A saudável fantasia de escrever a carta ao Pai Natal

Saiba como fazer da carta ao Pai Natal algo construtivo e pedagógico. E perceba como agir no momento em que a crença começar a esmorecer.

Quem já passou o Natal com crianças pequenas, sabe que há uma atmosfera muito própria que se respira entre os garotos e que contagia tudo à volta. A magia da quadra vive-se intensamente, as invocações do Pai Natal são recorrentes, há um leque de rituais que se fazem em casa e onde não pode faltar (pelo menos até uma certa idade) a carta ao barbudo. E então as questões surgem aos magotes, não fosse a parentalidade um imenso novelo de dúvidas onde caminhamos sempre com receio de estar a falhar: estamos a ajudar a promover uma fantasia saudável, potencialmente benéfica para o são desenvolvimento dos rebentos? Ou na verdade estamos a ser cúmplices de uma mentira descarada que pode ter os seus efeitos perversos? Há formas de transformar a missiva ao velhote em algo pedagógico? E até quando faz sentido prolongar a fantasia? As respostas não são lineares, mas há linhas de pensamento que nos podem servir de guia.

Manuel Ferreira de Magalhães, pediatra do Centro Materno-Infantil do Norte (CMIN), no Porto, e autor da página de Instagram “O Pediatra”, pede, antes de mais nada, ponderação. “Vivemos num Mundo de muito imediatismo e extremismo. Há quem diga que a criança tem de acreditar, há quem critique o facto de andarmos a mentir aos nossos filhos. Eu gostava, acima de tudo, de transmitir a mensagem que as pessoas devem ser livres para decidir tranquilamente, sabendo que não estão a fazer mal nenhum às crianças.” O facto de vivermos hoje num Mundo global e multicultural a isso convida também. Ou deveria convidar. É Tânia Gaspar, psicóloga clínica e professora universitária, quem o lembra. “Se me fizesse essa pergunta há dez anos, eu teria uma ideia muito mais clara do que responder. Hoje, as famílias estão muito mais diversificadas, o nível de desenvolvimento cognitivo e emocional das crianças é muito distinto entre si, há uma heterogeneidade muito grande, mesmo em termos de proveniências e culturas.”

Mas fechando a discussão no caso de uma família normativa, chamemos-lhe assim, a docente da Universidade Lusófona reconhece que, por regra, “as crianças ficam muito felizes com todo este caminho” que envolve o Natal. E que a carta ao Pai Natal pode servir uma série de propósitos pedagógicos. “Pode ser um convite à reflexão, nomeadamente em relação à questão do comportamento, um momento em que são desafiadas a pensar no que fizeram de bom e de mau.” A ideia será sempre evitar o conceito puramente material, em que se pedem prendas e mais prendas, alerta Clementina Almeida, psicóloga clínica especialista em bebés e fundadora da “For Babies Brain”. “Não temos necessariamente de lhes comprar prendas, podemos ser nós a construí-las, podemos oferecer uma ida a um museu, fazer bolachinhas, coisas que privilegiem a conexão. Andamos sempre tão assoberbados que cada vez temos menos tempo para os pequenos, há cada vez mais crianças deixadas ao cuidado de um telemóvel ou de um iPad. No Natal podemos aproveitar para oferecer tempo.”

No limite, salienta Manuel Ferreira de Magalhães, pediatra no CMIN, o ato de escrever a carta pode transformar-se num momento de partilha bidirecional. “Deve criar-se abertura para a criança poder dizer que no próximo ano gostava de passar mais tempo com o pai, ou que a mãe chegasse mais cedo do trabalho. O maior presente pode ser reorganizar a vida profissional para passar mais tempo em família.” Importa ainda frisar o papel central das fantasias no desenvolvimento infantil. “Às vezes há uma leitura abusiva dos resultados. Claro que mentir às crianças é errado, mas uma coisa é mentir-lhes por sistema, em situações concretas do dia a dia, outra coisa é a fantasia. A fantasia é essencial. Porque o cérebro dos mais pequenos não tem a capacidade de compreender determinadas coisas. Então fantasia. E as fantasias são muito saudáveis para o bem-estar delas. Trabalham muito o pensamento abstrato, a imaginação, a criatividade. Além de poderem ajudar no desenvolvimento emocional e da empatia.” O especialista recorda até que há estudos, ainda que não particularmente abundantes ou robustos, que relacionam o facto de se acreditar no Pai Natal com a bondade. “Trata-se de um pensamento altamente abstrato que é difícil de compreender pelos mais novos. Se houver uma personificação, na figura de alguém como o Pai Natal, torna-se mais fácil de absorver.”

Há estudos que relacionam a crença no Pai Natal com uma maior consciência de bondade

Não vale tudo, ainda assim. “Aquela lógica do ‘se te portas mal, o Pai Natal não dá prendas’ não é de todo recomendável porque o que faz é criar medo às crianças. Uma criança deve aprender a regular-se emocionalmente porque percebe os contextos e não porque tem medo ou porque tem uma cenoura à frente.” Clementina Almeida chama a atenção para um outro cenário a evitar. “Os pais gostam muito de ver os filhos tirar a foto no colo do Pai Natal, mas devemos ter em conta que para os mais bebés pode ser algo assustador. Não é uma figura que eles vejam frequentemente, ainda por cima é alguém que fala de forma diferente. É importante nunca forçar, antes deixar que seja a criança a aproximar-se quando e se o entender, respeitando sempre os seus limites.”

Desconstruir ou deixar ir

E, afinal, quando é que os pequenos deixam de acreditar no Pai Natal? “Vai sempre depender da perspicácia de cada um, do facto de haver ou não irmãos mais velhos, às vezes do simples facto de os adultos facilitarem demasiado”, considera Clementina. Manuel Ferreira de Magalhães avança com uma estimativa mais concreta. “Geralmente, não é antes dos seis anos. Em média aos sete.” Com uma ressalva: “Isto é verdade para as famílias que deixam que a fantasia viva livremente.” Esta é outra nuance relevante – o processo de desconstrução nunca deve partir dos pais. “É igual ao que fazemos com o sentar ou o andar. Deixamo-los ir, estamos ali para acompanhar. Entramos na brincadeira e tentamos perceber se é o momento ou não. Deve ser algo que acontece de forma natural. E pela minha experiência, os pais sofrem por antecipação, acaba por ser uma descoberta engraçada, eu tenho memórias muito positivas de quando descobri.”

Mas prolongar a fantasia a todo o custo quando a criança já juntou as peças também é tudo menos boa ideia, defende Tânia Gaspar. “Não devemos ser nós a dizer, mas enganar deliberadamente também não. Vamos respondendo à medida que nos fazem as perguntas, até devolvendo-as, guiando o processo.” Clementina deixa, a propósito, um conselho que pode ser útil. “Mesmo quando eles descobrem, é importante manter a fantasia de que existe esse lado bom em todos nós. Até contar que o São Nicolau existiu mesmo, que dava presentes aos pobres. Devemos tentar manter esta ideia de um lado mais solidário e garantir que ele continua a viver dentro dos corações dos pequeninos.”