Que a Arábia Saudita tem conhecido, nos últimos anos, grandes transformações sociais, poucos podem negar. Mas no país que desembolsa milhões sem-fim para contratar nomes sonantes do futebol mundial, os plenos direitos das mulheres continuam a ser uma miragem. E a repressão é “brutal”. Pode a presença das vedetas ter um impacto positivo na vida dos locais?
Raquel Martins, esposa do futebolista Fábio Martins, aterrou pela primeira vez em Riade, capital da Arábia Saudita, há mais ou menos três anos. Na altura, não sabia bem com que contar, diz com graça que o segredo foi não criar expectativas, assustou-se com a condução desastrada dos sauditas, com o calor “absurdo” também, e ainda com uma ou outra situação no mínimo inusitada. “O meu marido chegou a ser barrado no IKEA por estar a usar uns calções acima do joelho”, lembra. “Mas hoje isso já não acontece”, apressa-se a esclarecer. Agora estão fixados em Dammam, cidade cravada na orla oriental do país, Fábio, ex-Sporting de Braga, defende as cores do Al-Khaleej, há uns quantos portugueses na equipa, o treinador Pedro Emanuel incluído. Vivem num “compound” de luxo, é uma espécie de condomínio fechado com todas as comodidades, até uma praia privativa lá têm. Raquel, que em Portugal era enfermeira e ainda tinha um part-time numa loja de cosmética, ocupa-se entre o ginásio, a gestão da casa, os banhos de sol e os cursos que vai fazendo online, para não deixar de investir nela.
Três anos depois (com uma passagem pelos Emirados pelo meio), não hesita em dizer que tem sido uma boa experiência, os responsáveis do clube de Fábio têm sido “excelentes, sempre preocupados, sempre a perguntar se estamos a gostar”, há uns quantos restaurantes “maravilhosos”. Sabe que há companheiras de outros futebolistas que, pelo menos ocasionalmente, optam pela abaya, espécie de túnica comprida tipicamente muçulmana que cobre todo o corpo, ela não, nunca a usou, veste sempre as suas roupas, tem só o cuidado de não andar com os ombros ou os joelhos desnudados. “Mais porque nunca quis ir contra as crenças deles, nunca me chamaram à atenção.” Mas em tempos, no McDonald’s, viveu um episódio curioso. Entrou despreocupada, não particularmente atenta, quando um funcionário a abordou meio aflito, “no, no, no [não, não, não]”, como que a dizer que não podia estar ali. Raquel estranhou, mas não tardou a perceber a razão. É que o estabelecimento estava dividido em duas partes, uma para as famílias, outra para homens solteiros (na qual ela tinha entrado inadvertidamente). Marcas de um passado recente que tem vindo a diluir-se à boleia das grandes transformações sociais que o país tem conhecido. “Noto que tem evoluído muito e ainda recentemente vi uma entrevista do príncipe [o príncipe herdeiro Mohammad bin Salman] em que dizia que queria que evoluísse cada vez mais.”
Raquel Martins é uma de muitas mulheres ocidentais que têm chegado à Arábia Saudita à boleia da astronómica aposta do país em seduzir grandes nomes do futebol internacional (estima-se que o investimento ronde já os 900 milhões de euros, só em futebolistas). Muitas delas vão publicando, nas redes sociais, imagens apetecíveis do país e da vida que lá têm. Georgina Rodríguez, a companheira de Ronaldo que é simultaneamente uma supervedeta das redes – 51 milhões de seguidores, só no Instagram – é um bom exemplo disso. Ora partilha fotos no deserto, ora nas compras, ora nos pontos mais turísticos de Riade, qual montra privilegiada para um país que tenta a todo o custo abrir-se ao Mundo (lá iremos).
Filipe Gouveia, técnico português que chegou à Arábia Saudita em 2019 e hoje treina o Al-Hazm, recém-promovido à principal divisão do futebol saudita (já sob a sua orientação), entende que a mudança é inegável. “Tem sido uma evolução brutal. No primeiro ano em que cá estive, todos os restaurantes tinham três salas, uma para as mulheres, outra para os homens, uma terceira para as famílias. Agora, isso vê-se cada vez menos. E há cada vez mais mulheres a conduzir, mais mulheres na rua, vão ao ginásio, apesar de serem ginásios só para mulheres, já se veem muitas com a cara destapada, quando cá cheguei era difícil ver uma que fosse. Mesmo os homens já não têm aquela mentalidade de terem três e quatro mulheres. E já se vai vendo algo que há quatro anos era impossível: rapazes e raparigas juntos na mesma mesa. Claro que isso é mais notório nas grandes cidades, onde já há uma vida mais ‘europeia’, digamos. Mas parece-me que a tendência é abrir cada vez mais.”
