Arremesso de ovos com tinta a Duarte Cordeiro, pichagem da entrada da FIL e corte de estradas são os exemplos mais recentes de um crescendo inegável e controverso no ativismo climático. Episódios suscitam múltiplas questões: são estas ações eficazes? Pode a violência, mesmo que numa escala minimal, encontrar legitimidade e respaldo numa causa maior? E quais são os riscos?
Numa conferência sobre energia verde, um ministro, nada por acaso o que tutela a pasta do Ambiente e da Ação Climática, é interrompido de súbito, há ovos carregados de tinta verde a esvoaçar, um atinge-o em cheio, os outros são propositadamente arremessados ao grande televisor na retaguarda, onde paira o mote para a discussão, tudo enquanto vários gritos de ordem enchem a sala: “Sem futuro não há paz”, “Não tem legitimidade social para falar sobre crise climática”, “Um evento patrocinado pela Galp e pela EDP, a sério?”. E as acusações vão-se repetindo, até as ativistas da Greve Climática Estudantil que as gritam serem, por fim, retiradas da sala. O momento depressa enche as televisões, é reproduzido vezes sem-fim nas redes sociais, por estes dias dificilmente haverá quem o não tenha visto (e, diga-se, no fundo foi essa a intenção, pelo menos em parte, lá iremos às motivações mais adiante). Logo no dia seguinte, chegam relatos de uma outra ação, também numa conferência, desta vez sobre aviação e na Feira Internacional de Lisboa (FIL), agora conduzida pelos grupos Climáximo e Scientist Rebellion. A fachada do edifício foi tingida de vermelho, qual mancha de sangue, se dúvidas houvesse quanto à conotação sombria do gesto, uma imponente faixa ajudaria a dissipá-las: “Eles estão a matar-nos.” No “eles”, fizeram questão de explicar, cabe toda a indústria da aviação. Mas também os governos e os “ultra-ricos” cujos jatos privados rasgam os céus. Já esta semana, vários elementos do coletivo Climáximo sentaram-se em plena Segunda Circular (Lisboa), estrategicamente em frente à sede da Galp, fizeram uma espécie de cordão humano destinado a parar o trânsito e a abanar consciências, empunharam cartazes com palavras de ordem, dois penduraram-se mesmo no viaduto e exibiram, para quem quisesse ver, uma grande tarja que dizia isto: “Os governos e as empresas declararam guerra ao Planeta”. Só que os automobilistas, pelo menos uma parte deles, não acharam piada ao ato, depressa se enfureceram, arrastaram os jovens dali para fora, com violência à mistura, foi feio, muito feio. E ainda assim, no dia seguinte, repetiram a cena, desta vez na Rua de São Bento, perto do Rato, também em Lisboa. “Eles declararam guerra contra a vida”, ostentavam nas t-shirts.
Estes quatro atos, aqui destacados por serem os exemplos mais recentes, ainda por cima concentrados no espaço de poucos dias, dizem bem de quanto o ativismo climático tem vindo a cerrar fileiras contra empresas e governos, com ações cada vez mais frequentes, cada vez mais aparatosas, cada vez mais radicais. Pelo meio, há argumentos que se confrontam, discussões que se agigantam, questões que se levantam e que estão longe de ter respostas unívocas. Como a da eficácia, por exemplo: serão estas formas aguerridas de protesto capazes de mobilizar a fatia da população que permanece indiferente (nalguns casos cética) face à emergência climática ou, pelo contrário, há o risco de serem contraproducentes? Mas também questões que mexem com o âmago da própria sociedade: há o risco de estas ações mais musculadas contribuírem para exponenciar a polarização crescente? E há ainda um outro ponto, porventura o mais polémico: pode uma causa, por mais colossal e urgente que seja, legitimar a violência, por mais ténue que seja? E se se entender que sim, estaremos preparados para lidar com os riscos que se exponenciam quando abrimos a caixa de Pandora?
