Tudo começou com uma indústria devoluta, que haveria de se transformar num centro empresarial onde cabem mais de uma centena de negócios. Duas décadas depois, a Lionesa cresceu. E muito. Da Livraria Lello ao Mosteiro de Leça do Balio ou ao Teatro Sá da Bandeira. A história de uma família que sonha alto faz-se de investimentos gigantes e de amor ao território. Ao Porto e ao Norte. E o futuro não parece antecipar travão.
O anúncio é recente. A Livraria Lello comprou 42 cartas de amor de Bob Dylan por mais de meio milhão de euros. A correspondência do músico e Nobel da Literatura enviada à namorada de adolescência vai ser exposta no Porto em janeiro. O facto pode até não dizer muito sobre a história de um grupo empresarial familiar (dono da maioria do capital da Lello) que está a celebrar 20 anos. Mas é Pedro Pinto, o timoneiro da família, quem defende que os investimentos – e tantos, nas últimas duas décadas – são uma carta de amor à região. Tal e qual as do artista norte-americano à namorada em finais dos anos 1950.
Comecemos pelo princípio, pelos primórdios do Lionesa Group, pela coluna vertebral de uma empresa que se agigantou e não mais parou de crescer. Tudo começou em 2002, quando Pedro Pinto, que outrora trabalhou na área dos leilões, e a mulher, Aurora Pinto, antiga professora universitária, compraram as ruínas da Fábrica de Tecidos de Seda Lionesa, em Leça do Balio (Matosinhos), ainda sem saberem bem o destino que lhe dariam. A fábrica, que era um expoente da 2.ª Revolução Industrial, há muito que tinha definhado e já só sobrava um edifício devoluto por onde tantas vezes Pedro passava quando ia almoçar a casa dos pais. Talvez tenha sido aí, nesse percurso, que se convencera a comprá-la.
“Começámos logo a receber contactos de uma série de interessados em ficar com o espaço. E a Lionesa começou a dar-nos as respostas sobre o que potencialmente poderia ser”, recorda. Seria exatamente essa procura a ditar o conceito daquele que é hoje o Lionesa Business Hub (LBH), centro empresarial, lugar onde tantas empresas instalam os seus escritórios mais virados para o futuro, um continente de indústrias 5.0. No norte do país. Da Vestas à FedEx, hoje são 120 empresas, em espaços pensados à medida de cada negócio, numa estrutura modular. Mais de sete mil profissionais oriundos de meia centena de países a trabalhar ali.
Mas como? “As empresas não vêm para cá em vão. Começámos por vender a região do Porto e Norte e só depois a Lionesa. Inicialmente, vinham porque era mais barato no território. Mas não queríamos que fosse uma questão de preço. Somos loucos ao ponto de, no caso da FedEX, pagar um autocarro (60 mil euros por ano) que faz a rota Porto-Lionesa e vice-versa. Queremos captar empresas e fixá-las no nosso território. E temos que vender argumentos, substituindo-nos muitas vezes ao poder público.” Os argumentos multiplicam-se. Estão nas aulas de golfe e de surf, no ginásio exterior que todos quantos ali trabalham podem usar ou em parcerias com museus do Porto para possibilitar o acesso à cultura. Até porque a arte, desde bem cedo, mora ali. Paixão assumida da família Pedro Pinto. Desde logo, pelo Mural da Lionesa, uma autêntica galeria a céu aberto que é porta de entrada no LBH.
O projeto também evoluiu muito à boleia dos filhos do casal, António, 25 anos, licenciado em Gestão e Finanças e apaixonado por psicologia do consumidor, e Francisca, 27, licenciada em Economia e amante de turismo e cultura, que cresceram com a Lionesa. A ouvir o pai levar o dia a dia da empresa para casa, a incentivá-los a pensar com ele, a terem pensamento crítico. E que já adultos e formados acabariam por embarcar nesta viagem interminável.
António, por exemplo, que está dedicado ao LBH, quis apostar numa Community Happiness Manager. “Portugal é o país da União Europeia com maior risco de burnout. E a Organização Mundial da Saúde já alertou para a depressão como a nova epidemia. Não queríamos contribuir para estes números. Desenvolvemos um modelo de felicidade interno. E, recentemente, fizemos uma parceria com a HeartCount para sabermos se o que estamos a fazer tem tido impacto, que concluiu que temos um índice de felicidade de 89,6%”, refere António.
A Lionesa renasceu e cresceu. Dos 43 mil metros quadrados iniciais (o edifício original está classificado pela Câmara de Matosinhos como imóvel de interesse municipal), o LBH já aumentou para os 56 mil quando agregou outros antigos complexos industriais. E tem uma expansão pensada para ultrapassar os 120 mil metros quadrados.
