Dois anos fechados em casa por causa da covid

Patrícia teve uma depressão pós-parto e desenvolveu um transtorno obsessivo-compulsivo. Sara sofre de atrofia muscular espinhal tipo 2. Carlos tem 77 anos e perdeu de vez a mobilidade quando teve de parar a fisioterapia. Isabel vive com síndrome antifosfolipídica. De uma forma ou de outra, a pandemia impôs-lhes uma vida cingida a quatro paredes.

O início do isolamento de Patrícia (“só Patrícia”, pede, porque a história que se segue é demasiado pessoal), foi uma sobreposição de dois eventos angustiantes e assustadores. Primeiro, soube que tinha uma gravidez de risco e que teria de ir para casa repousar. Depois, veio a pandemia de covid-19, que deixou uma boa parte do Mundo enclausurada. Para Patrícia, 34 anos, foi assim, um infortúnio a seguir ao outro, os astros a darem ares de desatino, o medo a encontrar ali terreno fértil para se exponenciar.

Logo ela que viu a covid levar-lhe dois familiares, que tem endometriose, adenomiose, que já teve de ser operada de urgência porque os rins por duas vezes lhe falharam, que teve de recorrer a tratamentos para poder ser mãe. E que de repente sentiu o sonho fazer-se frágil, tantas eram as perguntas por responder. “Na altura ninguém sabia muito bem o que podia acontecer às grávidas, quais eram os riscos.”

Por isso, fechou-se em casa, sabe até enumerar as parcas ocasiões em que saiu até ter o bebé. Uma vez para assinar a escritura da venda da casa antiga, outra para a escritura da compra da nova, consultas, mudanças. Numa ocasião, chegou a sair para comprar roupa (“porque já nada me servia”), mas foi uma vez sem exemplo. Fazia praticamente tudo pela Internet. O simples facto de ter alguém a aproximar-se deixava-a em agonia.

Certo dia, em pleno confinamento, apeteceu-lhe McDonald’s para o jantar e encomendou. Mas calhou de ter o portão aberto porque tinha ido pôr o lixo. E o estafeta “foi por ali fora” até ao patamar da entrada de casa. Ela, que não se apercebeu, nem a máscara tinha. E então desabou. “Entrei em choque.” Não foi capaz de tocar na comida e passou horas a chorar.

Agora, à distância, não tem dúvidas de que a bolha de stress e isolamento em que se afundou durante aqueles meses contribuiu sobremaneira para as complicações que se seguiriam. Em junho de 2020, meses depois do início da pandemia, foi internada por pré-eclampsia. Pouco depois, nascia o filho, prematuro e sem que o pai pudesse assistir ou sequer ficar ao lado dela no quarto do hospital. “Não tive apoio nenhum.”

Um emaranhado de adversidades que só ajudaram a agravar um estado emocional já titubeante. Ao ponto de o isolamento de Patrícia se manter quase até o filho completar um ano e meio. “Tinha medo, medo de lhe passar alguma coisa, ainda por cima já tinha nascido prematuro, tinha medo de tudo.” E assim passou meses e meses a sair só para levar o pequeno às consultas e às vacinas, o poço a fazer-se mais fundo a cada dia. Até ao pátio de casa evitava ir porque “tem outros pátios ao lado”.

O isolamento profundo mergulhou-a numa depressão pós-parto e num transtorno obsessivo-compulsivo de contornos dramáticos. “Tomava aos quatro e cinco banhos por dia. Se tivesse de sair com o meu filho por algum motivo, quando chegava a casa deixava-o no ovo e não lhe pegava enquanto não tomasse banho, mesmo que ele estivesse a chorar. E não podia tocar com a roupa dele em mim, senão ficava histérica e tinha de tomar banho outra vez.”

Até aos animais lá de casa ganhou aversão, ela que sempre foi louca por eles. “Estava sempre a chorar e tudo me metia nojo.” Desinfetou tantas vezes os puxadores das portas que depressa ganharam ferrugem. E até as compras que encomendava tinham de ficar num canto durante uma semana até lhes conseguir tocar. “Quando ia pegar nelas, os legumes já estavam podres.”

