Quando o pai é pai a dobrar

Luís Borges adotou três crianças com o ex-marido, Eduardo Beauté, que entretanto faleceu, e na hora do vazio vestiu a capa de super-homem para educar. Paulo Pires fez uma escolha de vida: adotou sozinho um menino. Nuno Marçal perdeu a mulher num acidente automóvel e virou pai e mãe. João viu a vida dar uma reviravolta quando a mulher abandonou a casa e os filhos. São famílias monoparentais no masculino. Uma minoria no mundo da parentalidade.

“Acho que é um bocado ofensivo quando me dizem que tivemos muita coragem.” Luís Borges não aveluda as palavras, carrega-as inteiras. Mesmo assoberbado de desafios e dúvidas, pouco deixa espreitar de fragilidade. Aos 34 anos, é modelo, empresário e muito mais do que isso: é pai a solo. De três, a conta que Deus fez. A coragem que lhe elogiam? É por ter adotado três crianças – o primeiro Bernardo, 12 anos, com Síndrome de Down, e depois Lurdes, 10, e Eduardo, 7, da Guiné-Bissau – com o então marido, o cabeleireiro Eduardo Beauté, que entretanto faleceu, já depois de estarem separados.

“Adotar tem a ver com amor, pelo menos para mim que também fui adotado, pouco interessam as características físicas. Por exemplo, quando o Bernardo apareceu na minha vida, é claro que ter trissomia 21 me sensibilizou, mas o que senti por ele foi maior que tudo isso.” Ofende-se pela bravura que diz não ter e é duro no discurso. “Isto não foi uma coisa pensada, no sentido em que não decidimos adotar um menino deficiente e duas crianças pretas. Adotámos porque criámos uma ligação com eles e sentimos que fazia sentido.”

Desde 2019, quando perdeu o ex-marido com quem os filhos viviam (passavam os fins de semana com Luís), a paternidade agigantou-se, no meio da turbulência de um vazio por preencher. E até podia temer, mas agarrou a nova realidade com as duas mãos. Nisto de educar sozinho, não sobra tempo para lamúrias. “O desafio maior é ter que lidar diariamente com todas as questões deles. A Lurdes já tem dez anos e qualquer dia tem o período e vou ter que tentar explicar com a maior leveza e abertura. É duro tomar conta de três, sem dúvida, até porque são todos muito diferentes.” Uma dureza que cresce, sabe bem, de mãos dadas com tudo o que vem a reboque e que bem tenta aligeirar. “O facto de a Lu e o Edu serem negros, de o Bernardo ter trissomia 21, de serem adotados, de terem dois pais, claro que é difícil. Os miúdos na escola dizem-lhes coisas que não são bonitas, e é triste, mas é impossível protegê-los de tudo.”

Uma rede na retaguarda ajuda-o a equilibrar a balança entre os compromissos profissionais, que tantas vezes o obrigam a viajar, e a paternidade. Tem uma ama a tempo inteiro e um círculo apertado de amigas – Alice, a modelo Sara Sampaio e a modelo e atriz Ana Sofia Martins – a quem recorre quando as dúvidas batem à porta como um vendaval. Como quando os filhos já dão sinais de perceberem a fama do pai. “Todos os pais têm medos. Será que os devo meter de castigo? Será que estou a fazer bem? Mas quando olho para os meus filhos, percebo que são felizes. Hoje, trabalho para eles e sou um sortudo por ter estes três pestinhas na minha vida.”

Há 82 mil famílias monoparentais no masculino

Os dados definitivos dos Censos 2021 só são divulgados no último trimestre deste ano, mas segundo informação disponibilizada pelo INE obtida a partir de outro estudo, no ano passado havia mais de 450 mil famílias monoparentais em Portugal. Dessas, 82 mil eram de pais a solo, bem menos do que os casos de mães a solo (370 mil). E os desafios de famílias monoparentais no feminino e no masculino são diferentes? “A ideia de que um homem que está a cuidar de filhos sozinho tem, à partida, uma desvantagem quase biológica em relação àquilo que é o papel de uma mulher, que é naturalmente cuidadora, está-se a esbater. Mas, às vezes, os homens lidam com essa dúvida, tem a ver com as construções sociais de género”, aponta Pedro Frazão, psicólogo e terapeuta familiar na Associação Casa Estrela-do-Mar. Os processos de divórcio são um exemplo claro da evolução social neste campo: os tribunais hoje dão primazia à guarda partilhada e os casos de guarda única já são a exceção à regra, “o que mostra que um homem naturalmente é capaz de cuidar de uma criança”.

