Joias nacionais à conquista do Mundo

Nos últimos 15 anos, a joalharia portuguesa superou a desconfiança internacional e conquistou o respeito dos mercados além-fronteiras. Atrizes como Sharon Stone e Julia Roberts podem ter ajudado, mas a qualidade dos artesãos nacionais e a resiliência dos nossos empresários merecem nesta história o papel principal. O desafio do momento chama-se transição digital.

Era algures o ano de 2007, a fatídica crise do subprime já ganhava forma, as dificuldades iam-se refletindo de forma evidente na economia portuguesa e em particular no volume de trabalho da José Carlos & Filhas, Lda., que desde 1993 se dedicava ao fabrico de ouro e joalharia. Em nome do instinto de sobrevivência, José Carlos, mentor e proprietário da empresa, rasgou horizontes.

“Até lá só vendíamos para o mercado nacional. Mas aqui as coisas começaram a complicar-se e eu já tinha uma equipa na ordem das 20 pessoas, tinha de arranjar uma solução. Como tinha bons conhecimento em França [passou lá uma boa parte da juventude e até tirou o curso de Joalharia na École du Louvre] meti-me num avião e fui bater à porta de possíveis clientes.”

A José Carlos & Filhas, Lda., uma das principais fabricantes do setor, tem hoje uma faturação anual de seis milhões de euros, com as vendas para o mercado internacional a representarem 90% do volume total de negócios
(Foto: Miguel Pereira/Global Imagens)

O arrojo não foi logo recompensado. “No início foi difícil, a reação não era a melhor. Apresentava-me e as pessoas diziam: ‘Vem de Portugal? Se ainda fosse de Itália ou da Suíça.’ Não tinham noção nenhuma, achavam que estava a trabalhar aí debaixo de um vão de escada.” Mas não baixou os braços. E a insistência haveria de dar frutos. “Às tantas começou-me a chegar tanto trabalho que no espaço de um ano tive de duplicar a equipa.”

Hoje, entre joalheiros, cravadores, polidores, fundidores e outros, conta com perto de 70 colaboradores. E a faturação anual ronda os seis milhões de euros, com as vendas para o mercado internacional – França, EUA, Inglaterra e Bélgica à cabeça – a representarem 90% do volume de negócios. “Já nem preciso de andar à procura. Pelo contrário, muitas vezes não tenho é capacidade de resposta, tenho recusado muito trabalho, para marcas mais pequenas. E pelo que sei não somos só nós, anda tudo a abarrotar de trabalho.”

(Foto: Miguel Pereira/Global Imagens)

O episódio, partilhado por um dos principais fabricantes do setor, é ilustrativo da crescente popularidade da joalharia portuguesa além-fronteiras. Isso mesmo sublinha Nuno Marinho, presidente da Associação de Ourivesaria e Relojoaria de Portugal (AORP). “Não é que em Portugal se trabalhasse mal, muito pelo contrário, mas havia de facto um défice reputacional, uma falta de conhecimento em relação ao que cá se fazia, até porque tínhamos muito poucas empresas vocacionadas para a exportação.”

A tirada remete-nos para uma retrospetiva sucinta da história da joalharia portuguesa, “um setor antiquíssimo e com grande tradição”, mas quase exclusivamente focado no mercado interno até ao final dos anos 1990. “Depois, com a crise financeira [2007-2008], foi preciso refocar estratégias e começou a embarcar-se em projetos conjuntos de internacionalização, muito graças aos financiamentos europeus.

Comparando com outros setores, como o do calçado e do têxtil, que começaram primeiro, ainda é um processo algo incipiente, mas já há numerosas marcas internacionais que recorrem a empresas portuguesas para fazerem as suas séries e produtos. E isso é revelador tanto do sucesso das estratégias individuais das empresas como de estratégias conjuntas, promovidas pela AORP.”

A propósito, quem não se recorda de há uns anos ver a mediática atriz Sharon Stone a passear em Beverly Hills, nos EUA, com um coração de filigrana original de Viana do Castelo? Ou, mais recentemente, a atriz Úrsula Corberó, a famosa Tóquio da série espanhola “La casa de papel”? Não são casos únicos.

Sharon Stone já usou um coração de filigrana original de Viana do Castelo
(Foto: DR)

Em 2016, a atriz Milla Jovovich também deu visibilidade à joalharia portuguesa, assumindo-se como rosto de uma campanha promovida pela AORP. E até Julia Roberts chegou a posar para a capa de uma famosa revista internacional exibindo uma pulseira de ouro e diamantes da marca nacional David Rosas.

