E se as cheias ou os incêndios não fossem uma tragédia anual? O cenário parece de sonho, mas é uma realidade possível aos olhos dos arquitetos paisagistas. Têm na sua génese muito mais do que a estética. Aprendem sobre anatomia, plantas, sociedade, cultura e tanto mais. A disciplina tem cerca de 80 anos de história e 50 de reconhecimento, apresentando soluções para a gestão equilibrada entre o ser humano e a natureza. O que falta para ser escutada?
Não fosse estar em causa o bem-estar (e até a vida) do ser humano e poderíamos considerar a história da arquitetura paisagista um autêntico filme. Um daqueles em que o “bom da fita” nunca é ouvido. Até ser tarde de mais. E, à imagem de muitos filmes, não falta neste um cliché: o do “eu avisei”. A expressão parece ser utilizada pelos arquitetos paisagistas para demonstrar que há algo com que todos se preocupam agora que, para estes profissionais, já é uma “cantiga antiga”. Mas do que se trata? Das alterações climáticas. Ou melhor, de como a atividade do ser humano exacerbou e acelerou alterações climáticas ao ponto de sofrermos atualmente com fenómenos climáticos extremos, diários, em torno de todo o Globo. Mas tudo poderia ser diferente. Como? Já lá vamos.
Primeiro, reforcemos o “eu avisei”. “O fenómeno parece novo. Fala-se em todo o lado. Faz capas de jornais quase todos os dias. Mas, para nós, arquitetos paisagistas, não é novidade nenhuma. Estavam à espera que acontecesse o quê?” Quem o questiona é Aurora Carapinha, arquiteta paisagista, investigadora, docente e apaixonada por jardins, que realça que não foi apenas um alerta que a profissão deixou à sociedade, tendo também apontado soluções. “Todos os nossos projetos da altura, por volta dos anos 1980, procuravam dar respostas para que situações extremas com que nos deparamos anualmente hoje não ocorressem.”
Fala-se de cheias, incêndios, perda de biodiversidade, recuo da linha de costa, entre tantos outros assuntos que, hoje, são tema recorrente e catalogados como “nova crise”. Aurora Carapinha lamenta que muitos desses projetos inovadores e solucionadores “tenham sido metidos na gaveta”. Problemas que todos os anos são recorrentes poderiam ser mitigados se tivesse havido um trabalho real com a arquitetura paisagista nos últimos anos? “Sem dúvida alguma. E não o digo por arrogância”, remata.
Arquitetura sem teto
E como é que a arquitetura paisagista tem um poder tão grande perante as alterações climáticas e os fenómenos extremos? Porque tem capacidade de prever e gerir mudanças a longo prazo, indica Carapinha. “O Professor William Porter chamava-nos, com muita graça, os arquitetos sem teto. E trabalhar sem teto é o maior desafio que existe, porque é uma arquitetura que está exposta à intempérie, à mudança das estações, à mudança da luminosidade, às diferentes temperaturas. Enquanto na ‘arquitetura com teto’ posso controlar essas variáveis, aqui não.”
E, por isso, o arquiteto paisagista tem de aprender, por exemplo, onde chove, quanto chove, de que forma se comporta e acumula a chuva. Entre outros dados. E, acima de tudo, completa a docente da Universidade de Évora, “o arquiteto paisagista tem de saber como aproveitar essa chuva”. Em suma, além de prever acontecimentos, a disciplina trabalha para que esses acontecimentos sejam aproveitados em benefício do bem-estar humano e do “bem-estar” da natureza. “Eu não trabalho contra a natureza. Trabalho com as dinâmicas dos sistemas naturais. E tenho de ter duas coisas: a ciência para os saber e a arte para os reinventar, criando novos lugares e oportunidades de vida.”
É no balanço entre ciência e arte que se baseia a definição da arquitetura paisagista, que, nas palavras de Caldeira Cabral, figura histórica da profissão, “é a ciência e a arte de ordenar o espaço exterior em relação ao homem”. E os equilíbrios parecem ser o ex-líbris. “Equilíbrios que vão além do estético, mas que alcançam dimensões como o equilíbrio económico, ecológico ou social”, afirma Carapinha.
