A paixão de Zeca Baleiro pela música portuguesa

O cantautor brasileiro regressa a Portugal para três concertos com canções de além-mar (que são de cá, portuguesas, e que decidiu mostrar ao Brasil) e outras cantigas do seu repertório no espetáculo “Na Ponta da Língua”. Esta é uma conversa, com o Atlântico pelo meio, que anda pelo passado, pelo presente e pelo futuro sem ordem cronológica. Pelos cursos que não terminou, Agronomia e Jornalismo, pelo impacto da tecnologia, pelos livros que quer escrever, pelo poder que dá às palavras nas histórias que compõe (escritas e cantadas). Uma conversa que volta ao ponto de partida, ao início, à música.

É uma longa história que tenta resumir. O seu disco “Canções d’Além Mar” é uma carta de amor a vários cantautores portugueses – Zeca Afonso, Fausto, José Mário Branco, Sérgio Godinho, José Cid, Rui Veloso e Carlos Tê, António Variações, Jorge Palma, Vitorino, Xutos & Pontapés, Ornatos Violeta, Pedro Abrunhosa, João Gil, João Monge. Não são nomes ao acaso. “São responsáveis pelo meu ingresso no maravilhoso mundo da música portuguesa.” Uma homenagem apaixonada ao cancioneiro português. “São canções de letras brilhantes, inteligentes, interessantes, poéticas, e eu queria que o público brasileiro entendesse isso.”

Zeca Baleiro volta a Portugal com músicas desse álbum e várias outras. Quinta-feira, dia 12, estará no Convento de São Francisco, em Coimbra, com Sérgio Godinho como convidado especial. Sexta, no Teatro Tivoli BBVA, em Lisboa, com os Ala dos Namorados. Sábado, na Casa da Música, no Porto. Nunca pisou os palcos destes espaços, será a primeira vez. “A expectativa é um recital, um show pequeno, íntimo, que tenha um público bem bonito, e possa fazer um grande concerto. Estamos preparando o show com muito carinho, com muito cuidado.” E, como de costume, tudo pode acontecer. “A gente nunca sabe porque as coisas vão-se modificando, o público vai-se transformando, o nosso público vai envelhecendo. A gente nunca sabe o que esperar.”

(Foto: Sílvia Zamboni)

É uma história comprida, sim. O cantor e compositor brasileiro fala de encontros felizes e marcantes com a música portuguesa, e seus autores, e de como surgiu o disco “Canções D’Além Mar”, considerado o melhor álbum de música popular brasileira no Grammy Latino 2021. “A partir do momento que fui conhecendo e tendo intimidade com a música de Portugal, fui lamentando o facto do brasileiro não conhecer um Fausto, um Sérgio Godinho, um Zeca Afonso, só os muitos iniciados, os pesquisadores, gente que trabalha com música, não o grande público, nem o mais alternativo.” Durante a pandemia, fez lives com alguns músicos portugueses, conversas descontraídas no Instagram. O retorno não tardou. “Tive respostas muito interessantes de gente que foi pesquisar o trabalho desses músicos portugueses. Isso ampliou o conhecimento dos brasileiros sobre a música mais moderna, mais contemporânea.”

O cantor conta essa perceção que havia do lado de lá do Atlântico. “Até então, para nós, aqui, música portuguesa era fado, maravilhoso, mas só fado, e um pouco de música folclórica trazida por Roberto Leal e outros artistas – e depois um evento muito eventual, pontual, uma música de Dulce Pontes numa novela, uma música de Mafalda Veiga noutra novela.” Pouco mais do que isso. “A indústria fonográfica brasileira não investiu nos artistas portugueses”, observa. O seu disco, em que preserva as canções, mantém as letras, faz arranjos, teve o tal efeito de que falava há pouco. “Acabou gerando pesquisas, mais interesse pela música portuguesa. Isso já é uma vitória, para mim, um triunfo.” Está contente, vê-se, nota-se.

O panorama começa, porém, a mudar. “Agora com Carminho, António Zambujo que transitam por aqui, que se relacionam com Caetano, Ney Matogrosso, a cena começa a modificar.” Ainda há pouco tempo, esteve num evento na Casa de Portugal, no Brasil, e foi abordado para a possibilidade de uma curadoria de um projeto com músicos dos dois países. A ver o que acontece. “Alguma coisa começa a acontecer a partir daqui.” Intercâmbios que começam a despontar, ligações que podem criar raízes com um imenso mar pelo meio que aproxima, não afasta.