Matilde Ventura, 19 anos, ativista da Greve Climática Estudantil, um dos rostos do protesto que visou diretamente Duarte Cordeiro, ministro do Ambiente e da Ação Climática, começa por justificar a escalada dos protestos. “Em 2019, quando começaram as marchas a nível internacional [a primeira grande greve ocorreu a 15 de março, com mais de um milhão de jovens a saírem à rua em todo o Mundo, sob a inspiração inegável de Greta Thunberg, a jovem sueca que é bandeira maior desta causa], a crise climática estava num ponto completamente diferente. Tem havido uma escalada enorme, hoje a crise é já exponencial, e portanto o nosso movimento tem de ser proporcional.” Matilde reconhece que “inicialmente os protestos foram vividos com alegria e leveza”, mas acusa o Governo de simplesmente os ter ignorado. “E voltou a ignorar-nos quando fizemos greve de fome e ocupámos escolas.”
Pelo meio, tentaram outras ações. Em abril, por exemplo, na abertura das comemorações dos 50 anos do PS, baixaram as calças e mostraram o rabo a António Costa em sinal de indignação, numa alusão ao protesto que em 1993 visou o então ministro da Educação, Couto dos Santos. Em meados de setembro, agrilhoaram-se aos portões do complexo do Instituto Português do Mar e da Atmosfera, onde se realizava o Conselho de Ministros. Mas nenhum destes gestos produziu o efeito desejado, advogam. “Eu não tenho nenhum gosto pessoal em atirar ovos a um ministro, nenhum de nós tem, mas se sistematicamente somos ignorados temos de escalar para o próximo passo.” A urgência da situação a isso obriga, defende. “Estamos a enfrentar a maior crise que a humanidade já viveu, o Planeta está prestes a colapsar e não há um plano para o salvar, é assustador.” Matilde frisa o que está em causa. “Sabemos que para não excedermos a meta dos 1,5 graus – o aumento de 1,5 graus em relação à era pré-industrial -, temos de garantir a neutralidade carbónica até 2030. Há um prazo muito concreto, temos seis anos para mudar tudo ou então já não vale a pena. Ainda por cima há estudos mais recentes que mostram que, por causa das catástrofes climáticas, podemos atingir esse ponto ainda mais cedo. Isto é completamente assustador. E não estamos a fazer o suficiente.”
E sim, tem noção que os ovos com tinta arremessados a Duarte Cordeiro podem vir a valer-lhe problemas com a Justiça. No limite, uma pena de prisão. Em causa, defendem os penalistas, pode estar um crime de resistência e coação sobre funcionário [no sentido de se tratar de alguém que desempenha funções públicas ou políticas], punido com pena de prisão de um a cinco anos, ou mesmo um crime de ofensa à integridade física qualificada, que pode valer ordem de prisão até quatro anos. Matilde responde assim: “São coisas que me poderiam afetar no futuro, mas estou mais preocupada em garantir que esse futuro vai existir. Os atos de desobediência civil já aconteceram antes, a propósito de outras causas, e acho que este é o lado certo da história. Além de que atirar tinta a um ministro é um ato muito performativo, violência é o que está a acontecer na Líbia [chuvas torrenciais e inundações provocaram mais de dez mil mortes], violência é o que aí vem.”
“Estão a ser coniventes”
A mira dos ativistas está apontada sobretudo aos combustíveis fósseis, altamente poluentes. “Não há paz até ao último inverno de gás”, repetem. Matilde justifica: “Este tem de ser o último inverno em que é usado gás para produzir eletricidade. Para atingirmos o objetivo de ter eletricidade 100% renovável em 2025 e o fim dos combustíveis fósseis em 2030.” Vale a pena lembrar, a propósito, que também o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, escalou recentemente o dramatismo do discurso em relação à emergência climática, defendendo que a humanidade tinha aberto “as portas do inferno”.