A primazia do económico
Nestes vários equilíbrios, João Ceregeiro, arquiteto paisagista e presidente da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP), acredita que se encontra a fórmula (ou fórmulas) que poderia solucionar diversos problemas da sociedade. Fórmulas essas que, tal como já frisado por Aurora Carapinha, não são novas para a profissão. “O que hoje se fala de conforto climático, de sequestro de carbono, da economia circular, da economia verde… tudo isso são temas que para os arquitetos paisagistas não são novos, porque estão implícitos na sua própria prática há muitas décadas”, esclarece o dirigente. E, agora, a pergunta de “milhões”.
Porque é que essas tais soluções não foram aplicadas e esses tais alertas escutados? “Porque a prática da arquitetura paisagista não se compagina com aquilo que é a agenda dos decisores políticos e económicos, ela está sistematicamente a ser protelada em função de outras prioridades”, em especial, prioridades economicistas, que não têm uma visão complexa e de longo prazo como a profissão assim exige, denuncia Ceregeiro. Porque construir uma praça viável ou ordenar uma mata ou uma floresta poderá ter um custo no momento presente que só será “devolvido” dali a décadas, e nem sempre se trata de um retorno financeiro – o que parece ser difícil de aceitar para uma sociedade que vive em torno do lucro.
A visão exclusivamente economicista e de prazo limitado é também criticada por Aurora Carapinha. Passemos a um exemplo. E logo dos mais complexos. “O problema dos incêndios é muito mais do que dizermos que há árvores demasiado perto das casas. É uma consequência de anos de desertificação do interior. E se quem vive lá é constantemente colocado à margem da sociedade e vive na pobreza, tem de procurar forma de subsistência, para a qual a solução foi, muitas vezes, a exploração do pinhal. É um rendimento fixo e a curto prazo que, de três em três anos, serve para subsistir a família e para pagar as contas extra. Não podemos simplesmente chegar a um local e arrancar de lá as pessoas ou tirar-lhes a forma de sobrevivência.” Por muito prejudicial que essa forma seja para o ambiente.
Aurora Carapinha considera que o arquiteto paisagista pensa “na complexidade social, económica, cultural, simbólica e ecológica da paisagem”, sendo muito mais do que plantar “a árvore certa”.
Uma disciplina, duas figuras
Mas nem sempre a desvalorização da profissão foi regra. Ceregeiro, presidente da APAP, recorda que “houve uma altura de maior abertura”. Logo nos anos 1940, com Caldeira Cabral, arquiteto paisagista que fundou o primeiro curso (não universitário, ainda) da disciplina, contribuindo para a evolução do trabalho em Portugal, alguma teoria e prática importante foi fundada.
João Ceregeiro refere em particular o lançamento da ideia de “contínuo natural”, que “tentava traduzir a permanência no desenho da paisagem dos elementos vivos, da vegetação, da fauna, do respeito pelas linhas de água, pelo solo, em contraste com tudo aquilo que eram as novas estruturas e o crescimento desenfreado das cidades”. Ou seja, já há 80 anos a arquitetura paisagista alertava para as consequências a longo prazo das construções de “avanço destruidor que não calculavam o impacto no sistema” e que não tinham em conta todos os elementos referidos. A história parece repetir-se nos dias de hoje, sendo ignorados alertas já antigos.
“Mais tarde, o professor Gonçalo Ribeiro Telles leva mais à frente o contínuo natural e introduz o conceito da paisagem global, a existência de um grande sistema integrador e multifuncional”, explica o profissional, que realça a visão nacional trabalhada na altura. “Aí começou a haver a necessidade de falar do imperativo ordenamento da paisagem”. Há ainda, nos anos 1980, e com revisão em 2014, a criação da Lei de Bases do Ambiente, um marco “importantíssimo” no entendimento de Ceregeiro, mas que, atualmente, se encontra desatualizado e “esvaziado de conteúdo”, sendo necessária uma revisão.
Onde estão os dados?
Atualmente, no entender do arquiteto Ricardo Camacho, responsável pela comissão de sustentabilidade da Ordem dos Arquitetos e um profissional com trabalho em ligação com a arquitetura paisagista, para que a disciplina desempenhe a sua complexa função, é necessária a existência de dados. Muitas vezes inexistentes. “Se pegarmos nos territórios que têm tido mais incêndios e os quisermos analisar, o que sabemos sobre eles? Não sabemos.”