Um disco que é uma homenagem sincera e apaixonada à música portuguesa, a nomes que o puxaram para um mundo maravilhoso, como conta. Com ele ganhou o prémio de melhor álbum de música popular brasileira no Grammy Latino 2021. Promete uma edição em vinil

Há uma pergunta que lhe fizeram várias vezes sobre o disco “Canções D’Além Mar”. Porque não tem artistas mais novos, da nova cena musical portuguesa? “Calma, eu precisava contemplar essa geração, dos anos 60, 70, 80.” Calma, portanto, Zeca Baleiro anda atento ao que está a acontecer deste lado, a Salvador Sobral, a Tiago Bettencourt, entre outros artistas. Há coisas a borbulhar na sua cabeça. E o mercado não é para aqui chamado, também já lhe fizeram essa pergunta, e ele faz questão de esclarecer. “Até poderia ser, mas, veja, o mercado de Portugal perto do mercado brasileiro é muito pequeno, o disco não foi movido por razões mercadológicas.” Os motivos são outros, a conversa é outra. “Foi mais uma coisa de afirmação de um amor pela música portuguesa, um acerto de contas, digamos assim, amoroso, e mostrar para o público brasileiro essa produção de uma música portuguesa mais contemporânea a partir de Zeca Afonso.”

A imponência (perdida) de lançar um disco

São quatro da tarde em Portugal, meio-dia no Brasil. Zeca Baleiro está em São Paulo, onde vive há 32 anos. Acabou uma entrevista, começa outra, conversa via Zoom, a dada altura desloca o computador para mostrar as prateleiras da sua secção de música portuguesa e africana numa parede cheia de estantes de CDs. A empregada já lhe disse que gasta os cachés dos concertos em Portugal a comprar músicas portuguesas e africanas nas lojas de música deste lado do Atlântico. Ele ri-se e não desmente.

Computador na mão, enquadramento nos CDs, ali também está o seu amor ao cancioneiro português e africano, é visível, é evidente, e recorda que produziu um disco do músico angolano Filipe Mukenga no Brasil. “Só não fiz mais colaborações por falta de tempo. A vida é corrida, é rápida, é veloz, o Brasil é imenso”, comenta. Ainda este ano, Zeca Baleiro lançará um novo álbum de samba autoral nas plataformas digitais e em vinil. O “Canções d’Além Mar” deverá ter a mesma sorte de uma edição em vinil, revela. “A capa é linda e merece.” O conteúdo também. Há planos, portanto.

Está prestes a aterrar em Portugal para apresentar o espetáculo “Na ponta da língua” (confessa que não é particularmente fã de andar de avião, mas lá terá de ser). Na bagagem, traz o disco “Canções D’Além Mar” e não só. “Seria um pouco, talvez, indigesto tocar só repertório do ‘Canções d’Além Mar’, é um show que nem existe porque, na verdade, o meu show passa também por mudanças a cada novo disco.” Será então uma mescla do seu repertório com o do disco, um recital, um espetáculo simples, promete, com dois músicos apenas: Lui Coimbra no violoncelo e violão e Tuco Marcones na guitarra, violão, gaita, e outros instrumentos, com a participação do músico português Manuel Paulo Felgueiras, que foi pianista da Ala dos Namorados, grande amigo e que participa no disco. “Suponho que há um público saudoso do meu repertório em Portugal.” Ele não revela, porque não se divulga o alinhamento de um concerto de antemão, porque é surpresa e é assim que deve ser, mas talvez se ouça “Telegrama”, “Babylon”, “Flor da pele” (essa canção que entrou no quarto álbum de Gal Costa e lhe deu projeção nacional), e os mais recentes “Era domingo”, “Vento de outono” ou “Respira”. Nem toda a gente sabe da existência do disco em que homenageia os cantautores portugueses com a sua ginga e o seu sotaque, confessa. Não é uma antologia, já o disse, é um “recorte afetivo do cancioneiro português feito por um músico brasileiro.”