Alice Gato, porta-voz do coletivo Climáximo, responsável por inúmeras ações de protesto (entre as quais os episódios na FIL e na Segunda Circular), reitera a urgência. “Nós devíamos estar a caminho da neutralidade carbónica em 2030, mas não só isso não está a acontecer como estamos cada vez mais longe de o conseguir. E andamos aqui a discutir um novo aeroporto e um novo gasoduto, quando sabemos que isso vai contribuir para agravar o problema. Isto é perfeitamente insano e faz com que tenhamos uma desconfiança crescente em relação ao que o Governo e as empresas vão fazer. Desde logo porque o Governo continua a aceitar participar em eventos com as grandes empresas petrolíferas, das empresas mais poluentes do Mundo. Isto revela falta de seriedade.” Razões de sobra para que haja um extremar das ações de protesto, entende. “O que seria estranho era estarmos aqui desde 2015 [ano em que surgiu o Climáximo] a dizer e a fazer exatamente as mesmas coisas sem termos resultados. Se nada acontece, o que nos parece ilegítimo é não fazer nada. Basta olhar para qualquer luta histórica e perceber que estas ações [de desobediência civil] sempre foram legítimas e necessárias para conseguir a mudança”, frisa, ressalvando que o limite passará sempre por “não pôr a vida de alguém em perigo”. Acrescenta ainda que os protestos recentes não tencionam visar apenas o Governo e as empresas. “Também queremos dar visibilidade ao assunto, provocar nas pessoas algum tipo de ativação no sentido de perceberem que, quando não estão a fazer nada, estão a ser coniventes com crimes”, atira, referindo-se às milhares de mortes ocorridas na sequência de catástrofes climáticas.
Anabela Carvalho, investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, que no ano passado coordenou o estudo “JUSTFUTURES – Futuros climáticos e transições justas: narrativas e imaginários políticos dos jovens”, espécie de raio-X hiper-detalhado do movimento climático em Portugal, reconhece que tem havido “um crescendo, tanto ao nível da frustração dos jovens, como da sensação de gravidade e de urgência” em relação ao problema. “Temos hoje um conhecimento crescente das práticas de ‘greenwashing’ e há uma perceção grande de que muito do que está a ser feito é mais uma tentativa de parecer verde do que um compromisso e uma ação efetivas.” Puxando brevemente a fita atrás, recorda que o ativismo ambiental existe em Portugal desde os anos 1970 (ainda que assente sobretudo em “momentos pontuais” de contestação) e que o ativismo climático por parte das organizações não-governamentais já vem “pelo menos desde o início dos anos 1990”. Mas reconhece o papel central que o ativismo jovem tem vindo a assumir nesta luta. Lembra, a propósito, que a ação direta não surgiu em Portugal só nas últimas semanas. Já no ano passado a refinaria de Sines tinha sido invadida por ativistas do Climáximo, por exemplo. Já em fevereiro os ativistas do movimento “Scientist Rebellion” e da campanha “Abolir jatos privados” tinham atirado tinta aos balcões e às máquinas de raio-X do aeródromo de Tires (Cascais).
A tendência acompanha um movimento crescente de contestação, também a nível internacional. A propósito, vale a pena recuar a maio de 2022, quando, em pleno Louvre, um ativista climático atirou uma torta à Mona Lisa, o famoso quadro de Leonardo da Vinci, justificando o ato com uma acusação. “Há pessoas a destruir a terra.” Desde então, já foram registados diversos episódios de tinta atirada a quadros em museus pelo mundo fora. Mas também inúmeras outras ações, de desobediência civil ou não. E quase sempre com os jovens como protagonistas. Paula Guerra, professora de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, contextualiza este movimento. “Pelo mundo, há cada vez mais gente que se manifesta de forma diferente, há uma forma cada vez maior de exercer a cidadania. Diz-se muitas vezes que os jovens são apáticos, mas eu acho que é uma falsa questão, simplesmente há outras maneiras de exercer a cidadania. E estes movimentos inserem-se aí, nessa insurgência, nesse ativismo, nessa cidadania crítica.”
Ainda assim, o episódio com Duarte Cordeiro é um momento diferenciador, entende Anabela Carvalho. “Este dado particular da tinta atirada ao ministro é novo, porque é uma forma de intrusão física que até aqui não tinha ocorrido em Portugal, uma ação direta e violenta, embora não tenha o sentido de ferir, que tem motivado críticas muito negativas, com muita gente a expressar a sua oposição e repúdio.”
