Paulo Futre: “Ainda tenho um sonho no futebol”

Não há susto cardíaco que altere a dimensão humana de Paulo Futre. A empatia, a lisura, a boa educação. A autoironia e a vontade de ser feliz. Eterno miúdo do Montijo, deseja ser avô e receber os netos na casa em que nasceu. Um dos melhores jogadores portugueses de todos os tempos, um dos melhores futebolistas mundiais da sua geração, em braço de ferro com o tabaco, acorda cedo. A dançar.

Já com o microfone colocado, alinha-se na cadeira e fita a câmara. “Estou com boa pinta?” Três décadas depois, ainda há nele traços do rapaz ao volante do Porsche amarelo. Paulo Futre, apesar das recentes adversidades, continua a ser uma festa.

Chegou às Torres de Lisboa às onze da manhã. Vem da consulta de rotina tranquilo e disponível. Foram muitas as selfies até chegarmos aos estúdios. Sorriso aberto, posa uma e outra vez. Genuinamente simpático. Trouxe com ele Lúcia, uma das quatro filhas de Vera, a mulher com quem vive há mais de uma década. “Detesto a palavra padrasto. É tão feia.”

Ao longo de hora e meia, a resposta em balanço castelhano foi sempre pronta. Tão pronta e tão rápida quanto a finta canhota que o celebrizou.

Deixou mesmo de fumar?
Nem uma passa, juro, mas é uma guerra terrível. Ao fim do dia, sou uma autêntica granada.

Como resiste?
De cada vez que me apetece fumar, conto 15 minutos. E a verdade é que a ansiedade abranda. Mas não posso mentir. É terrível.

Há quem diga que o Paulo até no intervalo dos jogos fumava.
É só mito. Durante toda a minha carreira, fiz assim: 12 cigarros à terça, dez à quarta, oito à quinta, seis à sexta, quatro ao sábado e um ao domingo, após o almoço. Depois do jogo, todos. Segunda-feira, todos.

Todos eram quantos?
Um maço. Que passaram a dois maços, depois de me retirar. Até que, nos cinco dias anteriores ao enfarte, fumei quatro maços por dia.

Vinte maços em cinco dias. Ninguém aguenta.
A minha mãe tinha acabado de morrer. Foi numa quarta-feira. Nesse mesmo dia, disseram-me que teria de ser autopsiada e, portanto, que só seria enterrada na semana seguinte. Fiquei cego. Sei que não é desculpa para os quatro maços, mas foi assim. Quatro dias sem falar com ninguém. Isolado, sem parar de fumar.

No dia 21, passaram três meses sobre o episódio. Como são agora os seus dias?
Levanto-me cedinho, sete, oito da manhã. Hoje, por exemplo, tive consulta no hospital.

Como está?
Já na fase de recuperação. Os treinos bidiários que vou agora iniciar irão ajudar-me a perder os 10/12 quilos que engordei, e a ansiedade. Os treinos são basicamente caminhadas com supervisão do hospital duas vezes por semana.

É desde criança muito irrequieto.
Um vulcão.

Isso. Como controla a sua natureza?
Perto das nove da noite tenho de tomar um comprimido para dormir. Se tenho muita ansiedade durante um dia, tomo um calmante, um ou dois, mas normalmente às dez da noite estou a dormir porque acordado pareço uma granada. É mau para mim e para os outros.

E as manhãs?
Quando acordo sou o homem mais feliz do Mundo. Ando apaixonado pelos Måneskin, uma banda de hard-rock italiana e, portanto, mal acordo começo a dançar. Pena não existirem discotecas abertas de manhã. (Ri)

Intermediar negócios de jogadores não é demasiado stressante?
Por isso é que nesta fase a partir das sete da tarde desligo. Sabe como sou ao telefone, sempre entusiasmado. Falo com o coração e a mil. Canso-me bastante. Já abrandei, mas continua a ser tremendo, sempre entre Lisboa e Madrid. Tenho de reduzir mais.

Como é a sua vida em Espanha?

Apesar da minha atividade, sempre nos bastidores, em Madrid tento descansar. Mas tenho tido compromissos a mais.

Mesmo no hospital parecia bem-humorado. Apesar do susto.
Depois de ter encontrado um salvador e do cateterismo deixei de estar assustado. Na ambulância sim. O peso que se sente no peito, no braço esquerdo, numa primeira fase dei murros a mim próprio, é insuportável. A certa altura, na ambulância, acho até que fui ao outro lado por segundos.