O cantor e compositor brasileiro tem vários amigos em Portugal. Sérgio Godinho é um deles, tem a sua canção “Às vezes o amor” no “Canções D’Além Mar”, e conta com a sua participação especial no concerto em Coimbra, na próxima quinta-feira, no Convento de São Francisco
(Foto: DR)

A cena musical mudou profundamente, Zeca Baleiro pensa nisso, no que a tecnologia tem alterado, arrumado e desarrumado, especialmente no universo dos que trabalham com criação artística, no caso mais específico da música. “Ficou tudo muito mais banal, a audição de música ficou mais corriqueira, num certo sentido, até mais grosseira. Você vai pulando de umas coisas para outras porque tem muitas opções, muita variedade e tal e tal, então esse cenário mudou completamente, não tem mais a importância, nem a imponência. Lançar um disco era um evento, era um acontecimento, noite de autógrafos, filas imensas de gente, hoje nada disso acontece.”

Hoje é outra história, outro contexto. “Hoje as coisas estão muito pulverizadas, muitos lançamentos, o tempo todo nas plataformas, diluiu um pouco a atenção.” Lançou um disco há pouco mais de um mês, recorda, demorará um ano até que muita gente se aperceba, sente. Há uns anos, não seria assim, tocaria nas rádios, teria críticas de jornal, participaria em programas de televisão. “Hoje passa batido, incólume, a não ser o número fiel de seguidores, ouvintes.” As redes sociais e plataformas áudio têm sido importantes para manutenção desse público, garante. “Se não, as pessoas se esquecem, acham que você morreu, parou de criar, e acabou.”

Tudo isso lhe interessa, não apenas pelo futuro da sua profissão, mas até por interesse sociológico. O que vai acontecer? O que sairá disto tudo? Onde se chegará? O que se anda a passar com o direito autoral? “As plataformas têm de pagar melhor aos artistas, o próprio conceito de autoralidade está-se modificando, hoje tem empresas que compram os direitos autorais dos artistas – aqui no Brasil tem várias, comprando como ativo financeiro, como se compra ações.” A tecnologia transforma todos os cenários. E ele tenta compreender para se adaptar, para integrar esse novo mundo de alguma maneira.

“Mambo Só” é o seu mais recente trabalho discográfico
(Foto: Diegoruahn)

Chegará a Portugal, ficará alguns dias, aproveitará para estar com o filho que estuda Jornalismo em Coimbra. “Está adorando a experiência, estou mais atualizado das coisas de Portugal por ele estar aí, há uma troca cultural, mostra coisas que anda a descobrir.” Aproveitará para rever amigos, colocar a conversa em dia. “Eu adoro, adoro Portugal.” Há raízes familiares. A família materna tem origens portuguesas, da Ericeira. O leve sotaque português das tias da sua mãe ainda mora na sua memória. “Para mim, é tudo muito familiar.”

Pequenas memórias e um ensaio de botequim

São 57 anos de vida, 26 de carreira discográfica, a contar desde a gravação do primeiro disco, a que devem ser acrescentados mais 12 de percurso subterrâneo, avisa, a escrever música para teatro, a ir a festivais, a ganhar coragem para arriscar, a alimentar a ambição de gravar um disco. Tudo isso aconteceu. O nome artístico já contou vezes sem conta. Nascido José Ribamar Coelho Santos, os primeiros nomes são uma homenagem a um santo do Maranhão. José tornou-se Zeca. Baleiro pelo seu constante consumo de balas, doces, guloseimas na juventude. Chamavam-lhe baleiro, ficou até hoje. Construiu uma carreira, consolidada há anos, as suas criações foram cantadas por Simone, Gal Costa, Elba Ramalho, e por tantas outras e tantos outros.