O dilema da eficácia
A docente admite, contudo, que esta escalada no nível dos protestos não a apanhou de surpresa. “Em fevereiro estive numa reunião com muitos destes grupos em que a dada altura, quando se discutiu o futuro das formas de reivindicação, se chegou a considerar outras possibilidades, até de alguma radicalização, em linha com outros movimentos estrangeiros. Precisamente por causa desse sentimento de impotência e frustração.” Para garantir visibilidade também. A investigadora ajuda a fazer a leitura deste argumento. “A verdade é que muitas das ações levadas a cabo por estes jovens não têm tido visibilidade mediática. Ainda recentemente, foi organizada uma caravana climática, por locais onde estavam presentes fontes importantes de efeitos de estuda, e a verdade é que aquilo não teve qualquer repercussão mediática. Enquanto com estas ações, de facto, o tema é colocado na agenda.” Deixa, por isso, uma questão: “Não é o próprio jornalismo que convida a este tipo de ações, na medida em que parece ser a única forma de dar visibilidade ao tema?” E aqui entramos numa espécie de dilema, sublinha: se é certo que esta é a forma mais garantida de conseguir visibilidade mediática, há também o risco de “alienação de determinados públicos por não simpatizarem com os meios utilizados.”
Um risco que, de resto, é destacado por outras pessoas ouvidas no âmbito deste artigo. Como Francisco Ferreira, por exemplo, o líder da Zero que é um dos nomes incontornáveis do ativismo ambiental em Portugal. Salientando que vê com bons olhos “a diversidade e a complementaridade entre as diferentes formas de atuação”, não esconde que olha para os episódios mais recentes como um tipo de atuação “excessiva e exagerada”. Consegue, no entanto, compreender os motivos que estão na origem dos mesmos. “São reflexo de uma frustração face àquilo que deveria ser feito e não está a ser, porque é verdade que estamos numa situação de grande pressão e que temos de andar muito mais depressa na redução das emissões, na mudança de estilos de vida, na adoção de outro tipo de políticas nacionais e autárquicas”. No entanto, considera, há duas questões que se levantam e que o preocupam. “Por um lado, o facto de estas ações de alguma forma serem contraproducentes, na medida que uma parte das pessoas acaba por se focar apenas na forma e por se afastar daquilo que está efetivamente em causa, por não concordar com o modo como foi feito. Aí, em vez de unir as pessoas nesta causa, que é o objetivo de todos nós, acabamos por separar e por ter uma fração grande da população que não alinha. Depois, porque aquilo que se discute mais na sequência destas ações é a a forma e não o conteúdo.”
Francisco lamenta que assim seja até porque, entende, “os alvos das ações tinham todas as razões de ser”. “A refinaria da Galp, em Sines, é a instalação industrial mais poluente que temos, e os combustíveis são responsáveis pela maior fatia das emissões poluentes em Portugal, que provém dos transportes e representa cerca de 28% do total [segundo o Inventário Nacional de Emissões da Agência Portuguesa para o Ambiente]. A EDP, que até já tem uma fatia importante de energias renováveis, tem das centrais térmicas mais poluentes do país. O Governo também tem grandes responsabilidades, porque as emissões estão a aumentar. A mesma coisa em relação à aviação, que é o setor que mais contribui para o aumento das emissões. Ou seja, eu acho que os alvos estão certos. Temo é que, com este tipo de ações, se possa perder a adesão de uma parte das pessoas. Entendo a ansiedade que as motiva, mas acho que é preciso pesá-las bem.” Vinca, a propósito, que, no Reino Unido, o movimento “Extinction Rebellion” já fez uma pausa em protestos do género por entender que “estavam a criar mais conflito”.
Contudo, a questão não é consensual. Nem mesmo entre quem se debruça sobre ela de forma mais profunda. Se em França, por exemplo, os estudos do jornalista Marc Lomazzi sobre o ambientalismo radical concluíram que as intervenções que promovem a destruição ou que dificultam a vida coletiva tendem a causar impacto negativo, em Inglaterra foram notícia os resultados de um inquérito feito a cerca de 120 especialistas do meio académico, em que 70% dos inquiridos classificaram as táticas de protesto disruptivas como importantes para o sucesso destes movimentos, mais até do que a cobertura mediática ou mesmo a “fuga” a estratégias violentas. Anabela Carvalho, da Universidade do Minho, esboça uma explicação para a dissonância de conclusões. “Depende sempre de vários fatores. De quem se está a inquirir, da forma de ação direta de que se está a falar, da forma de violência, há aqui muitas nuances que se podem traduzir em resultados diferentes. E dependerá sempre do público que considerarmos. Nos EUA, por exemplo, há estudos que mostram que a ação direta é bem mais recebida por democratas do que por republicanos. O que na verdade se compreende.”