Os senhores da ambulância sabiam que levavam ali Paulo Futre?
Ainda não estive com eles, mas quero estar e vou estar. E também com o médico que me recebeu no Barreiro. Viu que era grave, estava ao meu lado, mas quando ligou para Setúbal disse apenas que tinha ali um homem de 56 anos que tinha de ser operado. De Setúbal, disseram que não havia vaga. Continuou sem dizer o meu nome. E eu, que preferia morrer a dizer que sou o Futre, um gajo que deu uns pontapés na bola, senti um orgulho tremendo em ser português. Porque aquele médico fez o que deve ser feito. Somos todos iguais.

Fez promessas?
No hospital prometi que passaria a usar o cabelo apanhado. É uma história antiga, com um amigo meu que era comando e grande admirador dos samurais. Costumava treinar com ele nas pré-épocas, no Algarve. A treinar, era um animal. Dizia-me: “Eu sou um samurai. Tu não. Os samurais são perfeitos. Tu fumas”. Portanto, agora que não fumo, acho que mereço este visual. Sei que o que me aconteceu não pode repetir-se. Sei que a minha vida a partir de agora tem de ser maravilhosa. Ainda nem avô sou.

De que sente falta, além dos cigarros?
De um bacalhau à Brás, com batatinha. De dois em dois meses, talvez possa comer um bocadinho, mas tenho fé em que a treinar vou perder apetite. Tenho saudades de café. Amava. Agora, é descafeinado com leite. Adorava café. Em contrapartida, como disse, nunca fui tão feliz de manhã.

Essa é a grande transformação?
A grande diferença que noto em mim é o meu mau humor a partir de certa hora. De tal maneira que só tenho duas hipóteses: ficar sozinho ou ir dormir. Que não me digam nada. Conforme a ansiedade do cigarro vai entrando em mim, só quero dormir.

A morte da sua mãe, recente, mas, sobretudo a do seu pai, há três anos, deixaram-no no papel de patriarca. Está preparado?
Sempre assumi um pouco isso. De tal maneira que sou e sempre fui o primeiro a saber das tristezas e das alegrias. Até das miúdas. Quando comecei a viver com a mãe delas, a mais velha tinha dez anos e a mais nova três. Sou o melhor amigo delas. Ressalvando sempre que elas têm um pai, que é, de resto, o meu cabeleireiro e um grande amigo meu. Inclusivamente, quando casou de novo, a cerimónia ocorreu na minha casa, em Madrid.

O que levará a que a maior parte das pessoas empatize consigo?
Talvez a humildade. Nunca ter esquecido de onde vim. Nunca ter esquecido três palavras. Obrigado e por favor. Mas sobre gostarem de mim, vá lá perguntar aos adeptos de Real Madrid. (ri) Todos os anos tenho propostas de Espanha para comentar em programas televisivos como adepto do Atlético de Madrid e nunca os aceitei. Sei que perderia toda a minha tranquilidade. Seria mesmo um inferno.

Na verdade, também não tem tido grandes desilusões com a humanidade.
Já tive algumas. Já levei com algumas ingratidões. E como levo a ingratidão muito a peito, quando acontece ponho uma cruz sobre a pessoa para a vida. O meu pai dizia que tinha mais respeito às baratas de que a ingratos.

Em criança, desejava ser astronauta. Aos 13 anos era bate-chapas.
Quando queria ser astronauta nem sabia bem o que queria dizer. Uma coisa é certa: não tivesse dado para o futebol e teria sido mecânico. Profissão muito digna.

Teria 13 anos quando escreveu, pela primeira vez, uma carta. Uma carta dirigida à namorada da altura. Disse mais tarde que foi a última vez que escreveu cinco ou seis frases seguidas antes de ser convidado, muitos anos depois, em 2004, para escrever na “Marca”, um dos maiores jornais desportivos do Mundo.
Foi uma carta a Cecília, a minha primeira namorada. A vida separou-nos, mas tivemos uma grande história. Essa carta tinha meia dúzia de linhas e lembro-me de pensar quando, em 2004, no Europeu de futebol, recebo um convite para escrever na “Marca”. Fui honesto com o diretor. “Olhe que eu não sei escrever. Sou analfabeto da escrita.” Combinou-se, então, que depois dos jogos transmitiria por telefone a um jornalista as minhas impressões. E que ele as escreveria.