Na hora de educar sozinho, as lutas são afinal as mesmas, independentes do género. “E aí o que sobressai tem muito a ver com a rede de apoio, nomeadamente da família alargada, amigos, que vai desde o suporte logístico até ao apoio emocional para os desafios que vão surgindo.” E são muitos, não há um par com quem debater decisões, o peso financeiro adensa-se, gerir trabalho, horários da escola e tarefas domésticas complica-se. Porém, nem tudo são adversidades. “O lado bom é o processo de ligação humana entre criança e adulto que se cria e o caráter nutritivo que isso tem para ambos.” E a ausência de uma figura feminina, acredita o terapeuta, há muito que, socialmente, não é questão. “As figuras que surgem como referências na construção da nossa identidade vêm de diversos contextos. Há tias, avós, primas, professoras.” Um conjunto de pessoas-modelo para lá das portas de casa.

Adotar sozinho, uma escolha de vida

Ainda no campo da adoção, Paulo Pires, 46 anos, não quis cortar as pernas aos sonhos quando ser pai sempre foi objetivo de vida. Enfiou todos os medos possíveis numa gaveta e avançou com uma candidatura singular. Não dá para esquecer o ano da decisão: 2011. “Sempre quis ser pai, até de mais do que um. Estava sozinho e não ia esperar para estar com alguém para adotar.” Ser pai a solo foi uma escolha preparada. Quatro longos anos, uma jornada penosa de espera, e o Henrique, que é de Cabo Verde, caiu-lhe nos braços em 2015, tinha três anos, numa felicidade embrulhada na metáfora de um recém-pai que ganhava aí o Euromilhões. Do processo, entre avaliações que esmiúçam a vida e tantas formações, uma certeza: Paulo nunca se sentiu discriminado nem por ser candidato singular, nem por ser homossexual. “Sabia dos riscos, vejo pelos meus amigos que ele tem um conjunto de questões que os filhos deles não têm, desde logo por ter estado institucionalizado. Mas a partir do momento em que vi a foto dele, só queria que me amasse.”

Henrique esteve três anos numa instituição até Paulo Pires, que vive em Lisboa, o adotar sozinho. Adora jogar PlayStation e viajar com o pai. Em julho, vão mudar-se para Madrid, para viverem juntos uma experiência internacional
(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

Um grupo no WhatsApp com amigos e família foi a morada segura para um homem solteiro que acabava de receber um filho em casa partilhar as dúvidas mais absurdas e banais. E a vida nunca mais voltaria a ser a mesma. “Antes, jantava às 21 horas, ia ao ginásio às 22. E de repente tudo mudou. Passei a jantar às 19.30 horas, a adormecer às 22. Se ele tinha dores, ia a correr ao médico. Se ele adormecia no carro e estava a chover, entrava em pânico sem saber como o levar para casa sem o acordar.” Henrique já tem nove anos e o pai tem dúvidas nenhumas: “Ele trouxe-me uma alegria muito grande, preenche a minha vida.”

Paulo é matemático, dá explicações, e terapeuta de medicina chinesa em Lisboa, uma flexibilidade de horários que lhe facilita os dias numa agenda “Henricócentrada”. Organiza a vida consoante os horários do filho e corre para a escola a buscá-lo o mais cedo possível. “Confesso que já ultrapassei as dúvidas se estarei a fazer tudo certo. A maior dificuldade que tenho é que outros adultos entendam o facto de ser solteiro e ter um filho. De o Henrique ter só um pai. Acho que a sociedade aceita melhor uma mãe sozinha.” Na cabeça do filho, isso não é questão, está bem resolvido, mas o Dia da Mãe é um problema, que Paulo tenta colmatar com a avó e com a madrinha (e muitas escolas já adaptam a efeméride para um dia dedicado à família a pensar nestes casos).

Ainda assim, o lado bom de viverem um para o outro, esse, é maior do que tudo. Em julho, vão mudar de país, vão viver para Madrid. “Vamos ter uma experiência internacional durante três anos. E simplesmente decidi, não tenho que dar cavaco a ninguém.” Desde o primeiro dia que viaja com o filho, de fraldas e bagagens cheias às costas. Como bom matemático que é, os cálculos estão feitos, não deixa o destino ao acaso. E pouco teme o futuro: “Só gostava que ele fosse feliz”.

Desafios, riscos, benefícios

Segundo Sofia Ramalho, especialista em psicologia da educação, a parentalidade “depende muito mais da qualidade da relação do que propriamente se a figura parental é feminina ou masculina”. À parte disso, admite que uma adoção monoparental traz desafios acrescidos, “a relação é construída a partir de uma experiência de vida prévia da criança, que vem de uma situação de adversidade, e isso é desafiante para um pai sozinho”. Mas, se a criança se sentir desejada e se o pai servir de modelo positivo, “tem tudo para dar certo”, até porque “nas instituições de acolhimento as crianças têm várias referências de adultos, e muitos progenitores dispersam muito nos significados do que é uma relação parental, só o facto de passar para um progenitor único já é uma mudança positiva”.

