Neal Slavin. O fotógrafo que voltou a apaixonar-se por Portugal… 50 anos depois

Neal Slavin, na ribeira do Porto (Foto: Carlos Oliveira/Global Imagens)

Em 1968, Neal Slavin veio para fotografar arqueologia. Mas foram as pessoas que o atraíram. Meio século depois voltou - várias vezes - e acompanhámo-lo no regresso a alguns locais que o marcaram, enquanto preparava um livro, uma exposição e um documentário sobre o Portugal de hoje. As imagens desses dois países podem ser vistas na Galeria WOW, em Vila Nova de Gaia, a partir de 17 de março.

“Não estou triste, não tenho saudades de nada, não tenho doenças, as minhas filhas estão bem.” Paula Cristina Viana responde às perguntas de rajada, a sorrir, o olhar a dançar entre as várias pessoas que tem à frente. O marido, Rui, vai atendendo um cliente e deitando o olho a toda aquela azáfama. Às vezes solta uma piada mas na maior parte das ocasiões está apenas a assistir. Ao fim de uns minutos, porém, também ele fica com os olhos molhados quando a mulher se emociona. As perguntas mudaram, o nervoso miudinho passou e, afinal, Paula até tem saudades. E sente falta de alguém.

Do outro lado da banca de fruta e legumes do casal, a produtora Sofia Noronha vai traduzindo para português as perguntas que Neal Slavin lhe vai segredando em inglês. Com calma, muita calma. Ao lado, o diretor de fotografia Pedro Coelho orienta o operador de câmara para focar o plano no rosto de Paula e aguardar. O tempo que for preciso. Não há silêncios incómodos. Não há tempo de espera demasiado longo. Se Sofia sente um ligeiro toque no braço, deixa de fazer perguntas e aguarda respostas. Se sente um empurrão no cotovelo, é sinal de que deve insistir.

Atrás da produtora, a controlar as operações – e as perguntas sussurradas e os toques no braço – Neal Slavin vai dando indicações. Estamos em outubro de 2016, no mercado do Bolhão, no Porto, antes de o edifício histórico entrar em obras, e o fotógrafo americano de 75 anos está a realizar um documentário. Sobre a saudade, “esse sentimento tão português que junta melancolia, nostalgia e alguma solidão”, diz ele. E sobre Portugal. E sobre os portugueses – como Paula e o marido. E sobre o que é o país agora em comparação com o que era há 50 anos, quando Neal o fotografou pela primeira vez.

Neal Slavin na ribeira do Porto
(Foto: Carlos Oliveira/Global Imagens)

Em 1968, com 27 anos, o jovem fotógrafo aterrou em Portugal com uma bolsa Fulbright do Institute of International Education. Queria fotografar arqueologia e o destino original era Itália, mas, com tantos bolseiros naquele país, foi demovido. “‘Se gostas desse tema, porque não vais para Portugal?’ Fizeram-me a pergunta e eu não gostei muito. Porque haveria de ir para um país que tem um ditador? Mas vim. E não me arrependo.” Na verdade, aquela haveria de se revelar uma das decisões mais marcantes da sua vida profissional.

Chegou a fotografar o que gostava e trabalhou nas ruínas romanas de Conímbriga, onde conheceu o arqueólogo Jorge Alarcão, de quem acabou por se tornar amigo. Mas foram outras as fotografias que lhe deram notoriedade: Neal começou a fotografar pessoas. Nas ruas, nos cafés, nos transportes. E isso era uma coisa estranha no Portugal do final da década de 1960.

“Durante cerca de um mês, depois de chegar não fiz uma única fotografia. Precisava de sentir o ambiente e, sobretudo, tentar perceber as pessoas. Havia uma sensação estranha que carregavam. Só mais tarde percebi que era tristeza. E quando comecei a fotografá-las percebi isso melhor.” Curiosamente, porém, não desviavam o olhar. Nalguns casos apanhava-as desprevenidas, noutros pedia-lhes para posar. Mas não fugiam do fotógrafo. Um estranho com uma câmara apontada não seria a sensação mais agradável num país onde a informação era controlada e um vizinho podia ser agente da PIDE, mas a desconfiança andava de mãos dadas com a novidade. “As pessoas eram introvertidas, sim, mas ficavam encantadas por falarem com um estrangeiro. Mais: por um estrangeiro falar com elas. Era uma coisa completamente nova.”