O arquiteto afirma que “não se pode falar de mitigação de alterações climáticas sem falar de análise de dados em grande escala”, o que, em Portugal, “ainda é feito com recurso a sistemas muito rudimentares e que não dão as respostas que a arquitetura paisagista necessita para realizar o seu trabalho”.
Ainda na onda do que de errado acontece atualmente, Aurora Carapinha refere o “excesso de especialistas”. “Caldeira Cabral dizia que somos os especialistas de generalidades, ou seja, tenho uma formação complexa com a qual consigo compreender a linguagem dos especialistas, quer seja um botânico, agrónomo, economista ou antropólogo, e depois tenho a capacidade de agregar todos esses conhecimentos para chegar a uma solução” – o que, num Mundo em que as especialidades são cada vez mais prezadas, e em que cada um trata apenas do assunto do seu entendimento, é uma raridade.
Um bom jardim. Uma má praça
Ao longo dos anos, há, ainda assim, exemplos de boas práticas e aplicações da disciplina. Uma delas, referida por todos os profissionais contactados pela “Notícias Magazine”, e que toca no nome de um dos grandes da profissão, é o Jardim da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, desenhado pelos arquitetos paisagistas António Viana Barreto e, lá está, Gonçalo Ribeiro Telles.
E se o leitor já teve a oportunidade de passear por este espaço, facilmente perceberá o impacte (positivo) que a arquitetura paisagista pode ter para ajudar o ser humano a lidar com fenómenos naturais extremos. Por lá nunca faz demasiado calor nem demasiado frio, as cheias nunca foram um problema (mesmo o jardim estando construído em cima de um parque de estacionamento subterrâneo) e a natureza, desde peixes, patos, pássaros aos bichos mais pequenos, convivem em harmonia com os visitantes diários.
Mais adiante, e, construído recentemente em articulação com o jardim anterior, está a renovada Praça de Espanha, que Aurora Carapinha realça como um dos casos mais recentes de sucesso, depois de já dois invernos em que suportou as chuvas intensas e períodos de cheias pela cidade. A norte, a docente da Universidade de Évora elogia o Parque Central da Asprela, também com resultados positivos em período de cheias. Estes exemplos, realça, “foram feitos em estreita ligação com arquitetos paisagistas – o que nem sempre acontece – e os resultados estão à vista”.
O que não corre bem
Quando os seus colegas de profissão não são chamamos a intervir, acredita Aurora Carapinha, raramente o resultado é positivo, quer se esteja a medir no imediato ou daqui a 70 anos. “É o caso do projeto ‘Uma Praça em Cada Bairro’ da Câmara de Lisboa, que está a desenvolver alguns dos projetos sem o trabalho de um arquiteto paisagista.” E, alerta, as consequência desta criação de praças e jardins sem planeamento do espaço público poderão aparecer apenas a médio ou longo prazo, como cheias, impacte na biodiversidade local ou excessiva necessidade de manutenção, entre outros possíveis problemas.
Para Ricardo Camacho, da Ordem dos Arquitetos, é o caso do novo parque urbano da Lapa, no Porto, ainda em construção, o mais grave. “Se a Praça de Espanha pegou num local impermeável e o tornou algo aprazível à vida, este projeto é o contrário”, diz o arquiteto. Ao tratarem-se atualmente de terrenos baldios, “com plantas e valor de biodiversidade”, que será convertido num espaço apenas para atividades humanas, “o que é que vai acontecer ali de relevante para a natureza daqui a 70 anos?” O profissional sublinha um aspeto em particular: “A relva vai ser privilegiada e isso vai usar muita água”.
Mas há, também em grande escala, erros que são frequentemente cometidos. “Quando estamos a transformar terrenos de pastagem em monocultura, a ideia de ter ali uma árvore parece melhor para o ambiente, mas não é, principalmente porque a pastagem tem a capacidade de gerar alimento e isso tem de ser tido em conta.” O responsável pela comissão de sustentabilidade fala ainda da “distância necessária entre árvores numa reflorestação”, raramente cumprida. Em particular, “a reflorestação de Pedrógão não tem respondido a esta questão, porque não deve haver um Arquiteto Paisagista à frente do projeto”. “Quando uma empresa se propõe a plantar mil árvores, pode não haver qualquer valor ambiental nisso”, exemplifica.