Se alargarmos o leque a todas as famílias monoparentais, a psicóloga divide-se entre os riscos e os benefícios. “Por um lado, há menor apoio emocional, o progenitor está mais sozinho, não tem com quem negociar estratégias de educação. E também há menor suporte emocional e menos modelos a seguir para o filho, porque não há dois progenitores.” Por outro, é possível que a relação que se cria, neste caso, entre pai e filho seja mais forte, mas, avisa, “isso também pode diminuir o espaço para desenvolver a autonomia”. E, claro, há mais fatores de stress, “um só elemento tem que providenciar segurança, bem-estar, saúde, dar respostas às rotinas, dar de comer, dar banho, ir buscar à escola, não dá para dividir tarefas”.

Contudo, os riscos, assegura, podem ser geridos de forma adaptativa e gerar bons resultados. “No caso de uma viuvez, a ligação única que se cria entre o pai e a criança, de mútuo apoio, pode ser ela própria curativa da experiência de luto e daqui haver a construção de uma relação muito positiva.”

Da perda nasceu um laço por inteiro

Nuno Marçal, 47 anos, sabe-o bem. Absorvido por um trabalho que vive com o fervor de uma paixão – trabalha numa biblioteca itinerante em Proença-a-Nova há 15 anos -, a esquecer-se muitas vezes de se fazer perto, foi quando perdeu Françoise, a mulher, para um acidente automóvel, que a vida sofreu um solavanco que só haveria de encontrar o caminho da reconstrução. “O laço que criei com o meu filho provavelmente nunca teria criado se isto não tivesse acontecido.” Foi em agosto de 2020 que Nuno se viu forçado a ser “pai e mãe, tarefa bem exigente”, no meio de um labirinto de emoções, com o filho enfiado num hospital. Tomás estava no carro com a mãe quando aconteceu o acidente fatal, passou meses internado, muitas cirurgias e reabilitação depois já é independente no caminhar, apesar de ainda coxear e manter fisioterapia regular.

Tomás perdeu a mãe num acidente automóvel aos 11 anos e desde então criou uma ligação muito forte com o pai. Já está às portas da adolescência e a reclamar mais autonomia, um dos maiores desafios para Nuno Marçal
(Foto: Pedro Reis Martins/Global Imagens)

“Ele está a reconstruir-se e a ajudar a reconstruir-me a mim.” Nuno sentiu o tapete a fugir-lhe dos pés, virou pai sozinho, não é coisa que alguma vez tenha imaginado. Segurou as pontas e é pouco dado ao discurso do coitadinho. Não se assustou com as lides domésticas, sempre cozinhou e dividiu tarefas, limpa, gere a roupa, só não suporta engomar. A mãe é uma ajuda. Todos os dias, deixa Tomás na escola, em Castelo Branco onde vivem, e percorre 50 quilómetros até Proença-a-Nova. Ao fim do dia, o avô vai buscar Tomás, às vezes também são as mães de outros colegas a ajudar. “Os amigos são uma base de apoio fundamental e têm sido inexcedíveis.”

Tomás já está com um pé na idade do armário, 13 anos, às portas da adolescência, o maior desafio. Entre disputas matutinas sobre que roupa levar para a escola, Nuno luta contra as inseguranças de quem não sabe, nem nunca há de saber, se está a fazer tudo certo. Nessas alturas, partilha com amigos. “Ouvi, uma vez, uma expressão na apresentação de um livro: coragem ternurenta. E acho que é exatamente isso.” Há momentos “terríveis”, em que a estrutura abana, mas também há coisas boas, e são tantas. “A independência na decisão. O laço que criei com o meu filho, que não tínhamos.” E a certeza de que quer ser um pai presente e menos rígido do que o que tivera. “Só que filho és, pai serás. E dou por mim a ser duro em coisas que não deveria ser. Será que estou a ser demasiado ríspido? A responsabilidade só minha, não há dúvidas, é um grande peso.”

E ao da responsabilidade junta-se o peso financeiro. “Recebo pensão de viuvez e a Françoise incutiu-me a disciplina económica e financeira. Consigo gerir bem, tudo o que gasto é com critério. Às vezes, ele pede-me sapatilhas de marca, há momentos em que a resposta é sim, outros em que é não.”

A mãe não é assunto tabu, entra na conversa quando cozinha uma comida de que ela gostava, quando vão passear aos seus lugares favoritos, quando Tomás lhe pede para dormir com uma camisola dela. Um conselho da psicóloga. “Está a ser um processo longo. Mas a coragem ternurenta tem sido um combustível tremendo.”