A perspetiva de Filipe (e de Raquel) tem a sua razão de ser. Nos últimos anos, Mohammad bin Salman, nomeado príncipe herdeiro em 2017, pôs em curso uma série de reformas que têm impactado significativamente a vida de uma sociedade até aqui profundamente fechada e arcaica. Basta ver que só em 2016 a Comissão para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício, espécie de polícia religiosa que controlava o vestuário e garantia a segregação de sexos, foi efetivamente desmantelada, que em 2019 a convivência entre homens e mulheres não casadas ainda era interdita em restaurantes, que quem comprasse ou vendesse presentes alusivos ao Dia dos Namorados arriscava-se, imagine-se, a ser chicoteado ou preso. O relato de uma jornalista do inglês “The Times” é também revelador. “Em 2018, fui à Arábia Saudita assistir a um espetáculo do cantor egípcio Tamer Hosny. Durante o concerto, homens e mulheres estavam separados e os bilhetes especificavam ‘proibição de dançar e menear’. Sempre que alguém aplaudia apaixonadamente, era intimado a parar”, contou, num trabalho alargado que dedicou ao tema.
O cenário alterou-se radicalmente nos últimos anos. Parte destas proibições foram caindo por terra, sobretudo no que diz respeito à segregação dos sexos, escancararam-se as portas dos cinemas – a venda de bilhetes disparou dos 50 mil em 2018 para os 13,5 milhões em 2021 -, multiplicaram-se as festas e os festivais, há até um (MDL Beast) cofinanciado pelo Estado. Tudo faz parte do plano “Vision 2030”, destinado a tornar a economia saudita menos dependente do petróleo e a atrair investimento estrangeiro, mas também a exercer uma certa influência cultural no Mundo. Paralelamente, à boleia de alterações legislativas e de códigos sociais menos rígidos, as mulheres foram autorizadas a conduzir (2017), a viajar para o estrangeiro sem depender da autorização do pai ou do marido (2019), a divorciar-se em tribunais online, a usar jeans e t-shirt.
Hatoon al-Fassi, historiadora saudita que no passado esteve envolvida em várias campanhas pelo direito das mulheres a votar e a serem eleitas nos sufrágios municipais (que se realizam desde 2005), mostra-se satisfeita com o trajeto que tem vindo a ser feito. “Os avanços dos últimos quatro ou cinco anos não têm precedentes. Sobretudo no que toca a capacitar as mulheres e os jovens em posições de tomada de decisão, na legislação, na economia, na cultura, na arte. Muitas leis foram alteradas e lançadas para melhorar os direitos das mulheres. É algo positivo para a maioria da população”, defende, ela que é também membro honorário do departamento de Estudos da Arábia e do Médio Oriente na Universidade de Manchester, no Reino Unido. Bem diferente é a perspetiva das organizações não-governamentais que têm trabalhado no terreno. E que lembram que este aparente ímpeto reformista é só uma parte de uma história bem mais sombria.
Avanços de fachada
Rothna Begum, investigadora sénior da Human Rights Watch, especialista em direitos das mulheres, em particular no que toca ao Médio Oriente e ao norte de África, não tem dúvidas. “As mulheres na Arábia Saudita continuam a enfrentar uma enorme discriminação, tanto ao nível das leis como dos costumes.” Discriminação essa que advém em grande medida da manutenção do modelo do guardião masculino. Rothna contextualiza. “No fundo é um conjunto de leis e costumes que têm imposto a obrigatoriedade da autorização de um guardião masculino para poderem tomar uma série de decisões de vida cruciais. Seja o pai, o irmão mais velho, o marido, nalguns casos até o filho.” A ativista reconhece que, nos últimos anos, caíram algumas proibições vigentes, como as que diziam respeito à condução ou às viagens, mas sublinha que “a prática nem sempre acompanha as reformas legais” e que o modelo do guardião permanece intacto noutras áreas. “As mulheres continuam a precisar de autorização para sair da prisão, para deixar os abrigos – para onde vão se forem vítimas de violência doméstica, ou se forem abandonadas, ou se os pais as reportarem por comportamento imoral -, para abortar, para casar. Aliás, neste ponto em concreto a situação piorou em vez de melhorar.”