O paisagismo das pequenas coisas
Falamos em cheias e incêndios, mas não é apenas em grande escala que esta profissão se propõe a fazer a diferença. Também num pequeno terreno, num jardim interior ou num terraço, o arquiteto paisagista pode (e deve) ser chamado. “Se parece claro que chamamos um arquiteto para planear a nossa casa, porque é que não o é para um jardim?”, questiona Aurora Carapinha. E a intervenção deve começar prontamente, até para a escolha do local a construir ou da posição da construção – uma vez que tudo isso influenciará a forma como a casa irá reagir aos fenómenos climáticos.
Para João Bicho, arquiteto paisagista, a falta de literacia ambiental – “em que tantos pensam que a profissão se baseia em saber plantar couves” – leva à desvalorização profissional e é, em primeiro lugar, consequência das próprias políticas. “Para qualquer construção é exigido um projeto arquitetónico, mas as regras não são iguais para os espaços exteriores. Não há a exigência de um projeto de arquitetura paisagista.”
Dando um exemplo em escala média para indicar as potencialidades da profissão em pequena escala, João Bicho refere as árvores numa rua. “Muitas das vezes assistimos a situações de podas intensivas em espaço urbano que são consequência de erros de base, em que a escala da vegetação não está toda adequada ao tamanho do passeio.” Ou seja, situações em que, para um pequeno passeio, de dois metros, temos uma árvore que chega aos 20 metros de altura.
“O tronco vai levar à inutilidade do passeio e a folhagem vai obrigar a uma poda constante e consequentemente a mais gasto com manutenção .” É estarmos “artificialmente” a querer manter uma árvore num sítio na qual ela não cabe. Se um arquiteto paisagista pensar a rua, irá escolher o tipo de árvore adequado ao espaço, além de planear o melhor posicionamento da mesma e o espaçamento, entre outros aspetos. Isto poderá ser aplicado num pequeno espaço privado, explica, “no qual o arquiteto paisagista pode ajudar o cidadão individual a poupar em manutenção e recursos e a tirar o máximo proveito de um quintal ou de um terraço”.
A ligação à arquitetura
João Ceregeiro falou da incompatibilidade de agendas com a política e a economia para que, em grande escala, a arquitetura paisagista não fosse ouvida. Mas e o que falta para que este trabalho seja valorizado a nível individual ou em pequeno escala? Uma valorização dentro da própria área, acredita o presidente da APAP, em particular um vínculo mais estreito entre arquitetura paisagista e arquitetura. Essa problemática é aliás referida por outros profissionais da disciplina.
Ricardo Camacho, “do outro lado da trincheira”, corrobora a narrativa. “Gostava de dizer que as duas áreas trabalham juntas, mas não vejo que assim seja.” A causa? A arquitetura capitalizar em si “a visão egoísta de que consegue atender a todas as necessidades”. Houve já momentos (nos tais anos 1980 considerados áureos pela própria arquitetura paisagista) em que as duas profissões andaram de mãos dados. “Mas esse processo foi burocratizado e perdeu-se isso.” Um exemplo desta falta de ligação, levantado por Ricardo Camacho, é o facto de a educação da Arquitetura Paisagista estar fortemente presente nas escolas de agronomia e raramente ter destaque nas de arquitetura.
Também Avelino Oliveira, arquiteto e candidato à presidência da Ordem dos Arquitetos, reconhece como fundamental a ligação entre as disciplinas, “para ganho de ambas”. “Mesmo que a integração na nossa Ordem não seja o caminho a seguir, é impreterível que se criem mecanismos para fomentar o trabalho em equipa da arquitetura e da arquitetura paisagista”, indica o profissional que, alerta, “este trabalho de ligação deve ser feito a nível institucional e formal e não apenas com laboratórios”.
Para João Ceregeiro, uma das soluções para a constante desvalorização da profissão que preside seria os decisores políticos atenderem ao pedido da APAP de formar uma Ordem Profissional, o que “permitiria fazer determinadas exigências” que outros semelhantes têm. E, acima de tudo, colocaria a profissão, diz, num patamar de reconhecimento – para que, finalmente, talvez, fossem ouvidos, antes que seja (mesmo) tarde de mais.