Legitimidade e limites
Há outras nuances que inspiram discussões ainda mais profundas. Como a dos limites do ativismo e da legitimidade de ações como a que ocorreu na FIL ou, mais ainda, do ataque ao ministro Duarte Cordeiro. No espaço público, não faltaram críticas à ação levada a cabo pelos ativistas. A começar pelo visado. “A intolerância nem faz as outras pessoas estarem mais despertas para outros argumentos, nem serve para intimidar quem exerce funções públicas”, realçou Duarte Cordeiro, recusando, no entanto, apresentar queixa. A condenação do ato estendeu-se a outros quadrantes políticos. Paulo Rangel, eurodeputado e vice-presidente do PSD, por exemplo, foi perentório. “O ataque e o boicote ao ministro do Ambiente é inaceitável numa sociedade livre. Ponto final. Os fins não justificam os meios”, sentenciou no Twitter.
À “Notícias Magazine”, concretiza: “Ou estamos numa democracia em que há tolerância ou não estamos. Não podemos admitir comportamentos violentos e agressivos, mesmo que aparentemente não haja perigo. Há sempre um perigo associado, a pessoa pode ter um problema de saúde que ninguém sabe. Não podemos passar por cima disto ou corremos o risco de vir a legitimar outros comportamentos semelhantes. Eu sou muito a favor da liberdade de manifestação, mas há muitas formas de protestar. Levantando um cartaz naquele momento, por exemplo. Sendo que mesmo nesse caso não sou muito favorável. Mas são ações que cumprem os objetivos e chamam a atenção sem que haja destruição de objetos ou se ataquem diretamente pessoas.”
De resto, recusa taxativamente o argumento de que a escalada de protestos se deve ao facto de os atos anteriores não terem produzido os resultados esperados. “A Europa é o continente que mais adiantado está nesta matéria. Podem achar que se fez pouco, também é um tema que me preocupa, evidentemente. Mas quer dizer, se matassem uma pessoa, iam ser notícia em todo o lado. E com certeza não o vão fazer. Esse argumento não faz sentido nenhum. Nada justifica comportamentos deste género. O extremismo nunca é uma boa causa.” Um ponto que lhe causa particular apreensão, tanto mais quanto a polarização cresce a olhos vistos. “É um caminho que me preocupa porque as sociedades políticas no geral estão mais radicalizadas, vejo as pessoas moderadas a ter cada vez menos força e as mais radicais a ter mais, não apenas a este propósito, mas com meios mais agressivos e inaceitáveis do que estes, e estes episódios, de alguma forma, ajudam a legitimá-los. É assim que se começa.”
Apela, por isso, à imaginação dos jovens para formas alternativas de protesto, dando como exemplo o que estão a fazer seis jovens portugueses que interpuseram uma ação coletiva contra 32 estados por entenderem que estes não estão a fazer o suficiente para travar a emergência climática e para preservar os seus direitos fundamentais. “É algo com um alcance simbólico enorme e que teve destaque em toda a imprensa internacional. A manifestação violenta simplesmente não pode ter lugar, o Martin Luther King e o Nelson Mandela são exemplos máximos de luta e a força deles foi a da não violência. Mais: mesmo que só restassem meios violentos, lamento mas continuariam a não ser aceitáveis.”
Rui Tavares, deputado do Livre, não é tão determinista, mas há uma chamada de atenção que faz questão de vincar. “Todos temos causas que defendemos com sinceridade e que acreditamos convictamente estarem acima de tudo. E por isso mesmo não podemos esquecer que o que vale para nós e as nossas causas será reivindicado pelos outros e pelas suas causas como justificação para os seus atos.” Não que não esteja “inteiramente solidário” com o combate às alterações climáticas, frisa. Mas entende que as lutas pelas causas públicas serão sempre mais profícuas se forem feitas de forma a agregar mais gente. “Temos de pensar sempre em como a ação que escolhemos será interpretada por ativistas de outras causas.”
