São estudantes, mas a luta atual da classe veio despertá-los para a realidade da profissão. Estão a fazer contas à vida, a ensaiar hipóteses. Muitos têm esperança que as negociações entre Governo e sindicatos tragam mudanças e lhes permitam cumprir o sonho do Serviço Nacional de Saúde. Outros antecipam cenários alternativos. Há quem já tenha tudo preparado para emigrar e também há os que sabem que, perante as condições atuais, o setor privado será o caminho. A fuga dos recém-graduados está à espreita.
As manchetes dos jornais dão pistas preocupantes. Longos meses de negociações entre Governo e médicos, novas condições contratuais decididas unilateralmente pela tutela – Marcelo Rebelo de Sousa promulgou na semana passada o regime da dedicação plena, que é opcional e prevê um suplemento salarial de 25%, mas que aumenta o número de horas extraordinárias obrigatórias de 150 para 250 -, uma classe revoltada e uma luta há muito anunciada. O resto é sabido. A recusa cada vez mais generalizada dos médicos em fazer horas extra para lá das 150 obrigatórias, serviços de urgência num caos, a escassez de recursos a vir à tona, um novembro dramático a ser antecipado.
À distância, os estudantes de Medicina, futura geração de médicos, assistem ao contexto atual, vão fazendo contas à vida, ensaiando hipóteses. João Francisco Morais está a pensar seriamente em emigrar. A decisão ainda não está fechada, mas o aluno do 6.º ano da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto já preparou tudo ao milímetro. Nascido e criado em Mirandela, 22 anos, não se lembra de querer ser outra coisa que não médico. “Sou um caso um bocado atípico”, diz ele. O ano da pandemia foi decisivo, muito tempo em casa para arrumar ideias, uma em particular. “Comecei a preparar-me para caso tenha de escolher outro país para exercer, nomeadamente os Estados Unidos, que não é um destino muito popular entre os médicos portugueses.” Várias razões. “Um médico sem experiência nos EUA recebe o quádruplo ou quíntuplo de um médico em Portugal. E, com experiência, arrisco dizer que são cinco a dez vezes mais, dependendo da especialidade. Mas, mais do que isso, ao estudar apercebi-me que as principais inovações, as terapêuticas inovadoras, surgiam sempre do outro lado do Atlântico.”
João Francisco quer estar no topo, entre os melhores. Sabe que ter morada no norte da América tem pontos negativos, estar longe da família num país com serviços públicos diminuídos, falta de segurança, custo de vida alto, ainda está a ver para onde a balança pende, mas deixou caminho feito, quer ter a porta aberta, está muito investido nisto. Falou “com médicos portugueses, formados em Portugal, a exercer lá e a experiência deles é boa”. Até já fez os dois exames que lhe permitem candidatar-se à especialidade em terras do Tio Sam. “Cá temos uma Prova Nacional de Acesso para entrar na especialidade, lá são dois exames. O primeiro fiz em Lisboa, o segundo fui a Itália fazer.”
Acaba o curso, ao cabo de seis anos, em junho de 2024. Se seguir caminho em Portugal, depois vem a Prova Nacional de Acesso e o Ano Comum, quando os estudantes se tornam médicos internos, sem autonomia, acompanhados pelos mais experientes, mas já inscritos na Ordem, com horário de trabalho, remuneração – e os médicos internos asseguram hoje em grande medida o funcionamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Um ano depois são médicos autónomos e podem candidatar-se a uma especialidade (mais quatro a seis anos de formação já em atividade até serem especialistas). Porém, se os Estados Unidos forem o caminho, o cenário será diferente, em novembro de 2024 vai estar a submeter propostas para fazer a especialidade lá – que depois é automaticamente reconhecida cá, o contrário não acontece. Felizmente para Portugal, João Francisco ainda é a minoria entre os estudantes, uma minoria que está a ganhar expressão. “Se tivesse de fazer uma estimativa, diria que 10% dos meus colegas está a ponderar emigrar. A concretizar-se, isso fará uma diferença muito grande no SNS.” Isso e a fuga para o setor privado, uma realidade presente nos especialistas já formados e que vai conquistando palco também nos projetos de quem ainda está a estudar.
