Guia para gerir a ansiedade da guerra

Natália Totchenko nasceu na Rússia, mudou-se ainda bebé para a Ucrânia, está em Portugal há nove anos. Vive num desassossego por causa da família e amigos que tem nos dois países (Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

Ucrânia tornou-se perto e o sofrimento e a tragédia humana estão em todo o lado. O coração não sossega, não se dorme, há lágrimas e choro. Medo. Incerteza. Ansiedade. Tem sido difícil escapar e assimilar a avalanche informativa. Tanto para adultos como para crianças.

Há uma semana, um bebé de 18 meses morreu num bombardeamento russo na cidade de Mariupol. As imagens captadas por um fotojornalista despedaçaram ainda mais o Mundo, já de si moído por um conflito que não termina. Verónica Alves desabou por dentro e por fora enquanto o seu filho, que acaba de fazer um ano, dormia a sesta. “Chorei muito, mesmo muito.” Encontrou as imagens nas redes sociais de alguém que segue, já numa altura em que tinha decidido controlar a avalanche noticiosa que a asfixia, angustia, lhe causa ansiedade, de lágrimas sempre prontas a cair. “Mal. Estou a lidar bastante mal com esta situação”, admite Verónica Alves, 37 anos, licenciada em Comunicação e Multimédia, a viver em Lisboa. As notícias de outras guerras do passado pareciam-lhe mais distantes, mas agora, que é mãe, as coisas abalam-na de forma mais intensa. “Afetam-me mais, extrapolo mais as coisas do que antes de ser mãe.”

Natália Totchenko acordou na madrugada de 24 de fevereiro com um nó na garganta, o coração a tremer. A guerra na Ucrânia estava a começar. Nasceu na Rússia, tinha dois anos quando a família se mudou para Odessa, na Ucrânia, há nove anos que vive em Portugal. As últimas semanas têm sido angustiantes, lágrimas atrás de lágrimas, um sufoco com a família e amigos na Ucrânia e na Rússia. “Não consigo dormir bem, não estou a acreditar no que está a acontecer. Não consigo distanciar-me, com nervos, com stress, é difícil acalmar-me”, conta Natália, 33 anos, cabeleireira em Aveiro.

É natural e expectável sentir medo, tristeza, ansiedade no atual contexto. Não há nada de estranho nisso, segundo Rute Agulhas, psicóloga clínica e psicoterapeuta. “Ainda em pandemia e com uma guerra a acontecer aqui tão perto, podemos dizer que estamos perante o efeito cumulativo de situações potencialmente traumáticas”, refere. O chão foge dos pés, o sentido de previsibilidade perde-se, a sensação de conforto desaparece. Aumenta a vulnerabilidade e é necessário identificar as necessidades que as emoções comunicam. “É importante olharmos para dentro de nós e tentarmos perceber o que estamos a sentir. Dar nome à emoção, sem juízos de valor ou conotações negativas – contrariar ideias como ‘quem sente medo é fraco’ ou ‘a ansiedade é sinal de doença mental’”, sublinha.

Telefonemas, mensagens, notícias russas, ucranianas e portuguesas a cada instante. Natália Totchenko vive num desassossego constante. “Choro muito, a minha família não queria sair da Ucrânia, o meu pai não queria sair.” Até que, na semana passada, a mãe, o pai e a irmã mais nova passaram a fronteira para a Moldávia. A mãe e a irmã ficam na Moldávia, o pai de 74 anos entrou numa camioneta a caminho de Portugal para ficar em sua casa. “Estava sempre a ver notícias, sempre a ver televisão, o que estava a acontecer, não largava o telemóvel, dormia quatro a cinco horas, acordava para mandar mensagens, não conseguia trabalhar tranquila, sempre preocupada. Não dá para estar tranquila nem para dormir bem.”