Até ao jogo em que Portugal venceu os Países Baixos.
Mal acabou o jogo, liguei para o meu filho e ditei, de rajada. Metade em português, metade em espanhol. Mas com todo o coração. No final, percebi que o meu Paulinho estava comovido. Pouco depois, liga-me o diretor, igualmente emocionado. Escrevi na “Marca” até 2019. Continuo a escrever, agora no “Mundo Deportivo”.

E está na TVI.
A retomar, pouco a pouco. Durante o Mundial, vou falar diariamente dos jogadores portugueses e da fé tremenda que tenho. Acredito que podemos ser campeões do Mundo. Sonhar é grátis.

Que conselho daria a Cristiano Ronaldo?
Que pode fazer dois ou três anos em grande se pensar em ser só ponta de lança. Que deve deixar a ala. Mesmo não saltando o que saltava, Cristiano ainda salta mais do que todos os outros. E ainda pode fazer muitos golos. Gostaria muito de ver outra versão do Cristiano.

Que merece um jogador que abandona o banco, antes do final do jogo?
Ronaldo tem cinco bolas de ouro. Não é um qualquer. Mandar entrar um jogador a dois minutos do fim é procurar o conflito. É uma tentativa de humilhar. Se é para jogar dois minutos, o treinador ou não convoca o jogador ou não o põe em campo.

Voltando à TVI. Fez de si próprio numa telenovela.
Gostei muito. Comecei com duas frases e fui subindo. Dava-me uma pica imensa. Ter de decorar aqueles textos não foi fácil, mas achei piada a tudo. Gostava muito de repetir, agora na pele de uma personagem ficcional.

Faz de si muito bem. A autoironia é rara em Portugal.
Desde sempre. Cheguei muito jovem ao balneário do Sporting e sempre brinquei com as minhas características. Um miúdo desenrascado, muito enérgico. Habituado aos mestres dos barcos. O último barco saía de Lisboa às dez da noite e eu, onze aninhos, depois dos treinos, com uma fominha tremenda, comecei a ganhar a confiança dos mestres. Eles levavam jantar e guardavam sempre qualquer coisa para mim. Éramos amigos. Nas noites de temporal, viam que tinha medo e levavam-me para a cabina e acalmavam-me.

Ainda se lembras dos nomes e das caras deles?
De todos. Foram homens que me marcaram para sempre. O senhor Chico tratava-me como a um neto.

O que falava com eles na cabina?
De futebol. Às vezes deixavam-me pegar no leme. Adorava.

No seu quarto, em casa dos pais, divido da sala por uma cortina, havia uma cama e duas paredes cheias de fotografias. Destacava-se o Chalana.

O meu ídolo. A primeira vez que o vi jogar fiquei doido. Tinha sete, oito anos quando ele chegou ao Benfica. Talvez dez. Fiquei doido. Estava no Sporting e ia à Luz.

Ia ao rival.
Era engraçado. Chegava lá com o cartão da AF Lisboa, o porteiro metia-se comigo e eu “calma lá, que não venho ver o Benfica. Venho ver o Chalana”. O Chalana era um génio. Depois do Mundial de Espanha, com 16 anos, comecei a ter outro ídolo – o Bruno Conti; um sonho – jogar na Roma; e um Deus – Diego Maradona.

Lembra-se do momento em que conheceu o Chalana pessoalmente?
Como se fosse agora. Conheci-o na seleção, num jogo com o Luxemburgo, no Estádio do Bessa, já eu tinha 22 anos e era capitão do Atlético de Madrid. Enfim, era um jogador reconhecido. No entanto, o respeito e a admiração por ele era tão grande que eu tremia. Quando o cumprimentei tremia por todos os lados. Foi uma emoção imensa.

Chalana foi um deles, mas há muitos casos de ex-jogadores com problemas de ordem profissional e financeira. Como olha para isso?
Com preocupação. Não há ex-médicos, nem ex-advogados, nem ex-artistas plásticos. Mas há ex-jogadores de futebol. E 95% deles – para não dizer 99% – querem ser treinadores. E isto não dá para todos. Primeiro, é preciso que surja uma oportunidade. Depois, é preciso que essa oportunidade corra bem. Caso contrário, já vai ser um caldinho para arranjar trabalho. Quantos e quantos treinadores estão no desemprego. Isso é preocupante.