João Pires, 23 anos, está em Coimbra, cidade dos estudantes, 6.º ano do curso, agora passa boa parte do tempo no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra em estágio. Nem sempre quis ser médico, gosta muito de lidar com pessoas, decidiu-se no Secundário, quando já muito se falava dos problemas no SNS. “E claro que a situação atual pesa muito na minha equação. Sou um forte defensor do SNS, acredito muito nele. Não obstante, ninguém se pode comprometer com as condições que neste momento são oferecidas. Compreendo os especialistas que, uma vez formados, optam por sair para o privado. E vejo que um dia, com algum desgosto, esse também será o meu caminho.” Emigrar não está fora de questão, aliás nunca pensou tanto nisso como nos últimos meses, talvez Alemanha, Áustria, “pelas melhores condições oferecidas”. Tem amigos que “até já andam a aprender sueco, por exemplo”. Mas João gostava mesmo era de trabalhar em Portugal, no SNS, objetivo romântico, “idílico e utópico”. O problema é que, não havendo cedências do Governo, isso não lhe parece possível, pelo menos em exclusividade.
O interior das salas de aulas é o termómetro perfeito para medir uma tragédia à espera de acontecer. Ainda nas universidades, são já vários os alunos a antecipar carreiras à margem do serviço de saúde público. Mesmo os mais novos. Joana Sampaio Jesus, 20 anos, de Albergaria-a-Velha, estreou, em 2021, o primeiro curso de Medicina privado do país. Está no 3.º ano, na Universidade Católica, campus de Sintra. Desde que começou, já estagiou um mês num hospital em Cambridge, no Serviço Nacional de Saúde inglês, outro mês no Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, está a dar apoio em consultas no Hospital da Luz de Lisboa, vai tendo contacto com o terreno. Desde catraia que se envolve em projetos de voluntariado, de apoio a comunidades desfavorecidas, sabe bem do papel do SNS.
Ainda é cedo para decisões, mas já vai projetando cenários e o setor privado é um deles. “Considerarei sempre o SNS, acredito firmemente na importância de servir a comunidade, mas também sou consciente das intensas cargas horárias e dos desafios que enfrenta. Por outro lado, o privado traz vantagens salariais e é uma hipótese. Neste momento tenho todas as opções em aberto.” Inclusive a da emigração – e o facto de boa parte do curso da Católica ser lecionado em inglês amplia a confiança destes alunos para se mandarem para fora do país.
O sonho do serviço público ainda resiste
Apesar de tudo e de tanto, o Serviço Nacional de Saúde continua a ser o sonho maior de muitos estudantes, que depositam fortes esperanças na atual luta dos médicos, anseiam que lhes traga condições no futuro. Simão Ribeiro, 21 anos, 4.º ano da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, está muito confiante nisso. Sabe o que está em cima da mesa, conhece as reivindicações dos sindicatos, as propostas do Ministério. Parte da atividade letiva deste ano é dentro do lisboeta Hospital de Santa Maria, a acompanhar profissionais de saúde, a testemunhar em primeira mão como se faz. “Só nesta altura do curso é que nos cai a ficha e nos pesa na consciência o compromisso que estamos a assumir”, relata.
Decisões? Ainda não. Objetivos? Sim. “Idealmente, faço de exercer no SNS um objetivo, valorizo muito a missão do sistema público, é isso que me faz querer estimá-lo. Mas as condições têm de ser atrativas.” Mesmo com o privado a crescer a olhos vistos e a oferecer melhores condições (culpa as falhas do SNS por isso, sobretudo as longas listas de espera), mesmo que seja tentador emigrar para países que oferecem salários muito superiores (e dá o exemplo do Luxemburgo, “em que o salário de um especialista anda entre os 200 a 300 mil euros por ano, quando cá ronda os 50 mil”), quer muito ficar em Portugal, quer o SNS. Tudo vai depender do resultado das negociações de agora. Daí que ande tão atento.