A primeira semana de guerra foi terrível, perdeu o apetite, avalanche de notícias, a querer saber dos seus, coração nas mãos com o iminente ataque a Odessa, a sua cidade. E tudo o resto, as memórias, a família, os amigos. “Não quero ver a minha cidade destruída.” Natália doseou a quantidade de notícias, teve de ser ou ainda explodia por dentro. “Vejo sempre notícias, mas não tanto como na primeira semana, quando andava muito triste porque não conseguia tirar o meu pai de lá.” Mesmo assim, uma dor sem-fim.

A guerra começou e Verónica Alves não conseguia desligar, televisão ligada na Euronews, Internet disponível, redes sociais ativas. “Decidi fazer uma pausa porque não conseguia, comecei a ficar bastante ansiosa com esta situação. É demasiado, é-me bastante difícil. Agora já não estou nas redes sociais diariamente, nem perto do telemóvel”, revela. Filhos que perdem pais, pais que perdem filhos, famílias que se separam. Bombas, mortes, ameaça nuclear, cidades destruídas, milhões de refugiados. O desespero. Não imaginava que seria tão complexo gerir emoções com o que está a acontecer na Ucrânia. Stress, ansiedade, lágrimas. “Está tudo a passar para as redes sociais. Mesmo que não queiramos, acabámos sempre por abrir alguma notícia, alguma imagem.” E abala tudo outra vez. “O facto de uma pessoa pensar que é longe, que não vai chegar aqui, acaba um pouco por minimizar esse receio. O problema é que tudo pode escalar se o Putin não ficar por cima, acaba tudo por ser bastante angustiante.”

Verónica Alves está a viver esta guerra com uma intensidade aumentada pelo facto de agora ser mãe (Foto: Álvaro Isidoro/Global Imagens)

Rute Agulhas aconselha a moderar o acesso à informação sobre a guerra, reservar um momento do dia para o fazer, evitar fazê-lo antes de dormir, procurar canais e jornais fidedignos. Relaxar dez minutos por dia, fechar os olhos, imaginar uma cena que transmita paz e tranquilidade. Moderar o consumo de café e outras substâncias estimulantes, manter uma rotina de sono saudável, caminhar, praticar atividade física. Conversar com quem se confia, partilhar sentimentos. “Identificar os pensamentos que estão a perturbar. São realistas? Será que são pensamentos catastróficos? Tentar pensar de uma forma mais realista e mais positiva e manter a esperança”, diz. “Regular as emoções não é ignorar os problemas ou fingir que eles não existem, mas, sim, uma forma de manter o controlo sobre o que se sente para poder, depois, ter comportamentos mais ajustados”, acrescenta.

Escutar, conversar, responder

Os mais novos não passam ao lado do que está a acontecer. É natural que se sintam aterrorizados, ansiosos, com medo. Rute Agulhas dá nota de maior ansiedade nas suas consultas. “Muitas crianças preocupadas e sem compreenderem muito bem o que está a acontecer, com maior agitação motora, dificuldades em dormir e mesmo alguns comportamentos regressivos.” E não só. “Também muitos pais preocupados sem saberem como ajudar os filhos a gerir esta situação quando eles mesmos não sabem como o fazer.”

Entre os casos que acompanha, uma jovem de 16 anos voltou às consultas. Tem pesadelos, acorda exausta, não é capaz de se concentrar na escola. “O seu quadro ansioso, que estava já estabilizado, agravou-se com esta situação.” Não consegue dormir, sempre a pensar na guerra, a imaginar que podia ser aqui, que ficaria sem escola, sem família, que teria de fugir apenas com a roupa do corpo. “Esta jovem não modera o acesso à informação e, segundo ela mesmo diz, ‘devora’ notícias em todo o lado, sendo certo que muitas delas podem provir de fontes pouco fidedignas”, adianta Rute Agulhas. A guerra tornou-se o tema de conversa com os amigos, sente-se impotente, confessa que já imaginou mil maneiras de assassinar o presidente da Rússia.

Como gerir medos, incertezas, ansiedades dos mais novos? Como falar da guerra com crianças e jovens? Como conversar sobre o que está a acontecer em casa e na escola? Desde logo, as atitudes dos adultos devem adaptar-se às idades. A guerra vai chegar cá? As bombas podem cair em cima de casa? O que está a acontecer? A Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) elaborou um documento com perguntas e respostas para pais e cuidadores de crianças e jovens. “Conversar sobre a guerra” está disponível no site da OPP e em várias plataformas digitais, sobretudo de autarquias e de entidades que trabalham com os mais novos.