(Foto: Neal Slavin)

Porto, Lisboa, Coimbra, Fátima, Évora… Neal Slavin percorreu boa parte do país durante vários meses, sempre a fotografar aquela sensação que mais tarde descobriu chamar-se saudade. E, não fotografando às escondidas ou tentando passar despercebido, ainda hoje não sabe bem como conseguiu nunca ser abordado pela Polícia – tirando aquela vez, em fevereiro de 1968, em que fotografou uma manifestação de estudantes contra a guerra do Vietname em frente à Embaixada dos EUA, em Lisboa (na altura na Avenida Duque de Loulé).

Neal Slavin deixou Portugal poucas semanas antes da famosa queda de Salazar da cadeira, em agosto de 1968, que atiraria o ditador para uma cama de hospital de onde já não saiu e lançaria Marcelo Caetano para os derradeiros anos do regime.

Quando regressou aos EUA, levava na bagagem mais de 12 mil negativos daqueles meses. Desses, fez duas mil impressões das quais acabaria por escolher as 30 que estão no livro “Portugal”, editado em 1971, um extraordinário retrato de época que representa um país fechado, meio triste, espécie de bolha cinzenta numa Europa que começava a ver cor com movimentos como o maio de 1968 em Paris ou a Primavera de Praga. Foi o primeiro livro do fotógrafo autor americano. O que lhe assentaria definitivamente as raízes profissionais em Portugal.

Foram essas mesmas fotografias que o trouxeram novamente a este canto da Europa no final de 1990, quando expôs em Serralves, no Porto, um conjunto de imagens representativo desse tempo. Encontrou um país diferente e uma democracia consolidada, mas recorda-se de ainda sentir “uma certa intranquilidade” no olhar das pessoas. Mas só agora, mais de 50 anos volvidos desde aquelas primeiras fotografias, é que Slavin voltou a tentar ler os olhos dos portugueses através de uma câmara.

(Foto: Paulo Spranger/Global Imagens)

Continua a fotografar com uma Leica e a utilizar uma Hasselblad, mas desta vez resolveu filmar também. “O desafio surgiu numa conversa com um amigo galerista. Porque não voltar, meio século depois, e fazer um filme sobre a minha experiência em 1968 e compará-la com o presente?” E assim fez. Com a ajuda da mulher, Anita Burkhart, como produtora executiva, regressou várias vezes, entre 2016 e 2019, para registar as diferenças, com o objetivo de realizar um documentário e recolher imagens para uma exposição e para um livro.

A ideia era lançar o projeto “Saudade” em 2018, mas foi encontrando mais material e completando cada vez melhor o trabalho, à medida que se cruzava com histórias e pessoas que queria entrevistar e se ia debatendo com o desafio de conseguir financiar um projeto desta complexidade. E, no meio de uma agenda complicada de alguém que faz muitos trabalhos de publicidade, tem imagens publicadas na “The New York Times Magazine”, na “Esquire”, na “Rolling Stone”, no “The Washington Post” ou no “The Sunday Times”, e que já expôs no Metropolitan Museum of Art, no Centre Pompidou, na National Portrait Gallery ou no Museu Getty, a data de arranque foi sendo adiada – e a pandemia não veio ajudar.

A importância de entender os portugueses

Até que chegamos ao presente. O livro deverá ser lançado no final do ano. O documentário está a ser finalizado por estes dias. Terá estreia oficial em Lisboa em 2023, mas, se tudo correr bem, já poderá ser visto na exposição que inaugura no dia 17 de março na Galeria WOW, em Vila Nova de Gaia (patente ao público até 31 de outubro): são cem fotografias, no total, 50 antigas, a preto e branco, e 50 atuais, captadas nos últimos cinco anos.