Na mesma faculdade, mas no 2.º ano, Maria Pelarigo está a cumprir o sonho de criança. Foi persistente, só à terceira tentativa é que entrou em Medicina, fascinada que sempre foi pela profissão, pela fachada do Hospital de Santa Maria para onde passa os dias a olhar agora. Não desistiu. E segue o raciocínio de Simão. “Adorava trabalhar para o SNS, acredito que a saúde tem de ser um direito de todos, não só daqueles que têm dinheiro para a pagar. Mas gostava de o fazer com um SNS mais forte, que garanta melhores condições de trabalho e melhor qualidade de vida aos seus profissionais”, comenta.
É o mesmo objetivo de Ana José Sousa, aluna da Escola de Medicina da Universidade do Minho, 3.º ano. Escolheu o curso não só por gostar, mas muito por saber ter emprego garantido, pela esperança da estabilidade, ainda que as questões salariais já estivessem na ordem do dia. Isso não a demove dos sonhos. “O SNS é um direito básico de qualquer cidadão, quero fazer carreira no SNS. Mas claro que a situação atual me deixa alguma inquietação. Chegando lá, não sei como será o futuro.”
Os problemas aos olhos dos estudantes
Mergulhemos, pois, no cerne da questão. As negociações continuam, o acordo parece distante. E sucedem-se as greves, as recusas às horas extra, as urgências fechadas, as questões éticas levantadas. Portugal é o oitavo país do Mundo com mais médicos per capita, mas não está a ser capaz de os fixar no SNS. O discurso afoito da próxima geração de clínicos, que é exigente, reivindicativa, é a prova disso. Os alunos dos últimos anos de curso, prestes a entrar na carreira, são os que melhor sabem o que está em causa e alinham com a luta da classe.
João Pires olha para o encerramento recente de urgências e confessa que “não tinha noção” que estes serviços se mantinham tanto à custa das horas extraordinárias. “Assusta-me muito um serviço tão fundamental ser tão afetado por uma simples recusa dos médicos trabalharem mais do que está legalmente previsto, que é legítimo”, aponta. Assim como o assusta um “Governo que, perante este cenário e a escassez de recursos, tem tantas reticências em aumentar devidamente os salários base e tornar a carreira atrativa”.
Vamos por partes. A luta que se está a viver é, defende Simão Ribeiro, “justa e necessária”. “Será necessariamente minha em breve”, reconhece. E elenca os problemas: há uma “degradação das condições de trabalho, baixas remunerações base, os médicos são das classes que mais perderam poder de compra nos últimos dez anos, sobrecarga, falta de descanso”. No debate das horas extra (o aumento das 150 para as 250 obrigatórias) e à distância de quem ainda não tem a experiência do trabalho, o estudante até admite vir a fazer 250 horas extraordinárias, mas isso, garante, não pode nunca ser uma obrigação nem a solução para um problema estrutural. “As horas extraordinárias são precisamente isso, extraordinárias. Além disso, o regime de dedicação plena deve ser devidamente compensado no salário base, é sempre uma insegurança para o futuro ver salários reforçados por via de suplementos.”
João Francisco Morais, que está agora a estagiar no Hospital de São João, no Porto, tende a concordar. “Olhando para a carreira médica como uma carreira na Função Pública, é provavelmente a única que ainda tem 40 horas de trabalho semanais em vez das 35 e que não pode recusar horas extra até um teto de 150. Pior, grande parte dos médicos atinge esse limite nos primeiros meses do ano”, sublinha o aluno, que acredita piamente que o fazem pela “responsabilidade social” com os doentes. Só até agosto deste ano, os médicos já tinham feito quatro milhões de horas extraordinárias e isso representou mais de 200 milhões de euros para o Estado. Desde julho de 2022 que as horas extra dos médicos para lá das 150 obrigatórias são pagas a 70 euros à hora. “Mesmo assim, não acho que os médicos as façam para compor salários baixos, principalmente porque muitos têm alternativas no privado, onde as remunerações são altas. É um sentido de missão. Hoje, estar no SNS é ter mesmo amor à camisola.”