A alternativa é a direção desportiva. O Paulo foi o primeiro português a exercer esse cargo no estrangeiro.
Mas a questão é a mesma. É um cargo que depende muito da sorte. Depende muito da sorte. Um jogador de futebol tem de ser visto de outra maneira. Ao longo da minha carreira, encontrei jogadores com outros talentos. Uns desenhavam muito bem, outros escreviam muito bem. Tem de haver mais saídas para lá das de treinador ou de diretor desportivo.

Uma carreira de futebol obriga a deixar de estudar mais cedo. E isso é um problema.
Sim, isso paga-se. Quantos jogadores são licenciados? Hoje é mais fácil. Na minha altura eram dois ou três.

Nunca lhe apeteceu voltar a estudar?
Se pudesse voltar à fase em que tinha 15, 16 anos, sim.…Depois de deixar de jogar, não.

Tem que escolaridade?
O primeiro ano do Ciclo [atual 5.º ano].

Nunca quis ser treinador. Porquê?
Passei grande parte da minha vida com as malas às costas. Estive em nove clubes, em nove balneários. Nos últimos anos foi terrível, nem desfazia as malas. Quis fugir dessa instabilidade total. Mas tive grande experiência como diretor desportivo do Atlético de Madrid. Dei muitas palestras de motivação. E fazia-o bem. Era bom. Porque inventava. (ri)

Conte-me a primeira palestra.
Foi num dia 6 de novembro, o meu primeiro dia de trabalho. Estava numa pressão tão grande que nem dei os parabéns à mãe dos meus filhos, a Isabel, que faz anos nesse dia. A situação era a seguinte: se o campeonato terminasse ali, o clube terminava também. Ia para a Segunda B, o que significava o fim. Na véspera, um domingo, a equipa tinha perdido em casa com o Tenerife. Os jogadores não podiam ir à rua tal a contestação dos adeptos. Um inferno. O Salva (Ballesta), que era o ponta de lança, tinha dito na conferência de imprensa que para sairmos daquela situação terrível necessitávamos de “huevos”. De 5 para 6 de novembro não dormi. Cheguei ao balneário e ao fim de uma hora de palestra pedi ao Salva que repetisse o que tinha dito na conferência de imprensa. De que é que precisamos? De fato e gravata, puxei as calças para baixo. “Aqui estão os meus.” Ganhámos o jogo e ganhámo-lo à minha maneira.

Uma das suas paragens foi o Japão.
Bela aventura. Fui sozinho, mas uns tempos depois chegou o meu amigo César, que é o meu braço direito e o esquerdo. Começou bem: perdeu-se. Depois de passarmos dias a treinar os percursos, perdeu-se. Ficou de me ir buscar ao estádio e nada. Telefonei-lhe. Não fazia ideia onde se encontrava, apenas que tinha a gasolina na reserva. Tivesse ficado eu sem telemóvel e não fosse a ajuda de um intérprete e ainda hoje andava à procura do César.

Rodeou-se sempre dos mesmos, anos a fio.
Os meus amigos de sempre.

Não era fácil estar na sombra de um irmão tão talentoso. Acha que o seu irmão, mais velho, sentiu isso?
Devo muito ao meu irmão. Nunca teve ciúmes. Pelo contrário, estava sempre a proteger. Não podia ouvir falar mal de mim. Enquanto joguei, era duro para ele. Sobretudo, quando estava no F. C. Porto. Para ele e para os meus pais.

Falava do talento.
O meu irmão não gosta que eu diga isto, mas vou dizê-lo e pela primeira vez: o meu irmão está no futebol desde 2007, trabalha com três agentes e é talvez o português que mais jovens de valor captou. Jovens que renderam em vendas para o estrangeiro mais de 400 milhões de euros.

Os seus pais sempre quiseram ficar de fora.
Os meus pais nunca quiseram sair do Montijo. Aceitavam os meus presentes, mas com muita reserva. Uma vez perguntei-lhes se eles queriam um castelo e eles ficaram quase ofendidos. A minha avó paterna, sempre que eu vinha ao Montijo, já de Porsche, dava-me um presente. “Toma lá filho. Guarda.” E metia-me na mão 50 escudos. Agradecia e ela ficava tão contente.