Da Lello à compra de um mosteiro
O caminho desde aí nunca mais teve travão. E em 2015 a família comprava a maioria do capital da Livraria Lello, mais de um século de história pronta a reescrever-se no “paraíso dos livros”, nas palavras de Pilar del Rio, viúva de José Saramago. “Já tínhamos uma relação com a arte, mas era interna, dentro da Lionesa. E começámos a sonhar que a nossa ligação podia ser no território. Tínhamos a ambição de captar investimento estrangeiro, de fixar talento. Mas também de importar turistas. E a Lello surgiu como um negócio. Qual é o problema de ver a cultura como um negócio?”, questiona Pedro Pinto.
Foi aí, desde que a família tomou as rédeas, que se implementou o voucher literário, que permitiu resgatar o negócio livreiro da icónica livraria portuense. A explicação é simples: para a tornar sustentável quiseram ir além de cobrar um bilhete qual museu e procuraram antes manter a principal vocação da Lello, que é vender livros. “No fundo, ou os visitantes compram um livro, ou deitam os cinco euros do bilhete fora. O valor do bilhete não pode ser deduzido em merchandising, só mesmo em livros. E assim transformamos visitantes em leitores. Que entram, tiram fotos na mesma e saem de livro na mão. É um passaporte para o livro”, explica Aurora Pinto, a administradora da Lello.
O modelo gerou valor que permitiu investir em programação cultural, em obras de restauro e conservação – e foi preciso tirar 12 camadas de tinta para chegar à camada original da fachada tal e qual era em 1906 -, voltar a apostar na aquisição de primeiras edições, livros raros, regressar à edição. Lançaram uma coleção de livros de bolso, miniaturas apetecíveis. E, assim, a Lello virou o maior exportador de literatura nacional. Uma segunda vida que 2022 traduz bem. Em setembro, receberiam o aclamado escritor Salman Rushdie, não fosse o brutal ataque de que foi alvo em Nova Iorque. Há dias, inauguraram a montra de Natal, dedicada a “O Principezinho” (obra que a Lello editou em ucraniano para apoiar as crianças vítimas da guerra na Ucrânia), fruto de uma parceria com a Fundação de Saint-Exupéry. E vão dar palco a uma exposição onde estará um objeto pessoal do próprio escritor francês. Há outra parceria a caminho, com a Inditex, que quer vender a coleção infantil da Lello nas lojas Zara.
Só em 2019 foram 700 mil os livros vendidos pela Lello, que recebe 1,2 milhões de visitantes por ano e já conta mais de 500 mil euros de investimento em espólio livreiro. Uma revolução infinita que não cabe nestas páginas. E que é discutida à mesa da família, em casa, no Porto. “A nossa casa é uma animação”, atira Aurora, que se apressa a pormenorizar: “Foi sempre uma casa de muita conversa e discussão. O Pedro tem esta característica de levar para casa o que o agarra. Tem a mania de nunca ir pela mesma rua e chegar e desatar a conversar sobre isso”. As tarefas estão bem divididas. A mãe é responsável pela Lello, Francisca por todos os outros projetos culturais (lá iremos), António pelo LBH. O pai Pedro é “omnipresente em todos os projetos”.
“A grande característica do meu pai é que ouve o que dizemos. Não é pela nossa idade que deixa de ouvir a nossa opinião. Pelo contrário, quer ouvir-nos sobre tudo e mais alguma coisa”, comenta Francisca. As decisões são fáceis de tomar, garantem. Há pouca burocracia pelo meio, trabalham de forma ágil.
A meia dúzia de passos do LBH, está o Mosteiro de Leça do Balio, que se ergue majestoso. A família comprou-o em 2016, logo depois da Lello. De monumento em monumento. São os espaços históricos que os fascinam. O mosteiro, lugar de amor entre Portugal e Castela, que acolheu o casamento real de Dom Fernando com Dona Leonor Teles, monumento nacional anterior ao século X, que todos já tinham esquecido que o era até começar a ser requalificado pelas mãos da família Pedro Pinto.
Primeiro, trabalharam uma exposição que contava a história daquelas paredes para testar a adesão da comunidade. Mais de dez mil visitantes foram o ponto de partida para tudo o resto. Para o trabalho com o Pritzker Álvaro Siza Vieira. É Francisca, que coordena a área do turismo, quem conta. “Quando abrimos ao público com a exposição, já apresentámos o projeto de requalificação que envolve os arquitetos Álvaro Siza e Sidónio Pardal. Queríamos perceber se a comunidade estava recetiva. E logo depois fechámos para obras de requalificação.” Além do mosteiro, há um jardim a ser reabilitado. E agora também lá há um templo, escultura gigante a céu aberto de homenagem ao estilo gótico projetada por Siza, que lá vai com regularidade, e que está em construção.
