões da forma que melhor se adapte a eles.” O responsável dá um exemplo concreto: “Num estudo conduzido por nós concluímos que 75% das pessoas solteiras falam da sua vida amorosa com amigos várias vezes por mês. Tendo isto em conta, lançámos o ‘TinderMatchMaker’, para que os teus ‘matches’ passem pelo filtro dos teus amigos. Esta nova funcionalidade permite que tanto os teus melhores amigos como no limite a tua avó [e quem diz a avó diz outro qualquer familiar] possam atuar como cupidos e recomendar ‘matches’ diretamente através da app, mesmo sem serem utilizadores.” Há outros exemplos. “Temos visto que os jovens solteiros têm redefinido as suas relações esporádicas e, para fomentar ligações mais autênticas, lançámos mais opções em categorias como o tipo de relação, os pronomes ou aquilo de que se está à procura.”

Para ter uma perspetiva mais abrangente em relação ao que move os utilizadores, a empresa patrocinou até a elaboração de um relatório, “Future of dating” (o futuro dos encontros), que aponta pistas interessantes. Uma das principais conclusões é que a geração Z, os jovens que têm entre 18 e 25 anos e que representam mais de metade dos utilizadores da aplicação, valoriza mais a autenticidade, privilegiando valores como “a transparência, o bem-estar mental, a honestidade e o respeito” ou ainda “a lealdade e uma mente aberta em relação à aparência”. A propósito, vale a pena realçar, por exemplo, que 75% dos jovens inquiridos acham mais atrativo um potencial parceiro ou parceira se este se mostrar disposto a trabalhar a saúde mental. O relatório garante ainda que mais de 55% das pessoas com menos de 30 anos utilizam aplicações de encontros e que, destas, mais de 50% tiveram relações sérias através do Tinder.

Da ideologia política à fluidez sexual

Ana Carvalheira, psicóloga clínica, sexóloga e professora investigadora do ISPA – Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida, em Lisboa, também vem notando, com base nas pessoas que acompanha em consulta, um interesse crescente por um conhecimento mais profundo antes de se avançar para um eventual encontro. “Noto, por exemplo, que há mais pessoas a usar uma aplicação chamada Hinge, em que o objetivo é cada utilizador facilitar mais informação sobre si. Há uma evolução no sentido de poderem aceder a perfis com mais conteúdo, em que há uma descrição mais rica sobre cada um, em que as pessoas se conhecem melhor. E isso facilita que os utilizadores tenham um interesse mais relacional do que sexual, facilita a vida de pessoas que queiram encontrar alguém para uma relação.” Uma breve pesquisa sobre esta aplicação mostra-nos que o intuito é precisamente esse: “Desenhada para ser real, desenhada para melhores ‘dates’, desenhada para ser apagada”, pode ler-se. Desenhada para ser apagada na medida em que desemboca numa relação e deixa de ser “necessária”, subentende-se. Ou como o mundo dos encontros responde à evolução da própria sociedade. Ana Carvalheira reforça este ponto. “Parece-me que há uma tendência para que quem procura pessoas para uma relação use cada vez menos o Tinder e mais aplicações mais sofisticadas, onde se apresenta mais informação, mais conteúdo, onde as pessoas se sentem mais bem representadas nos seus gostos e personalidades.”

Há outras aplicações curiosas a surgir. Uma que junta pessoas que já se cruzaram em algum ponto da sua vida, por exemplo (happn). Outra em que supostamente só entra quem for altamente ambicioso e bem-sucedido (The League). Ou ainda uma que está reservada a certas sensibilidades políticas: na Lefty, só entram pessoas que sejam ideologicamente de esquerda, sob o pretexto de se conhecer quem “partilhe os mesmos valores” (com tudo o que de pernicioso isso também pode encerrar, diga-se). Luana Cunha Ferreira, psicóloga clínica e terapeuta familiar, salienta ainda a importância de surgirem cada vez mais aplicações dirigidas a comunidades específicas, muitas vezes marginalizadas, sejam elas “minorias de género ou sexuais, ou até com composições étnico-raciais específicas”. “Neste contexto podem ser extraordinariamente úteis, até porque, se falamos de grupos minoritários, pode ser difícil encontrar no dia a dia pessoas que estejam alinhadas connosco.” E sublinha que, nos últimos anos, as aplicações de encontros, no geral, estão “muito mais disseminadas e normalizadas”. “Já não são vistas como uma coisa perversa ou que deva ser escondida, mas antes como uma forma relativamente simples e eficaz de encontrar uma parceria, seja ela temporária ou duradoura. Atualmente, mais de metade dos casais que acompanho conheceu-se através destas aplicações.”

Outra tendência curiosa é a dos “Date Me Docs”, nada menos do que um documento, uma espécie de currículo, que é partilhado através do Google Docs e que em vez de servir para encontrar trabalho serve para cativar potenciais interesses amorosos. O documento inclui fotografias, interesses, expectativas, traços de personalidade, entre outros, e deve ser partilhado com outros ou publicado online com o intuito de atrair potenciais fãs. Segundo o “The New York Times”, que relaciona o fenómeno com um certo desgaste das aplicações de encontros mais tradicionais, esta é uma tendência que se verifica sobretudo entre pessoas que trabalham na área tecnológica e que vivem nas principais cidades americanas. No fundo, tudo passa, de alguma forma, por este ponto que Ana Carvalheira releva. “Há uns tempos falava com uma amiga que está fora e ela dizia-me: ‘Ana, não se vive em Londres sem aplicações.’ As sociedades europeias estão a desenvolver valores de produtividade e consumismo que não se conciliam com o tempo para conhecer novas pessoas, não há tempo. E é preciso tempo para conhecer o outro. As aplicações trazem isso: um resultado similar, mas em menos tempo.” Luana Cunha Ferreira também destaca esta tendência. “À medida que numa sociedade capitalista ficamos cada vez mais isolados, que temos menos tempo para o lazer e para estar em comunidade, esta ideia de estarmos no conforto do nosso lar em contacto com outras pessoas é muito sedutora. E para muita gente, factualmente, é a única forma de conhecer pessoas novas. Porque a quantidade de horas que as pessoas passam em modo laboral não permite um espaço social de comunidade e a exposição a pessoas novas.”