Não há bloco informativo nem página de jornal sem qualquer referência à guerra na Ucrânia. “O facto de crianças pequenas assistirem a notícias sistemáticas sobre a guerra pode criar a sensação de que está sempre a acontecer, quando se está a repetir informação”, alerta Sofia Ramalho, psicóloga, vice-presidente da OPP. Os adolescentes já conversam entre si, trocam impressões, comentam. Em qualquer caso, convém controlar o tempo de acesso às notícias. “É importante restringir a quantidade de vezes que acedem à informação, de uma forma negociada, e de preferência acompanhados dos pais. E é importante que os próprios adultos se contenham nesse excesso de informação dos media porque podem desenvolver ansiedade sempre que assistem a perdas, ao sofrimento humano.”

Omitir o que está a acontecer não pode ser, fazer de conta que não há uma guerra é contraproducente. As crianças podem criar fantasias. Sofia Ramalho avisa que é preciso falar e saber como falar para esclarecer ideias erradas. “Se os pais evitam conversar, faz com que as crianças ouçam coisas soltas, a guerra pode ser na sua rua, na sua cidade, e ficam com medo que lhes possa acontecer alguma coisa, que possa cair uma bomba em cima de casa.”E é importante também “ter uma boa base de conversa construtiva de que a violência não é a forma adequada de resolver os conflitos, que há outras formas de construir a paz”.

Transmitir a mensagem, sim, mas evitar estereótipos. “As crianças podem ter colegas ucranianos e russos na escola. Quando se fala sobre a guerra, que se evite incentivar vinganças sobre países e pessoas.” Disponibilizar informação o mais concreta possível, não estimular ódios.

Crianças e jovens não querem ouvir um “não te preocupes com isso”, ou um “não tens razões para te sentires assim, triste e com medo”, precisam que validem o que estão a sentir. Sofia Ramalho considera que é importante incentivar outro tipo de sentimentos: a empatia, a compaixão, a solidariedade. Como se sentem as crianças num país em guerra? Quais as atitudes positivas dos que estão a trabalhar pela paz? São dois exemplos num emaranhado difícil de digerir.

Se os adultos não estão bem, as crianças não estão bem. A ansiedade de uns é a ansiedade de outros. A ansiedade de tentar compreender o que está a acontecer, a ansiedade em função das vivências familiares. “A situação de guerra traz mais necessidades quer relativamente à segurança física, quer à segurança económica.” Percebe-se que a tensão aumente nas crianças perante as circunstâncias. Por isso, é essencial a máxima atenção. Segundo Sofia Ramalho, pais e os professores devem estar “atentos a alterações de comportamento e de sentimentos das crianças para agir o mais rapidamente possível”.

Como falar da guerra com as crianças

A Ordem dos Psicólogos elaborou um guia com conselhos para conversar com os mais pequenos sobre o conflito na Ucrânia

  1. Responder às dúvidas e dar informação apropriada à idade, capacidade de compreensão e experiências, para que se sintam seguras e protegidas.
  2. Dar espaço para expressar sentimentos, evitar estereótipos, assistir às notícias em família, monitorizar a saúde psicológica.
  3. Disponibilidade total. Conversar quando necessário. Não forçar a tomar consciência da existência de uma guerra se as crianças, sobretudo as mais pequenas, não mostram interesse ou não querem falar.
  4. Validar sentimentos. Não atirar com um “Não te preocupes!”, mas antes “Pareces triste quando falamos sobre isto, eu também estou triste”. Não julgar a forma como se sente, mesmo que pareça não fazer sentido. Respeitar e pedir para explicar as vezes que forem necessárias. Transmitir segurança, afeto, confiança.
  5. Mostrar empatia, ajudar a identificar e expressar a raiva, conversar sobre os passos para resolver um problema, valorizar as competências de não violência.