Rejeita, no entanto, qualquer esboço de paralelismo entre a ação que visou o ministro Duarte Cordeiro e o momento em que vários elementos de um grupo da extrema-direita interromperam a apresentação de um livro inclusivo (“No Meu Bairro”, de Lúcia Vicente), para promover um “protesto intimidatório”, conforme denunciado pelo editora. “O que aconteceu na apresentação do livro é uma manifestação de ódio, com um intuito de perseguição agressiva, não há comparação possível. O que acho é que toda a gente deve perceber que a sua causa não pode justificar tudo.” E lança um outro tópico para discussão: “Devemos lembrar-nos que em toda a questão do combate às alterações climáticas a preservação de um espaço público democrático é essencial, foi isso que abriu caminho a todo o debate científico que se fez ao longo das últimas décadas e que permitiu perceber que as alterações climáticas são uma evidência, bem como o peso que a mão humana tem tido nisso. Esse foi um debate que ganhámos com as ideias, com o espaço público, com a democracia, e eles voltarão a ser essenciais para que possamos resolver o problema.”
Mas também há quem entenda os atos dos jovens ativistas. Carmo Afonso, advogada, fez questão de assumir isso mesmo num artigo de opinião do “Público”. “Ter razão legitima ações que, à partida, seriam ilícitas ou pelo menos incorretas. A própria lei penal consagra este princípio. E cada um de nós faz o mesmo no seu código pessoal de conduta. Não podemos, nem devemos, dissociar a bondade de um protesto da bondade da causa pela qual se protesta”, escreveu, distinguindo entre atos de protesto que pretendem “travar situações de superior violência,”como o Black Lives Matter e o episódio de Keyla Brasil [ativista que interrompeu uma peça de teatro para exigir que o ator cis que representava uma personagem trans saísse do palco], de “atos violentos tendentes a manter privilégios, superioridade e domínio sobre os outros, como foi o caso da intervenção do grupo de extrema-direita no lançamento do livro”. Já a propósito do sucedido com Duarte Cordeiro, reconhece que “o ato foi violento, mas nada que se compare à violência do que a comunidade científica afirma que os espera [aos jovens]”.
A opinião, admite à “Notícias Magazine”, valeu-lhe incontáveis críticas no mundo cibernético. Mas Carmo reitera a posição. “Eu reconheço que há violência no ato, atirar tinta a uma pessoa é uma forma de violência, mas não é um ato de violência severa, é um ato de violência rebelde. E se levamos a sério a emergência climática e consideramos que tudo o que a comunidade científica está a deitar cá para fora sobre o tema é verdade e é atendível, se percebemos que os miúdos estão carregados de razão, que estamos a viver uma calamidade gravíssima, porque é que achamos que deveriam ser passivos? São miúdos que estão a tentar fazer alguma coisa. É certo que roçam os limites, mas há outra maneira?”, questiona, atribuindo uma parte das críticas ao “conservadorismo” dos portugueses.
Reitera ainda que a própria natureza da lei jurídica tem em conta que “a avaliação daquilo que é um ato danoso tem de estar sempre relacionada com aquilo que estamos a tentar combater ou remover”. E recusa o argumento de que a legitimação de um certo grau de violência para uma causa pode depois servir de base a atitudes semelhantes ao serviço de outros motivos. “Não entendo que se diga que depois tem de se reconhecer aos outros os mesmos direitos. Então o que aconteceu na apresentação do livro é uma luta emancipatória? Pelo contrário, é um homem branco hetero a querer continuar a ser dominador. A luta pelo clima é uma luta emancipatória. A luta feminista é. A luta antirracista é. Isto não é questão de opinião. Não acolho esse argumento. Mas que isto levanta questões delicadíssimas, que se pode abrir aqui uma caixa de Pandora, que há riscos, admito que sim.”