Rothna refere-se à Lei de Estatuto Pessoal, que entrou em vigor em março de 2022, anunciada com pompa e circunstância pelo governo saudita, como um marco de progresso e modernidade. As organizações de direitos humanos têm, porém, uma visão distinta. Rothna volta a recuar, para melhor se perceber o que está em causa. “Durante muitos anos, não havia leis, as autoridades baseavam-se apenas na sharia [lei islâmica]. Havia uma grande arbitrariedade, as pessoas podiam ser detidas sem que houvesse um código criminal, os juízes podiam decidir como achassem melhor. Agora, esta lei veio regulamentar a questão dos casamentos, dos divórcios, das crianças, das heranças. Mas, na verdade, o que aconteceu foi que a discriminação passou a ter força de lei, o modelo do guardião masculino está agora inscrito na lei.” Nomeadamente no que diz respeito ao matrimónio, onde não só se especifica quem esse guardião pode ser, como se refere que um parente masculino “pode objetar ao casamento” e até anulá-lo. “Isto já acontecia antes, mas agora a lei veio regulamentar esta prática, o que é mais extremo do que qualquer outra lei do género na região.” Bruna Coelho, gestora editorial da Amnistia Internacional Portugal, também não esconde a desilusão. “Falava-se em reformas positivas, mas no fundo esta lei veio perpetuar a discriminação, incluindo o sistema de tutela masculina. É uma lei que não protege adequadamente as mulheres.” Rothna avança com outros exemplos. “É verdade que as mulheres já podem pedir o divórcio, mas o homem pode divorciar-se unilateralmente enquanto as mulheres têm de fazer o pedido ao tribunal, que inclusivamente pode forçar a mediação antes de autorizar. E em relação às crianças, as mulheres já podem ficar como tutoras, mas os homens ainda são os guardiões por defeito. Elas só o podem ser se os tribunais autorizarem.”
Também por isso, entende que não é certo que a nova lei traga benefícios às mulheres. “Não é claro. Porque na prática não sabemos o que os tribunais vão fazer.” Chama ainda a atenção para a questão do casamento infantil, onde também considera que houve uma regressão. “Durante muito tempo, não havia uma idade mínima, em 2019 passou a haver, passou a ser aos 18 anos. Agora, a nova lei também fala nos 18 anos, mas diz que os tribunais podem autorizar o casamento antes disso se a menina já tiver entrado na puberdade. O que na verdade pode ser muito antes. Portanto, isto foi anunciado como: “Ei, olhem, não é incrível? Agora temos esta nova lei, até uma idade mínima para casar.’ Mas, na verdade, nos últimos anos já tinham algo mais avançado.” Por fim, lembra que a nova lei veio “regulamentar a obediência no casamento”. “Diz que a mulher pode perder qualquer tipo de apoio financeiro se se recusar a obedecer. Sendo que os homens podem achar que as esposas lhes estão a desobedecer por muitas razões. Uma delas é se se recusarem a ter sexo com eles.”
A investigadora destaca ainda outros pontos, que lhe parecem relevantes para se perceber a realidade das mulheres sauditas. Um deles prende-se com o mercado de trabalho. “No geral, têm sido excluídas da maior parte das áreas. Só nos últimos anos tem havido mais profissões a abrirem-se às mulheres. A questão é que, por defeito, elas estão proibidas até serem aceites e não o contrário. O número de profissões abertas ainda é pequeno e mesmo quando abrem só há um determinado número de vagas. O que explica porque é que a taxa de desemprego ainda é tão alta.” O outro ponto diz respeito a uma dicotomia que resiste. “Se por um lado já se pode ir ao cinema, aos festivais, se há maior tolerância para homens e mulheres andarem juntos na rua, a verdade é que as famílias que são abusivas, que negam os direitos às mulheres, ainda são autorizadas a fazê-lo. Porque não há uma proibição. A lei relativa à violência doméstica só fala de abuso quando o guardião ultrapassa os seus limites. O que na prática torna aceitável que um homem possa disciplinar uma mulher, impedi-la de estudar ou de trabalhar. Quando os estatutos internacionais já referem que o controlo coercivo é uma forma de violência doméstica. Ou seja, para algumas mulheres, as mudanças na lei efetivamente fizeram diferença porque já viviam em famílias progressistas. Para outras, de famílias mais conservadoras, a realidade não mudou e vivem vidas muito difíceis.”