Às vezes, o marido lá a convencia a ir dar uma volta, mas ela nem do carro conseguia sair. “E mesmo assim eram sempre grandes discussões, porque ele saía e tocava em tudo. Eu passava-me.” O simples facto de ele lhe dar um beijo antes de sair de casa era razão para ir tomar mais um banho.

Pelo meio, percebendo que já não sairia daquele abismo sozinha, procurou ajuda de um psicólogo. Mas a consulta demorou meio ano. E mesmo quando começou a ser acompanhada os problemas não se desvaneceram num ápice. “Aconselharam-me a fazer um esforço para parar para racionalizar, para pensar se há mesmo necessidade de ir tomar mais um banho. E eu fui tentando fazer isso. Mas só melhorei consideravelmente quando em novembro fui obrigada a voltar ao trabalho [uma loja onde faz atendimento ao público]. Achei que me ia fazer muita confusão, mas acabei por lidar melhor do que aquilo que pensava.”

O filho, hoje a caminho de completar dois anos, foi então para a creche. E ironicamente, há pouco tempo apanhou covid, a mãe também. “De início fiquei em choque, mas depois acho que até reagi de forma muito calma.” Hoje, admite que o problema ainda não está resolvido a 100% (“há coisas que ainda não consigo deixar de fazer, como tomar banho mal chego a casa ou desinfetar os telemóveis”), mas dá graças por já estar muito melhor. “Sair de casa e voltar a trabalhar foi o que me ajudou verdadeiramente.”

Um promotor da perturbação mental

A espiral depressiva e obsessiva em que Patrícia mergulhou está longe de ser caso único. Sara Moreira, psiquiatra de ligação e responsável pelo serviço de humanização do Centro Hospitalar Universitário do Porto, tem-se deparado amiúde com histórias semelhantes. “De facto o isolamento é um promotor da perturbação mental e foi isso que notámos. Pessoas com níveis de ansiedade muito altos, invadidas por uma necessidade de informação muito grande, que deixaram de ter vida, de fazer outras coisas, mesmo em casos em que não havia doença prévia.”

Além, claro, das agudizações dos problemas, quando já existia doença mental. Ou em grupos mais vulneráveis. “As pessoas que já tinham doenças crónicas ficaram ainda mais isoladas, com mais medo.”

“Tinha medo, medo de lhe passar alguma coisa [ao bebé], ainda por cima tinha nascido prematuro, tinha medo de tudo”, conta Patrícia
(Foto: Pedro Correia/Global Imagens)
É o caso de Sara Carvalho, 44 anos, designer gráfica. Embora o termo isolamento lhe cause comichão. “Eu não me sinto isolada do Mundo, num bunker. Os ingleses têm uma expressão de que gosto mais que é o ‘shielding’, o escudarmo-nos do risco.” Aos 18 meses, quando se começou a pôr de pé e imediatamente se ajoelhava, os pais desconfiaram que algo não batia certo. Perceberiam depois que a filha tinha atrofia muscular espinhal tipo 2, uma doença neuromuscular degenerativa determinada geneticamente, que se traduz numa perda progressiva da força muscular e da capacidade de movimento.

A coluna vai cedendo, o corpo vai ficando deformado, a cadeira de rodas torna-se obrigatória, os músculos respiratórios vão claudicando perigosamente. “Eu não consigo tossir, não tenho força. Há muitos anos que uso um ventilador durante a noite, porque tenho uma insuficiência respiratória muito grave.”

Uma simples constipação pode, por isso, ser o cabo dos trabalhos. Tanto que Sara há muito se habituou a evitar grandes saídas no inverno, para se proteger. Depois veio a covid e as precauções viraram restrições absolutas. “Tive consulta de pneumologia no fim de fevereiro de 2020. Na altura já se falava no vírus, mas sabia-se muito pouco sobre ele. Eu faço anos na primeira semana de março e questionei o médico sobre isso. Ele disse-me para ir para casa e não receber ninguém até se perceber melhor o que isto era, que celebrava depois, no ano seguinte.” Sara cumpriu.