Antes da música, a faculdade. “Tentei a vida académica, Deus é testemunha disso”, diz. Curso de Agronomia num primeiro momento, largou, abandonou. Jornalismo depois, a mesma história, deixou, saiu. A música, ai o bichinho da música. Com três amigos, viajou para Belo Horizonte, lugar de música exuberante, que tanto o atraía, território de Milton Nascimento, Beto Guedes, Lô Borges, do chamado Clube da Esquina. Absorvia e engolia todo aquele ambiente, cantava e tocava em bares com o seu violão. A seguir, São Paulo, onde constrói uma carreira. “A minha métrica era fazer música.” Assim foi, assim continua a ser. “Acho que o mundo da Agronomia e do Jornalismo não perdeu muita coisa”, atira com graça. “Agronomia era um curso muito chato, muito técnico, e eu fui em busca de uma poesia, plantas, terra.” Jovem do interior, do campo, nascido no Maranhão, nordeste brasileiro, foi atrás desse romantismo entranhado na natureza. “A única coisa boa do curso é que a gente tinha uma aula prática em que tinha de aprender a dirigir trator. A única coisa realmente lúdica do curso foi aprender a dirigir trator.” E mais uns sorrisos.

As palavras são uma paixão de sempre, fascinado pela literatura, vai escrevendo pequenas memórias, encontros com artistas, recuperando alguns textos dispersos por várias partes. Na cabeça, paira um ensaio de botequim, como lhe chama. “Uma reflexão sobre a tecnologia, o fim do imaginário comum, umas ideias que estou começando a anotar”, adianta. “Tenho pretensões não literárias, no sentido mais alto da palavra, não serei jamais Mia Couto.” Seja como for, no próximo ano, quer dedicar-se à escrita de livros e voltar a escrever música para teatro infantil. Já tem uma encomenda, uma peça infantil baseada num conto do escritor Oscar Wilde. Em 2014, recorde-se, foi agraciado com o 26.º Prémio da Música Brasileira, na categoria de Melhor Álbum Infantil com o seu primeiro álbum para o público infantil “Zoró (bichos esquisitos) Vol.1”.

As suas aventuras por Portugal, garante, dariam um livro de peripécias. Há tanta coisa desde 1998, a primeira vez que cantou no nosso país. Houve de tudo um pouco ao longo dos anos, confessa, concertos sensacionais, concertos questionáveis, em grandes palcos, em aldeias e vilas do interior. A última vez que cá cantou foi com Zélia Duncan, concerto intimista, no Campo Pequeno e no Coliseu do Porto, em 2016. E, abram-se parênteses, nunca mais esqueceu aquela carne de porco com migas de milho que comeu em Viana do Castelo, numa viagem que fez há cerca de 15 anos com a mulher.

Zeca Baleiro Prepara-se para lançar um disco de samba de autor, tem uma encomenda de música para uma peça de teatro infantil a estrear no próximo ano e anda a tomar notas sobre o fim do imaginário comum
(Foto: DR)

Nas suas músicas cabe muita coisa, histórias comuns, não ter dinheiro para nada, a vontade de ser caçador porque se cansou de ser caça. “O compositor é um contador de histórias e o mundo contemporâneo trouxe novas histórias, novos temas.” “A vida já não é mais como era há 30 anos, em 30 anos avançámos quase um século, as transformações estão cada vez mais profundas e serão mais velozes”, repara. É um novo mundo, o nosso mundo, o que se conhecia começa a deixar de existir, há novidades a um ritmo alucinante, a Inteligência Artificial já entrou no vocabulário de todos os dias. Mas não, não insistam, avisa: nunca entrará num carro que anda sozinho, que não tem condutor.

O seu mais recente disco (pede para dizer assim porque referir o último disco pode dar azar e nunca se sabe) chama-se “Mambo Só”, editado há poucos meses. Os temas contemporâneos lá estão, são combustível para a criação. Esse álbum começa com uma vinheta que diz o seguinte: “Como diria o sábio monge do Nepal, a Inteligência Artificial jamais superará a burrice natural.” Para Zeca Baleiro, a humanidade não está num ponto de maturidade emocional e espiritual para utilizar a IA como benefício bom e comum. “Como toda a ferramenta, ela vai ser usada para o mal”, comenta. Há uma outra canção, um outro verso, mais uma reflexão. Um homem solitário canta pela sua voz: “Amanhã vou ao Starbucks e eu nem gosto de café, é só para ouvir o meu nome na boca de uma pessoa qualquer.” As idiossincrasias da sociedade moderna, garante, são muito inspiradoras, são matéria-prima para as suas canções. A novidade sempre lhe interessou. “A vida segue e a gente vai tentando produzir beleza, poesia, coisas boas, tentando ter uma atitude positiva diante do Mundo.” Na música, na escrita, na vida. Onde for.