Milla Jovovich está entre as celebridades internacionais que ajudaram a dar visibilidade à joalharia portuguesa
(Foto: DR)

E este é só o lado mais “pop” de um conjunto de estratégias destinadas a aumentar o peso e a reputação da joalharia portuguesa nos mercados internacionais. Os números avançados pela AORP atestam o sucesso. Atualmente, o setor, que integra perto de quatro mil empresas e dez mil trabalhadores, tem vindo a consolidar posição na balança de exportações, com o ano de 2020 (fortemente marcado pela pandemia, o que não é de somenos) a traduzir-se em vendas ao exterior na ordem dos 110 milhões de euros, um sexto do volume de negócios total do setor (663 milhões). França, Espanha, Alemanha, Suíça, Estados Unidos e Hong-Kong são os principais compradores.

Julia Roberts é outra das celebridades internacionais que ajudaram a dar visibilidade à joalharia portuguesa
(Foto: DR)

Mas ainda há larga margem para crescer, particularmente ao nível do mercado asiático, que tem hoje potencial quase ilimitado. A pensar nisso, e à boleia da Expo Dubai, exposição mundial que decorreu nos Emirados Árabes Unidos entre 1 de outubro de 2021 e 31 de março deste ano, a AORP lançou, em fevereiro, a campanha “Travessia”, que pretende ser uma espécie de ponte entre a essência e a tradição da joalharia portuguesa e “a necessidade de adaptação e inovação no âmbito das novas dinâmicas do mercado global”.

“É uma forma de a AORP se servir do Médio Oriente, e em particular do Dubai, como porta de acesso ao mercado asiático, para levar o melhor deste setor nacional ao Mundo”, esclarece o líder da AORP, antes de traçar um objetivo ambicioso: “Em cinco anos, prevemos alcançar uma taxa de crescimento de exportações de 10% nesta área geográfica e ambicionamos que esta ‘Travessia’ seja uma forma de aproximar essas expectativas.”

O setor conta com uma verba de seis milhões de euros destinada à promoção internacional, com o projeto a ser financiado pelo Portugal 2020, no âmbito do Programa Operacional Competitividade e Internacionalização, com fundos provenientes do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional.

Indústria 4.0 e migração digital

O que se pretende com esta “travessia”? Desde logo, impulsionar o crescimento, a inovação e a competitividade internacional da indústria, “apoiando as empresas na sua transição para uma indústria 4.0 [que assenta num amplo sistema de tecnologias avançadas como inteligência artificial, robótica, Internet das coisas e computação em nuvem] e para o ambiente digital”, sem que isso represente uma desvinculação de valores como “o savoir-faire, a tradição e a sustentabilidade”, pormenoriza Nuno Marinho.

“Vivemos um período de evolução e de rápida migração digital, com a tecnologia a assumir um papel cada vez mais central na sociedade. Também na área da joalharia, o digital ganha espaço na criação (indústria 4.0), na distribuição (e-commerce) e na comunicação (redes e canais digitais).” E a necessidade da migração digital é tanto maior quando ainda estamos a viver a derradeira fase de um contexto pandémico que teve impacto direto nos nossos hábitos de consumo.

João e Tiago Barbosa, proprietários da Mesh Jewellery, estão entre os protagonistas do setor que rapidamente vislumbraram a necessidade de apostar no digital e no e-commerce. Representam a terceira geração de uma família de ourives sediada em Gondomar que durante décadas se dedicou em exclusivo ao fabrico de joias. Até que em 2016 os dois irmãos quiseram mais. Percebendo que havia “um nicho nas lojas trendy” que não era tão bem visto pela generalidade do setor, começaram a apostar em linhas menos clássicas e a vender as peças em mercadinhos de rua que proliferavam por Lisboa.

João e Tiago Barbosa, irmãos, representam a terceira geração de uma família de ourives em Gondomar. Em 2016, decidiram ir além do fabrico e criar uma marca própria, a Mesh Jewellery
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Nascia assim a Mesh, uma marca mais “virada para as joias do dia a dia”, que pretende aliar fabrico tradicional e modernidade. “Conseguimos conciliar as duas vertentes: os artesãos da velha escola e o lado da inovação, com impressão 3D e máquinas de corte a laser”, explica João Barbosa, responsável pela gestão da marca.

A irreverência foi sempre ponto de honra, até na via que seguiram rumo à internacionalização. “Nunca quisemos ir pelo caminho tradicional, das feiras, das ourivesarias. Apostámos em concept stores, boutique stores, lojas que vão mais ao encontro do conceito de mulher moderna.” Hoje, estão já presentes em mais de 30 lojas, espalhadas por oito países, entre as quais algumas cadeias de renome.