Nunca duvidou do seu talento?
Duvidei, duvidei. A notícia de que o Sporting queria emprestar-me à Académica foi um balde de água gelada. O meu pai, que também tinha sido jogador, avisou logo. “Vais por um ano: depois, bate-chapas. E se passares abaixo da Académica, prefiro que vás para o Montijo e para a oficina já amanhã.” Dei-lhe razão.

Imagina a sua vida no Montijo, bate-chapas.
No início custaria porque tinha os meus sonhos. Queria ser jogador de futebol. Mas creio que teria sido igualmente feliz. Adorava o Montijo.

Teria tido mais tranquilidade.
Oh, quantas vezes, caramba, pensei nisso. Perante a pressão que sofri, as guerras, chorei muitas vezes. Houve alguns momentos em que quis abandonar. Em que pensei, “seja o que Deus quiser”.

Conserva a casa em que nasceu?
Claro. Na Avenida dos Pescadores. O meu irmão e eu estamos a pensar fazer o primeiro andar para um e o rés do chão para o outro.

A velhice será ali ou em Madrid?
Os meus filhos devem ficar por Espanha. Gostava muito de terminar os meus dias na casa onde nasci.

Há pouco falava de guerras. Qual foi a mais dura?
Com Gil y Gil. Era amor-ódio.

Atraiu sempre presidentes polémicos: João Rocha, Pinto da Costa, Gil y Gil, Tapie, Berlusconi.
Todos muito difíceis, mas todos gostavam de mim. Até Berlusconi. Chegou a propor-me ir para o Milan, mas eu sabia que já não estava a esse nível. Só tinha uma perna.

Como estão hoje os joelhos?
Na semana passada fiz a prova de esforço. 16 minutos de bicicleta. Coração maravilha. Joelhos e pernas, minha mãe.

No F. C. Porto, era acompanhado por um funcionário do clube que tinha por missão controlar o excesso de energia e a irreverência. Três anos depois, é capitão do Atlético de Madrid. Quando é que se dá a mudança?
Com a Isabel. A Isabel foi crucial na minha vida. Sem ela, não estaria hoje aqui.

Com a Isabel travou uma guerra com a Igreja Católica. Ambos decidiram não casar.
Olha hoje. O que mudou. Na altura sofremos uma pressão tremenda, sobretudo em Espanha. Era a o único da equipa que vivia com a mulher sem estar casado. Para a minha mãe e para a mãe dela, muito católicas, era também um grande problema.

Foi um braço de ferro.
A certa altura foi birra. A Igreja Católica veio para cima de mim e para cima dela. Ai é, então não nos casamos. O Gil y Gil chegou a fazer uma capela na quinta dele, de propósito. Não aceitámos.

No episódio cardíaco, rezou?
Rezei. Tenho fé em Nossa Senhora de Fátima.

Em criança queria ser astronauta. E aos 56 anos?
Tenho percebido que não posso viver sem a televisão. A televisão dá-me vida. Faz-me ser competitivo, ainda. Para mim, a televisão é como um jogo. Como jogador sabia o resultado ao fim dos 90 minutos, agora sei no dia seguinte. Gostava de ter um programa de televisão. Agora quero ser eu a fazer a perguntas.

De repente, que pergunta faria a si próprio?
Vais concretizar o teu sonho? Resposta: Acho que sim.

Qual sonho?
Digo-lhe um dia. Tem a ver com o futebol, mas não me obrigue a falar mais.

Presidente do Sporting?
Não.

É coisa para se saber quando?
Boa pergunta. Entre seis meses e três anos.

O problema de saúde deu-lhe uma nova noção do tempo?
Não noto. Porém, pelo sim pelo não, já disse aos meus filhos que estou preparadíssimo para ser avô. Fui pai com 23 anos. Eles já vão nos 30… Pensei que ainda tomaria copos com os meus netos. Ou netas. Gostava muito que isso acontecesse.

Com 23 anos, era já um dos jogadores que mais penáltis oferecia à equipa. É um grande ator?
Não conheço um jogador que não faça tudo para ajudar a equipa ganhar. Maradona e a mão de Deus. Faz parte do futebol. A minha maneira de jogar – há um em Portugal que admiro muito, o Taremi – proporcionava muitas faltas. Em cinco anos, dei à equipa 21 penáltis. Ainda hoje, sou o jogador do campeonato espanhol com mais penáltis. O Cristiano tem 20 em 9 anos, eu tenho 21 em cinco. Mais difícil do que marcar um golo é provocar um penálti. Se fosse hoje, podia levar com um amarelo ou uma expulsão, mas iam marcar-me o triplo dos penáltis que me marcaram na altura.