Os estudantes têm noção da realidade laboral, também da tabela salarial – já todos tiveram a curiosidade de a espreitar, de comparar com o resto da Europa, do Mundo, com o privado, de chegar à conclusão que não é competitiva. Sabem que quando começarem a trabalhar, ainda como internos (antes de entrarem na carreira), vão ganhar cerca de 1300 euros líquidos. Alinham com a exigência de aumentos transversais nos salários base. Ana José Sousa lembra que “ainda há muito a ideia de que um médico recebe muito, isso foi verdade no passado, já não é assim, até porque depende muito da zona onde é colocado, dos custos da habitação”. As vagas para especialidades menos atrativas que ficam por preencher, sobretudo na área de Lisboa, mesmo havendo sempre mais candidatos do que vagas, são exemplo disso. E apesar de os salários serem acima da média da realidade do nosso país, os alunos recordam que a remuneração não corresponde a uma profissão que envolve uma formação tão extensa e uma responsabilidade tão alta.
A reboque de tudo vem a questão da exaustão dos profissionais de saúde, dos longos turnos, das taxas de burnout elevadas – e da consequente falta de qualidade de vida, sobretudo com o anúncio do fim do descanso compensatório após o trabalho noturno. É talvez esse o ponto mais agitador nos jovens, futuros médicos, que estão muito despertos para o tema. E que são unânimes em dizer que é também a saúde dos doentes que está em risco. A alertar para o perigo. Joana Sampaio Jesus, que acredita que a luta dos médicos é legítima, “por uma carga de trabalho mais adequada, uma remuneração justa”, até admite a dificuldade em garantir as escalas nos serviços de urgência com a escassez de médicos, “mas também não se pode chegar ao ponto de levar os profissionais à exaustão”.
“É injustificável o estado de burnout a que muitos médicos chegam. Como é que alguém consegue prestar bons cuidados quando há turnos de 24 ou 36 horas seguidas?”, questiona Maria Pelarigo. “Os médicos são humanos e nesta profissão um erro pode custar a vida de uma pessoa. Fala-se muito em saúde mental, mas acho que o Governo se esquece da saúde mental dos próprios profissionais de saúde. Querem ter mais médicos a trabalhar no SNS e isso só acontecerá se as condições melhorarem”, avisa a aluna.
Entre os alunos ouvidos pela “Notícias Magazine”, ainda nenhum leu de fio a pavio o Código Deontológico da profissão, mas conhecem-no. Alguns já o abordaram nas aulas, outros leram-no em traços gerais. Todos assumem a importância maior da ética na medicina. O tema vem à baila, pela voz de João Pires, precisamente no contexto da exaustão. “O Código Deontológico existe por diversos motivos, o principal deles é a defesa dos doentes. E a sobrecarga de trabalho pode pôr em causa a capacidade de os médicos tratarem eticamente os seus doentes. Não estou a questionar a ética dos médicos, estou a pôr em causa o contexto. Torna-se complexo tomar decisões difíceis ao fim de longas jornadas de trabalho.”
A qualidade de vida a conquistar espaço
A nova geração tem objetivos firmes muito para lá da realização profissional. Antecipa o futuro, pensa no estilo de vida, no equilíbrio entre trabalho e família, valoriza o descanso. A ideia romantizada de tempos idos de uma profissão de sacrifício em nome de um bem maior está a desaparecer. “Algo que me assusta bastante – e que sempre assustou – é a falta de tempo que há nesta profissão, o sacrificar horas com a família, horas pessoais, feriados”, salienta Maria Pelarigo, que acredita no espírito de sacrifício da classe, de amor à profissão. Com limites.
Este é um ponto importante. A maioria dos futuros médicos não parece disposta a abdicar da qualidade de vida. “O sentido de missão dos profissionais de saúde ainda contribui muito para manter o SNS, mas sem dúvida que só isso não será suficiente no futuro. Os médicos devem ter os doentes como prioridade, contudo não é saudável, sustentável nem justo exigir que isso seja feito à conta de sacrifícios próprios. Devem ser criadas condições para que isso seja assegurado”, refere Simão Ribeiro. E não, diz, não se trata de egoísmo, nem de “falta de vocação”, “trata-se de cuidados de saúde assegurados por profissionais felizes, saudáveis e sem sacrifícios desmedidos”.