Mais: atualmente, 70% da faturação – meio milhão de euros só com a Mesh, milhão e meio juntando marca e fabrico, a que se continuam a dedicar – assenta no mercado internacional. “O facto de termos a loja do Porto num ponto turístico, como o Largo de São Domingos, também ajudou, porque os clientes iam passando a palavra”, revela Tiago, responsável pelo desenho de todas as peças.

De resto, foi a magia do digital a funcionar. As redes sociais (sobretudo o Instagram), espécie de “montra para o Mundo”, a página da marca e, algures desde 2020, a loja online, onde fizeram questão de manter um certo registo “disruptivo”. “Não queríamos ter simplesmente um catálogo. Por isso, disponibilizamos online um serviço de personalização de joias em que, através do próprio site, o cliente consegue ver como a peça fica.”

Processo da cravação de pedra em pendente da Mesh Jewellery
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

A situação pandémica, em particular o segundo confinamento, foi para muitas empresas do setor o ponto de viragem rumo ao digital e ao e-commerce. O boom está espelhado nos números: nos últimos cinco anos, a Contrastaria recebeu 1075 pedidos de licenciamento para venda de joalharia online. Só entre 2020 e 2021, anos pandémicos, foram 561. É também a esta migração para o digital que se destina uma parte do investimento que tem vindo a ser feito pela AORP.

Mesmo no caso de casas centenárias, umbilicalmente ligadas à tradição, como é o caso da Tavares 1922, na Póvoa de Varzim. Fundada por Virgílio Aristides Tavares (já falecido), em 1922, no exato número 54 da Rua da Junqueira onde ainda hoje se encontra, a Tavares é propriedade de dois dos seus netos, Carlos e Ana Tavares, que fazem questão de conciliar a defesa acérrima da ourivesaria tradicional com a inovação que a modernidade impõe.

A filosofia dos proprietários da Tavares 1922, Ana e Carlos Tavares, passa por conciliar a defesa da ourivesaria tradicional com a inovação que a modernidade impõe
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

“Equipámos a nossa oficina com aparelhos mais tecnológicos. Desde equipamentos laser para soldadura e corte até equipamentos para desenho das joias em três dimensões. Ainda há pouco a nossa designer esteve reunida por Zoom com uma senhora que está em Paris e estava a escolher um anel”, adianta Carlos Tavares.

Até porque, muito à custa da venda dos anéis de noivado e alianças, em que se têm especializado nas últimas décadas, o público da Tavares 1922 é hoje essencialmente jovem. O que talvez ajude a explicar o facto de no último ano e meio terem focado também atenções no digital. “A pandemia acabou por ser o fator catalisador. No final de 2021 inaugurámos uma nova loja online e temos cada vez mais clientes a vir à loja escolher peças que viram na loja online.”

Foi também neste contexto de abertura à modernidade que a Tavares 1922, cuja faturação ultrapassou, no último ano, o milhão de euros, aceitou o desafio da AORP no sentido de integrar a coleção “Crossings”, uma cocriação integrada na já referida campanha de promoção internacional “Travessia”, que uniu cinco marcas de joalharia portuguesas a cinco jovens personalidades nacionais ligadas à música, à arte e ao desporto.

A centenária ourivesaria Tavares 1922 existe desde sempre no número 54 da Rua da Junqueira, na Póvoa de Varzim
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

No caso da marca liderada por Carlos e Ana Tavares, a parceria teve como protagonista a cantora e trompetista Jéssica Pina. “Desenhámos uma joia que se usa na face da mão, com base num estudo científico que encontrámos em que se concluía que o primeiro instrumento de sopro do homem foi o búzio”, justifica Carlos Tavares.

Além de Jéssica Pina, também o skater Gustavo Ribeiro, o guitarrista Gaspar Varela, o ator Rafael Morais e a artista musical Blaya trabalharam com relevantes marcas nacionais no sentido de desenvolver peças que se pretendem inovadoras, no conceito e na forma.

“Quando lá cheguei, tinha imaginado algumas coisas, em função do trabalho que tinha visto da Juliana [Juliana Bezerra Jewellery] no Instagram, mas acabámos a optar por uma ideia completamente diferente. A peça tem o nome de duas músicas minhas, tem as cores de que eu gosto, as cores do mar também, e pelo que tenho percebido as pessoas estão a gostar muito”, conta Blaya, que só no Instagram conta com quase meio milhão de seguidores.