Imagino que ao Paulo não o enganam. Sabe ver se é fita ou falta.
Imediatamente. O Taremi, a mim, não engana. (ri) A maior parte das vezes nem preciso de ver a repetição.

Diz-se dos grandes virtuosos que fazem com uma laranja o que outros fazem com uma bola. Ainda consegue?
Isso era o Maradona. Faço alguns toques, mas nada como ele.

Ainda brinca com a bola?
Antes de ter o enfarte estava a treinar para um programa que ia fazer com a TVI. O meu recorde é de 2763 toques. Tinha 23 anos. (ri)

Contas feitas, tem sido uma boa vida.
Tenho vivido várias vidas numa. Uma grande aventura.

Lamenta não ter sido mais disciplinado?
Fui um grande profissional. A pergunta que as vezes me faço é se teria sido mais rápido com a bola nos pés se não fumasse. Talvez. Mas pouco melhor. Porque a nível de treino e de cuidado, ninguém se cuidava mais de que eu. Na altura, havia a marcação homem a homem e eu ganhava aos meus rivais.

O cigarro é uma presença marcante na sua vida.
Sempre lá, desde os 12 anos. Para não fumar, chegava a meter-me toda a tarde no quarto. Começou no barco. Para me distrair, fazia bolas. Só que aquilo pegou. Ainda mais porque em Portugal podíamos fumar. Cheguei a fumar ao lado de Pinto da Costa. Em Espanha, cometi o erro de dizer que fumava um cigarro de vez em quando. Foi um escândalo. Bem me arrependi.

De que mais se arrepende?
Não penso no que poderia ter feito e não fiz. Há quem diga que, se em vez do Atlético, tivesse ido para Real Madrid ou para Barcelona, teria vencido algumas bolas de ouro. Mas também sei que nesses clubes o mais certo seria ser um entre outros. No Atlético, não. Comprovei-o mais uma vez. Lançaram um cartão de sócio com a minha fotografia, uma camisola minha e mal acabara de sair do hospital já eles estavam a preparar-me uma homenagem. Comoveu-me muito a festa que em tempos me fez o Sporting, é verdade. Mas no Atlético fui tudo: jogador, capitão, diretor desportivo, embaixador. Continuo a não poder andar na rua em Madrid.

Fez até uma tatuagem em honra do clube.
Cheguei como jogador estrangeiro, pago para jogar, mas dava tudo pela equipa. Com 22 anos era o capitão. Pouco a pouco, sem dar por isso, comecei a jogar como colchonero. Aos miúdos que vinham pedir-me autógrafos dizia “sou tão colchonero como vocês”. Dentro e fora do campo. Orgulha-me que o meu nome passe de geração em geração.

Aquele sonho de que falava há pouco será o de ser presidente do Atlético de Madrid?
Ainda não posso dizer qual é o sonho. Falaremos mais tarde.

Este ano, a Liga portuguesa está decidida?
De maneira alguma. Anda falta muito e o F. C. Porto está apenas a cinco pontos.

Continua a ver futebol?
À noite, evito. Sobretudo se for o Atlético. Com o Leverkusen tive de sair do estádio. Estava muito nervoso.

Tem medos?
Embora não pense muito nisso, a ideia de que se pode repetir está sempre lá. E o medo de sentir falta de ar. Ainda fico muito cansado.

Encerrava uma entrevista a si próprio com que pergunta?
Uma para a qual não consigo ter resposta: porque fizeste aquilo ao Ivic? Ele, na altura treinador do Atlético, quis substituir-me, eu recusei sair do campo. Não tenho palavras. Não há uma razão.

O que é que o diretor desportivo Paulo Futre teria feito e dito ao jogador Paulo Futre, que na altura não foi castigado?
Multa muito pesada. Parecida com uma que levei do Gil y Gil. Paguei o que hoje seriam 60 mil euros. Fui expulso num jogo em que era suposto o guarda-redes bater um recorde. Lembro-me que fui para os balneários rezar para que ele não sofresse um golo. E lamentar a minha impulsividade. Era a minha natureza.

Houve outro Futre?
Um canhoto tipo cavalo selvagem, puro-sangue como eu fui, não.

Um canhoto que nunca jogou para o empate?

Nunca, nunca, nunca. Nem no relvado, nem fora dele.