A ideia é abrir a visitantes, cobrando bilhete. “Tem que ser sustentável economicamente. O mosteiro vai ter uma exposição permanente. O jardim também será palco de exposições, espetáculos de luzes, música.” Estima Francisca que até final de 2023 o projeto está concluído. E é parte de um sonho ainda maior, que começou a ganhar forma com o tempo.
Um Caminho da Arte até Santiago
O sonho, esse, é o de um Caminho da Arte. Rápido perceberam a importância que o mosteiro teve desde sempre nos Caminhos de Santiago. Chegou a funcionar como espécie de hospital noutros tempos. E a estratégia moldou-se: como chamar turistas ao Mosteiro de Leça do Balio? Olharam para os 261 quilómetros entre Porto e Santiago de Compostela, o mais antigo Caminho Português rumo a Santiago, e pensaram criar uma “Route 66 de arte”, pintar o caminho de arte contemporânea pela estrada fora, com um dos pontos de paragem a ser no mosteiro, em jeito de estrutura de acolhimento – daí o templo, espaço para reflexão. Pensaram nos turistas como viajantes. E foram além dos primeiros 11 quilómetros do caminho, entre a Sé do Porto e o Mosteiro. “Hoje, os caminhos não são feitos tanto por motivos religiosos, são uma caminhada pessoal, de introspeção. E queremos qualificar o turismo”, diz Francisca.
Estão a trabalhar o projeto transfronteiriço com autarquias, com a Direção Regional da Cultura do Norte, com o Turismo do Porto e Norte, com o Turismo da Galiza. “Estamos a investir num projeto que nem será nosso, será do território. Numa forma diferente de conhecer o território”, aponta Francisca. E o pai sabe bem que “a qualidade do caminho vai depender da qualidade dos artistas que aqui expuserem”.
Apesar de tudo o que já tinham em mãos, o sangue ferve-lhes na agitação de tanto sonharem. E os voos sobem cada vez mais alto. Há três anos, o Lionesa Group ainda comprou, em hasta pública promovida pelo Município, o Teatro Sá da Bandeira. Um investimento de 3,5 milhões de euros que ainda só passou pela aquisição. Pouco mais querem revelar.
Curiosamente, a poucos minutos do mítico teatro portuense fica a rua do Loureiro, onde têm vindo a comprar alguns edifícios. Onde funciona a Pensão Douro, a Casa Arcozelo, a Confeitaria Serrana, que tantos turistas recebe para porem os olhos no quadro de Acácio Lino que ocupa o teto. “A rua do Loureiro é o nosso brinquedo. De quem é apaixonado por contar histórias e por cultura. É zona protegida pela Unesco, ao lado da Estação de São Bento, no coração da cidade, uma rua que já foi postal do Porto, pautada pelo comércio, e que tem sido esquecida na reabilitação urbana”, observa Francisca.
Querem devolver-lhe a alma do passado, a vida que já teve, dizem. Trabalhar com quem ali vive, com a população, para criar um bairro cultural. Já compraram 18 edifícios, mas têm um projeto de arte e cultura democrático – não lhes interessa serem “intelectuais” – pensado apenas para dez. No ano em que completam duas décadas de vida não conseguem estar parados. Só em 2022 se assumiram como Lionesa Group, que junta o tudo que é tanto que surgiu desde o LBH. E ainda desenham um masterplan até 2025. Contam triplicar a equipa no LBH, estão a recrutar. E sonham ter uma escola internacional (do pré-escolar ao Secundário) aí instalada para os filhos dos jovens pais e mães que lá trabalham. Além de um lugar para animais de estimação. Criar um espaço de co-living e co-working para atrair nómadas digitais. As ideias não têm fim.
“Quando se fala do masterplan não é só mais metros quadrados. Aliás, se me dissessem que não podia construir nem mais um metro quadrado até 2025, mas ter comboio, autocarros a passar aqui, no LBH, trocava já. Não vivo obcecado pelas receitas, antes pela transformação do território, por ganhar raízes”, assume Pedro. Tanto que a Lello, o Mosteiro de Leça do Balio, o Teatro Sá da Bandeira, a rua do Loureiro e tudo o mais são investimentos que “fazem parte de um todo”. São património, “peças de valor”, que a Lionesa quer inovar, respeitando a história, e tornar sustentáveis. É essa, afinal, a fórmula de um grupo que comprou ruínas e virou império.