Um mercado em mutação

Esta ideia de trazer para a equação “influencers” e figuras públicas mais jovens tem muito pouco de acaso. “O setor da joalharia e da ourivesaria depende significativamente da tecnologia e da sua capacidade de orientar as suas estratégias pelas redes sociais. Muitos jovens da nova geração afirmam-se pelo seu talento e abrem caminhos a novas áreas de atuação e foi isso que esteve na base da seleção das personalidades que se uniram às marcas nas cocriações desta coleção. O papel da nova geração de marcas e designers permite-nos promover a criação de pontes com outras gerações”, sublinha Nuno Marinho.

Até porque já há estudos a apontar para a emergência de uma nova geração de consumidores no setor da joalharia. Num deles, o Diamond Insight Report, promovido pela De Beers Group (grupo empresarial ligado à mineração e comércio de diamantes), previa-se mesmo que a geração Z, que compreende a faixa etária dos 15 aos 25 anos, se tornasse na maior consumidora de joias com diamantes após 2025. Num mercado em mutação, há ainda uma outra alteração substancial, cada vez mais nítida: o facto de também os homens terem nas joias uma peça fundamental na sua afirmação pessoal.

E uma série de inovações que vão sendo impostas pela voragem da modernidade, das mais técnicas, como a tecnologia laser para soldaduras e cortes, que permitem executar desenhos com maior facilidade e bastante fidelidade, às mais conceptuais. Nuno Marinho, da AORP, destaca a customização, “ou seja, a possibilidade de concretizar rapidamente o produto imaginado pelo cliente”. “Atualmente, já é possível fazer uma impressão em 3D para mostrar a peça ao cliente e só depois transformá-la em metal precioso.”

Esta possibilidade, e de resto toda a questão da customização, é, segundo Augusto Seca, administrador da Topázio, um dos fatores diferenciadores desta marca, que já conta com quase 150 anos de existência.

Augusto Seca, administrador da Topázio
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

“Muitas vezes o cliente chega com uma uma ideia, um desenho, mas sem saber exatamente o que pretende ou como vai ficar e nós temos capacidade de fazer um protótipo em 3D, em gesso, que lhe damos para aprovação antes de avançarmos. A isso juntamos depois a capacidade dos nossos artesãos, com uma vocação desenvolvida ao longo de dezenas de anos, que conseguem esculpir uma peça de início ao fim apenas com base num desenho, quase como um escultor faz com uma peça de granito.”

Uma das mais-valias da Topázio, marca com quase 150 anos de existência, passa pela capacidade de customização
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

Competências que, só em 2021, se traduziram numa faturação de três milhões de euros, 40% dos quais resultantes de exportações. Neste bolo, a loja online, aberta em 2018, também vai fazendo o seu caminho. Ascendente, pois. No último ano, as vendas por esta via registaram um aumento de 57%, representando 5% da faturação total.

E já este ano a empresa espera que a percentagem dobre para os 10%. Um crescimento que poderia ser ainda mais significativo e generalizado não fossem as restrições legislativas que vão servindo de amarras ao setor. É essa a principal razão de queixa do líder da AORP, Nuno Marinho.

A capacidade dos artesãos da empresa, com uma vocação desenvolvida ao longo de dezenas de anos, é outro dos traços distintivos da Topázio
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

“A legislação ainda é um pouco restritiva a nível das exigências que são feitas para a venda. Há um desfasamento entre o que é exigido em Portugal e o que é exigido noutros países. A legislação não é clara e há pequenas confusões que tornam o processo difícil, sobretudo para as pequenas empresas. Percebo que o foco esteja na defesa do consumidor, mas também deve ser suficientemente ágil para permitir o comércio.”

O caso singular da joalharia contemporânea

A joalharia contemporânea funciona como uma espécie de núcleo autónomo dentro da joalharia portuguesa. “Move-se num contexto artístico à parte”, salienta Cristina Filipe, fundadora e presidente da direção da PIN – Associação Portuguesa de Joalharia Contemporânea. Se por um lado “tem mostrado a sua força através da obra de múltiplos artistas que desde a década de 1960 impõem uma linguagem sem medo e a afirmam” – também através de eventos como a 1.ª Bienal de Joalharia Contemporânea de Lisboa, que têm “um papel acrescido no reconhecimento internacional da história da joalharia contemporânea em Portugal” -, por outro depara-se com a falta de meios e a inexistência de um mercado específico que a sustente. “Em parte por ser um campo que se afastou da joalharia tradicional e se aproximou das artes plásticas, promovendo uma certa estranheza e dificuldade de entendimento da mesma pelo público em geral”, entende a responsável, chamando a atenção para a coleção de joalharia contemporânea que o MUDE – Museu do Design e da Moda, em Lisboa, está a constituir desde 2007.