Repressão draconiana
Difícil, impossível até, é também a vida das mulheres que ousaram denunciar a discriminação vigente na Arábia Saudita e lutar por mudanças. Prova disso é que, na altura em que as sauditas foram, por fim, autorizadas a conduzir, muitas das mulheres que se tinham destacado no ativismo por esta causa foram detidas, torturadas, sujeitas a assédio sexual e a julgamentos “injustos”. E o cenário, garantem as organizações não-governamentais, tem vindo a piorar. Bruna Coelho, da Amnistia Internacional Portugal, faz, a propósito, uma ressalva introdutória, de âmbito mais geral. “É um país onde há uma repressão brutal, em relação à sociedade civil, mas sobretudo em relação aos ativistas e defensores dos direitos humanos, onde não há liberdade de expressão nem de opinião, onde muitas pessoas são detidas e passam muito tempo presas, onde há muita discriminação, não só em relação às mulheres, mas também em relação aos trabalhadores migrantes [ainda recentemente foi noticiado o assassinato de centenas de migrantes etíopes na fronteira com o Iémen] e à comunidade LGBTI.”
A representante da Amnistia sublinha que falamos de “um dos principais países executores do Mundo”, realidade plasmada nos números veiculados pela organização. Se em 2020 houve 27 execuções, em 2021 foram 62, em 2022 registaram-se 196 (81 das quais num só dia) e em 2023 são já perto de 100. “Na altura da presidência saudita do G20 [2020], houve uma espécie de pausa contra ativistas, um período de declínio das execuções, mas na realidade era um período de fachada, porque depois os números acabaram por triplicar. E no último ano registou-se mesmo o valor mais alto dos últimos 30 anos.”
A repressão tem sido particularmente notória no caso das mulheres, sobretudo as que têm sido uma voz ativa numa tentativa de empoderamento das compatriotas. “Têm sido atiradas para a prisão, em muitos casos prisão solitária, impedidas de contactar com a família.” É o caso de Salma al-Shehab, estudante de doutoramento na Universidade de Leeds, em Inglaterra, que, por partilhar um tweet de uma outra ativista, Loujain al-Hathloul [também ela foi detida e acusada de espionagem e conspiração contra o reino, tendo sido libertada condicionalmente em 2021, mas impedida de falar e de viajar], foi detida numa visita ao país-natal e condenada a 34 anos de prisão, tendo passado 285 dias em prisão solitária. No ano passado, também Nourah al-Qahtani foi condenada a uns surreais 45 anos de cadeia, por “mau uso” de redes sociais, com o tribunal a invocar legislação contra o terrorismo e crimes informáticos.
Rothna, da Human Rights Watch, só vê uma explicação para estas “penas de prisão draconianas”, aplicadas mesmo em casos, como de Salma, em que as críticas foram apenas moderadas. “É realmente chocante. Nunca vimos sentenças como estas antes, a não ser no caso do terrorismo. Acredito que as autoridades têm em marcha uma campanha para que o resto do Mundo pense que as coisas estão a melhorar e não querem nenhuma forma de criticismo, portanto estão a desencorajar qualquer pessoa que possa falar, impondo estes castigos draconianos como forma de silenciar os outros. Se podes ser presa 34 anos por algo que ‘tweetaste’ mesmo sem seres uma ativista proeminente, isso mostra que ninguém pode falar. E a verdade é que temos assistido a casos de penas de execução aplicadas por críticas online [ainda em julho aconteceu com Muhammad al-Ghamdi, professor de 54 anos, condenado à morte por ter duas contas no Twitter onde criticava o regime]. É incrivelmente assustador o nível de autoritarismo no país. Já não vemos ativistas a falar abertamente sobre o que se passa e não conseguimos fazer uma monitorização adequada dos direitos humanos no país.”
Mais uma razão para Bruna Coelho, da Amnistia, não estar propriamente otimista em relação às mudanças que têm ocorrido nos últimos anos. “Eu gosto de pensar que têm sido dados passos positivos, mas temos o exemplo do período do G20, em que parecia que as sentenças de morte estavam a diminuir e afinal não passou de um período ilusório. A verdade é que a Arábia Saudita continua a ser um país profundamente repressivo. E ainda que possa haver cada vez mais mulheres a lutar pelos seus direitos, a unirem-se, ainda que consigam pequenas vitórias, como poderem conduzir, a verdade é que ainda há muito caminho pela frente, que será preciso mais tempo para se conseguirem vitórias mais sólidas e generalizadas para as mulheres.”