A ideia é partilhada por João Francisco, que rebobina a cassete do tempo. A visão do médico “que trabalhava horas a fio, que se dedicava muito aos doentes e em contrapartida recebia um certo respeito da sociedade e era a pessoa mais importante da aldeia, já não se aplica no século XXI”. O jovem que está de olhos postos na emigração quer constituir família, ter filhos, não quer ser “o pai que sai de casa antes de os filhos acordarem e que chega depois de os filhos se deitarem”. “E quero ter tempo para mim, para me cuidar. Escolhi Medicina por ser uma profissão nobre, mas não pode ser à custa de tudo.”
Parece evidente que a atratividade da carreira médica no futuro não se pode fazer só à conta de salários, mas do descanso, de ambientes saudáveis, da conciliação com a vida pessoal e com outros sonhos que os mais novos já carregam, desde a investigação à docência. Ana José Sousa resume o assunto numa pergunta simples: “Há uma característica muito social na profissão médica e quem estuda Medicina tem isso bem assente. Porque há um impacto direto na vida de alguém e na saúde de uma população. Mas é redutor falar em sacrifício. Até que ponto devemos fazer sacrifícios em detrimento da qualidade do serviço?”.
Abrir mais vagas nos cursos não é resposta?
O Governo tenta tapar o buraco da escassez de médicos no SNS com mais vagas nos cursos de Medicina (foram 1541 neste ano) e com o anúncio do aumento de vagas no concurso para especialistas do próximo ano (serão 2200, o maior número de sempre). Mas são os estudantes os primeiros a dizer que aumentar vagas em especialidades atrativas vai aumentar a captação, mas não vai resolver o problema nas menos atrativas, onde continuarão a ficar vagas por preencher. Sobre ter mais vagas nos cursos – todos admitem que a formação em Portugal é de excelência e reconhecida internacionalmente -, muitos alunos consideram que não é o caminho. E explicam porquê. “Há, de facto, falta de médicos no SNS, isso é indiscutível. Mas o problema não se resolve simplesmente aumentando as vagas nos cursos. Grande parte da formação de um médico faz-se no setor da saúde. E os serviços não têm capacidade para formar mais alunos com qualidade. Numa perspetiva prática, neste momento já temos três, quatro alunos a acompanhar um médico que nos está a tentar ensinar, o que não é o mais confortável para o doente e certamente não é o mais pedagógico”, observa João Pires.
Aumentar este rácio, prossegue Simão Ribeiro, seria prejudicar a qualidade da formação, perder a capacidade de formar bons médicos. O problema é uma pescadinha de rabo na boca. “Há cada vez mais internos por médico especialista e há cada vez menos médicos especialistas para os formar”, porque esses estão a migrar para o privado. Voltamos ao princípio: só a melhoria das condições laborais é que permitirá fixar os especialistas no SNS e, assim, aumentar a capacidade de formação. Um círculo vicioso, portanto. A par disso, formar mais médicos não é uma garantia de que os recém-graduados vão trabalhar para o SNS.
Isto levanta uma questão velhinha, a da retribuição ao país pela formação. Formar um médico custa quase 100 mil euros, seja numa universidade pública ou privada. No Ensino Superior público, as propinas estão longe de cobrir o investimento do Estado. “É uma pergunta que me fazem muitas vezes por saberem que quero emigrar”, conta João Francisco. “Toda a gente sabe que as propinas que pagamos são meramente simbólicas. Mas há outros cursos com custos elevados em que a questão não se põe. Sei que esta profissão tem um peso moral superior, mas não sinto mais responsabilidade para com a sociedade portuguesa do que um engenheiro ou um veterinário. Não emigro só porque me apetece, é uma decisão ponderada, sei que o meu país me deu esta oportunidade, mas até que ponto é que me cabe a mim escolher um futuro menos próspero em nome do SNS? Portugal é que tem de ser capaz de atrair os jovens, de perceber o que é que os destinos dos recém-graduados oferecem e tentar competir. Aposta-se muito na formação e pouco na captação.”
As medidas já tomadas pelo Governo são insuficientes, e a luta atual veio mostrar, como diz Joana Sampaio Jesus, problemas de fundo. Mais, veio despertar os (ainda) estudantes para a realidade da profissão. Todos estão preocupados. Se as condições de trabalho não mudarem, a fuga da nova geração de médicos, seja para o privado ou para o estrangeiro, está à espreita. Perde o SNS e perdem os portugueses.