Quando não é uma opção

Um processo que se faz de vinculação e que até pode significar mais liberdade. “Os casais nem sempre estão de acordo nas decisões que querem tomar para os filhos, coisas simples como em que escola vão estudar, que desporto vão praticar, como gerir a rotina. Nestes casos, não há conflito na decisão”, sintetiza Filipa Costa Macedo, psicóloga e terapeuta familiar. Mas, quando ser família monoparental não é uma decisão, “as exigências que tinham pensado para dois, ficam a cargo só de um e estes pais vão ter que assumir funções, tarefas e decisões que nunca pensaram ter que assumir”.

É o regresso ao quilómetro zero na paternidade e “a razão pela qual não há uma mãe deve ser sempre abordada, conversada devagarinho, porque a criança vai sentir essa diferença”. Há que sublinhar um aspeto positivo: já há muitas famílias, incluindo monoparentais, a pedirem ajuda a psicólogos, terapeutas familiares antes de chegarem a grandes estados de conflito. “A maioria chega-nos através de recomendação das escolas ou dos pediatras. Mas chegam. E isso é muito bom.”

A verdade é que os homens “foram educados para serem pais, para aspetos que por tradição estão associados a cada um dos géneros, para aquilo que um pai deve ser e isso pode ser um obstáculo se ficarem muito agarrados a essas ideias”. E, aqui, a forma como se foi filho também “tem uma influência muito grande”. “Se calhar, as dúvidas e os medos que vão ter podem estar relacionados com as expectativas que tinham em relação a si enquanto filhos.”

Certo é que, quando se é pai sozinho, ainda entra a pressão social, gerir “as expectativas do exterior em relação a eles”. “E para uma família monoparental masculina, poderá haver uma maior pressão para que encontre outra pessoa, uma outra entidade no casal, mais do que numa família monoparental feminina.”

A sensação de abandono, o renascer

João (nome fictício) conhece a sensação, os filhos bem o pressionam para que ele encontre alguém, que refaça a vida. Mas comecemos pelo princípio. No final de 2019, teve de aprender quase tudo do zero. “Foi uma mudança drástica, não me passava pela cabeça passar por isto. Foram 25 anos de casamento, estou a recuperar. Mas tenho descoberto muita coisa.” Os dois filhos já adultos, com mais de 20 anos hoje, ajudaram a aliviar uma dor que podia ser maior. A história é um ziguezague de mágoa, que deixou mossa, e que ele tenta resumir. “Há uns sete anos, foi diagnosticada uma doença rara ao meu filho mais novo. Na altura, a perspetiva era mais sombria, o que não se veio a confirmar. Ele hoje tem uma vida perfeitamente normal.” Mas a pressão que isso carregou para a família foi um gatilho que acabou com a mulher a sair de casa e a desligar-se dos filhos. “Para ela, foi muito mais difícil de gerir e aceitar. As coisas começaram a piorar, começou a haver um distanciamento.” E extremou-se ao ponto de a mulher se divorciar não dele, mas de toda a família. Um abandono mascarado de separação.

João ficou sozinho com os filhos, comprou-lhe a parte da casa que lhe pertencia e foi forçado a renascer. “O mais velho já trabalha, o mais novo está a tirar o curso. Mas, na altura, tive que assumir as despesas todas, a universidade, a carta de condução. Tinha uma vida estável e tudo mudou.” Até as tarefas domésticas, que pouco sabia. Começou a ir ao supermercado, a cozinhar todos os dias, a limpar, a passar a ferro, a mudar os lençóis das camas, a gerir a casa sozinho. Chegava a ligar à irmã a perguntar temperaturas de lavagem da roupa, a ficar a pé até às tantas da madrugada para organizar tudo para o dia seguinte. “No início, pensei, e agora? Mas fui aprendendo.” O tempo e o dinheiro encurtaram, sacrificou jantares com amigos, vida social. “Antes era pai, passei a ser pai e mãe. Vivo mais apertado e tive que canalizar mais tempo para as questões da casa, mas tudo se consegue. Isto ajudou-me a ver a vida noutra perspetiva, a estar preparado para tudo.”

E agarrou-se aos filhos com a força do amor de um pai que nunca teria conhecido não fosse a vida pregar-lhe esta partida. “Brinco muito mais com os meus filhos, somos muito mais unidos, falamos muito mais, fazemos tudo juntos. Só vão de férias se eu for com eles. Houve uma aproximação incrível. Sei que hoje vivo muito mais com os meus filhos.”

82 mil famílias monoparentais no masculino em Portugal
Os dados definitivos dos Censos 2021 só são divulgados no último trimestre deste ano, mas segundo informação disponibilizada pelo INE obtida a partir de outro estudo, no ano passado havia mais de 450 mil famílias monoparentais no nosso país. Dessas, 82 mil eram de pais a solo, bem menos do que os casos de mães a solo (370 mil).