Craques podem ajudar?
A propósito, a chegada de grandes nomes do futebol mundial ao país, em muitos casos das respetivas companheiras, com mentalidades e costumes bem diferentes, pode de alguma forma contribuir? Raquel Carvalheira, professora da Universidade Nova de Lisboa que se tem debruçado sobre o Islão e os estudos de género, entende que não. “Parece-me que o facto de lá chegarem mulheres de países europeus, que vêm com outros valores e outra estética, não influencia de forma muito estrutural o modo como estas mulheres vivem a sua feminilidade. Tanto mais quando já têm acesso à Internet, quando podem fazer viagens ao estrangeiro. Claro que o facto de o feminismo ser hoje muito forte mundialmente pode influenciar. Mas não creio que seja por causa destas mulheres, que ainda por cima vivem em determinados meios muito fechados, reservados às elites estrangeiras.”
Rothna, da Human Rights Watch, partilha do pessimismo. A pergunta inspira-lhe até um sorriso descrente. “Não acredito [que a presença destes jogadores e respetivas companheiras possa impactar positivamente os direitos das mulheres locais]. É verdade que pessoas numa situação de privilégio vivem boas vidas no país. Mas essa não é a experiência de todas as mulheres na Arábia Saudita.” Vai até mais longe, deixando um alerta às companheiras de todos os estrangeiros que vão viver para o país. “Se vão para um país onde a legislação em termos de violência doméstica é demasiado fraca e o poder do homem é demasiado alto, isso significa que algumas mulheres podem estar em risco. Temos conhecimento de casos de mulheres que ficaram ‘presas’ em relacionamentos com homens que tinham comportamentos abusivos. E também por causa de questões relacionadas com o Kafala System [sistema que define a relação entre os trabalhadores estrangeiros e o empregador local]. Porque ficam também elas abrangidas por estes contratos e só podem sair com a autorização do marido. O meu conselho é que pensem bem se estão ou não seguras e no que lhes vai acontecer se houver um comportamento abusivo.”
Bruna Coelho, da Amnistia, é mais prudente no prognóstico. “Não é algo que saibamos previamente, mas se estas mulheres quiserem ser uma voz ativa dos direitos humanos, acredito que possam motivar pequenos passos importantes e serem também inspiradoras. Acaba por ser um compromisso que temos de pedir a cada uma delas e aos próprios jogadores, que podem ter um papel ativo nesta mudança.” Lembra, a propósito, que quando, em janeiro, Cristiano Ronaldo se mudou para o Al-Nassr, a Amnistia lhe lançou um apelo nesse sentido, pedindo que a sua presença no país não fosse promovida como “uma espécie de cortina para desviar a atenção do historial terrível do país”. “Ronaldo deveria usar a sua considerável plataforma pública para chamar à atenção para problemas de direitos humanos no país, em vez de oferecer elogios à Arábia Saudita”, defendeu, na altura, Dana Ahmed, investigadora da AI no Médio Oriente.
Certo é que, até hoje, nenhuma chamada de atenção foi feita, nem por parte de Ronaldo, nem de nenhuma outra vedeta seduzida pelos milhões sauditas – e na verdade, poucos acreditam que estas o possam vir a fazer, visto que a tomada de posição muito possivelmente ditaria o fim do seu percurso na Arábia. Restam, portanto, os apelos repetidos das organizações que continuam a bater-se pelos direitos humanos. Bruna Coelho deixa mais um: “É muito importante ter noção que estas transferências pintam a Arábia como uma terra de sonhos e de oportunidades, mas só o é para eles e para as suas famílias. Essa terra dos sonhos não existe, não é para todos. E pode ser altamente repressiva para quem pensa de forma diferente.”
Repressão máxima às ativistas
Salma Al-Shehab
Estudante de doutoramento no Reino Unido, foi detida numa visita ao país e condenada a 34 anos de prisão, por ter partilhado tweets de uma outra ativista. Passou 285 dias em prisão solitária.
Loujain Al-Hathloul
Foi detida várias vezes, acusada de espionagem e conspiração contra o reino, passou largos períodos na prisão. Saiu em 2021, mas não pode deixar o país.
Nassima Al-Sadah
Figura proeminente na defesa dos direitos das mulheres no país, foi presa em 2018, esteve quase um ano em solitária, ainda foi vítima de maus-tratos na cadeia. Está em liberdade condicional.