A capa do livro, que deverá ser lançado no final do ano

Neal voltou ao Algarve, ao Alentejo, a Lisboa, a Fátima, à Nazaré, a Coimbra e ao Porto para ver que Portugal é este agora. E se algumas coisas o surpreenderam, outras mantêm-se inalteradas. “Eu não diria que esta foi uma viagem sentimental. Portugal está fotografado, aquelas imagens a preto e branco marcam um momento e têm um contexto. Eu agora estou a tentar uma experiência nova. E é aí que entra a cor. Não posso fotografar a saudade. Mas ela pode estar implícita. Não pela beleza, mas pela informação que carrega. A luz acrescenta essa profundidade. Sobretudo esta luz extraordinária deste país. E o que sinto, acima de tudo, é que continuo a ver saudade mas já não vejo falta de esperança.”

O cartaz da exposição que inaugura no dia 17, na Galeria WOW, em Vila Nova de Gaia

O que é extraordinário é que, apesar de arranhar algumas palavras de português, Neal Slavin sente sobretudo isto pelo que vê através da objetiva. Quem passa a vida atrás de uma câmara fotográfica aprende a ler os outros pelos olhos e pela linguagem corporal. Não precisa de entender a língua, basta perceber o olhar.

Porém, não é assim em tudo. Há uma marca específica da alma portuguesa que Neal gostava de entender melhor se dominasse a língua. O fotógrafo consegue ouvir bem o trinar de uma guitarra e consegue sentir bem os efeitos de uma voz poderosa a dizer mal da vida enquanto canta. “Mas tenho pena de não conseguir saber ao certo o que ela está a sentir.”

(Foto: Neal Slavin)

“Ela” é Sandra Correia e naquela noite de outubro de 2016 canta na Mesa de Frades, em Alfama, Lisboa, sobre amor ou sofrimento, esperança ou paixão, ciúme ou dor. E saudade. A antiga capela oitocentista do Palácio da Dona Rosa, forrada a azulejos, na Rua dos Remédios, está à pinha e nos intervalos dos fados há um entra e sai de gente que se atravessa no plano de Neal enquanto este tenta fotografar a fadista. Mas não fica afetado. Espera, com calma, aguardando o melhor momento para disparar enquanto tenta perceber as conversas. Quem é que diz que aquele homem de 75 anos acordou às sete da manhã para trabalhar e está ali, às duas e dez da madrugada, a tentar traduzir acordes em imagens?

“Eu dantes não gostava de fado. Não entendia. Aquilo para mim não fazia sentido. Mas depois percebi que me faltavam as palavras para começar a entender a música. E, com isso, comecei a entender melhor os portugueses.”

(Foto: Neal Slavin)

É também disso que trata o documentário. Sobre entender os portugueses. Para ele sempre se tratou disso: não era apenas fotografar-nos. Ele quer perceber-nos. Ou, dito de outra forma, precisa das legendas emocionais para juntar às fotografias que começou a captar há meio século.

Para isso Neal Slavin conversou com os fadistas Mariza e Carlos do Carmo, o selecionador nacional Fernando Santos, o estilista Nuno Gama ou o outro americano também apaixonado por Portugal, o surfista Garret McNamara. E, cada um à sua maneira, num filme que foi editado por Tariq Anwar (nomeado para os Oscars da Academia por “Beleza americana” ou “O discurso do Rei”) e que obrigou a muitas horas de consulta em arquivos e acervos históricos, ajudaram o fotógrafo realizador a completar o álbum de família de um país. Ou a tirar-nos o retrato completo. Agora, aos 80 anos, diferente daquele que captou quando tinha 27.

(Foto: Neal Slavin)

“Os portugueses fazem o que têm de fazer, mas têm sempre uma certa vulnerabilidade”, diz ele. “E foi isso que me fez o clique para voltar. Em 1968 o meu pretexto, a minha razão para começar a fotografar pessoas foi a tristeza. Agora foi a vulnerabilidade. Acho que são dois conceitos que combinam bem.”

É verdade. Mesmo que estejam separados por 50 anos.