Joel Neto

Um elo com o paraíso


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Eu apenas consegui mantê-lo vivo. Todos os dias lhe salvava a vida, embora só enquanto ele o quisesse. Até que não quis.

Agora acontece-me olhar para o Gauguin, o whippet fulvo tigrado a que vimos reduzida a matilha, e pensar: “Este bicho é tão bom, tão brando e fácil de manter, que nunca lhe dei o valor”. Em Setembro junta-se-lhe a Colette, whippet também, e desta vez a ideia já foi clara: encontrar outro cão tão bom como ele. O futuro promete. Mas a verdade é que, se me sento a escrever, a primeira coisa em que penso ainda é no Melville.

Soube que o Melville ia morrer no dia em que tomei conhecimento do sexo do meu filho. Uma hora antes, demos um último passeio, e ele próprio tentou dizer-mo. Nunca me olhou nos olhos, a mim ou à Marta. Não bebeu água, não latiu aos outros cães, não puxou a trela: fez tudo o que pôde para nos poupar, e só vacilou na sua determinação quando a Andreia lhe pôs um açaime e o auscultou. Então, encostou terrivelmente a cabeça à minha perna – e apertou-a. Foi o seu momento de fraqueza. Dali a instantes levaram-no lá para dentro, com prognóstico dito “em aberto”. E, é claro: fizeram-se todos os tratamentos, análises, ecografias, transfusões. Mas no fundo todos sabíamos que o prognóstico estava era fechado.

Não foi um bom cão, mas foi o melhor. Era desprovido de ciúmes, qualidade que eu não conhecia. Nunca se deixou civilizar. Nunca. Nunca. Tirou-me anos de vida. Mas também me ensinou tudo o que sei sobre a Natureza, a física e até a humana, e sem ele – deitado anos a fio sob a minha secretária – ainda ninguém teria lido um livro meu. De resto, lutámos ambos contra a índole um do outro, e só ele venceu (às vezes). Precisava de um dono melhor. Eu apenas consegui mantê-lo vivo. Todos os dias lhe salvava a vida, embora só enquanto ele o quisesse. Até que não quis.

E agora não serve de nada dizer que estava doente, que ainda antes de destruir uma porta para se envenenar com o polímero dos enchimentos já tinha as bioquímicas de pernas para o ar e sintomas neurológicos alarmantes. Ele sempre teve bioquímicas e sintomas, e eu cheguei sempre a tempo. Simplesmente, também foi durante anos o cão de uma casa sem filhos, o que é mais do que se devia pedir a um animal. Entretanto, a sua missão esgotara-se: não lhe restava senão sair. Era um cão verdadeiro a esse ponto. Ele cheirava aquela barriga. Observava-a. Tocava-lhe. E, além disso, tinha de estar muito cansado.

Enterrei-o no canto mais bonito do jardim, numa matinha, rodeado dos cheiros da minha infância. Estar ali a abrir a terra, com o seu corpo ao lado, ajudou-me. Uns dias depois ofereci-lhe uma lápide com um azulejo, que o Gauguin vai farejar. Com ela aprenderão os meus filhos sobre a morte. As crianças já não conhecem a morte – nem os avós vão ver. Até isso fico a dever ao meu cão. O meu primeiro cão.

Agora, é tempo de celebrar o Gauguin e a Colette. Receberemos juntos o Artur: nós os três e a Marta, que trouxe o sol. Mas o facto é que ainda sinto o calor do Melville na minha perna. Gostava que tivesse sido o primeiro cão do meu filho também. Teria sido péssimo nisso: todo ele era impulso – seria uma vertigem. Felizmente, o Artur ainda foi o primeiro menino dele.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)