Para aligeirar o fardo da clausura, em meados de março mudou-se com a família para uma casa que têm em Óbidos, com terreno à volta onde pelo menos pode respirar e apanhar sol. E por lá tem estado, há quase dois anos.

Trabalhar em casa não foi novidade. Sendo freelancer, há muito conhecia essa realidade. O que mudou foi o resto. Os filmes que não foi ver, os concertos a que deixou de ir, os almoços com as amigas que deixaram de acontecer, as viagens que ficaram por fazer, Londres, Barcelona, o Porto de que tanto gosta. “O que mais me tem marcado é a ausência das pessoas. De tudo, o que sinto mais falta é de poder estar com os meus amigos, despreocupados, com aquela leveza do encontro em que só há coisas boas pela presença do outro.”

Ao longo destes dois anos, quando o tempo permitia, Sara até os ia recebendo no alpendre de casa. Mas há momentos e afetos que inevitavelmente se perderam, uma solidão que vai moendo, ora de mansinho, ora implacável. Sara recusa afundar-se no derrotismo, ainda assim.

“O isolamento tem um peso. Posso dizer que tive muitas fases más durante estes dois anos, pela ausência dos outros, mas também tive muitas fases boas. A minha vida é pior agora? Sem dúvida. Continuo a sentir-me muito próxima dos meus amigos? Sim. Não sinto que os tenha perdido. Perdi foi momentos bons, coisas que podia ter feito com eles, tartes de limão enquanto se bebe um café, perdi as coisas pequeninas de que a vida se faz todos os dias.”

Até porque, por depender de uma cadeira de rodas, está ainda mais limitada. “A pandemia veio exacerbar as diferenças em relação às limitações físicas”, realça. Porque já antes era mais fácil receber os amigos do que ser ela a deslocar-se. Também porque a prudência a obrigou a sair apenas para o mínimo e indispensável. As consultas, as vacinas, dois ou três passeios com os pais até às lagoas de Óbidos. E não mais do que isso. Até o cabelo começou a ser cortado em casa.

“Muitas vezes me perguntei se estava a exagerar. Mas cheguei sempre à mesma conclusão. A minha vontade de não morrer sobrepõe-se àquilo que estou a perder.” Uma máxima a que terá de se continuar a agarrar num futuro próximo. “Sei que os próximos meses vão ser diferentes, em relação à maior parte das pessoas, vou ter de continuar a ter cuidados que os outros felizmente vão poder deixar de ter. Espero que tudo se torne menos assustador e que eu aprenda a viver com isso. Só peço um dia de cada vez.”

E apesar de se agarrar às coisas boas, ao privilégio que é poder estar numa casa com espaço exterior, ao bom tempo que está a voltar e aos afetos que lhe vão voltar a inundar o alpendre, há um receio que não cala. “Não tenho medo de dizer que tenho medo. A probabilidade de ter doença grave se ficar infetada é muito alta. E é evidente que isso assusta.”

Medo até das visitas domiciliárias

Hélder Oliveira, diretor técnico da Associação Portuguesa de Neuromusculares, reconhece que este receio é partilhado por muitos outros associados. “Foi algo de que nos fomos apercebendo com bastante frequência. Doentes com medo de se deslocarem às nossas instalações para receberem tratamentos na área da reabilitação ou com medo das visitas domiciliárias. Em grande parte das doenças neuromusculares há afetação do músculo respiratório e isso torna-os num grupo de risco, mais vulnerável. Os doentes sabem que mesmo no caso de uma gripe é mais difícil recuperar. Uma doença como a covid-19 ainda alarmou mais as pessoas. Daí a necessidade de se precaverem e de se isolarem.”

Mas o isolamento tem efeitos perversos. Da deterioração da saúde mental à exponenciação das limitações físicas. “Uma das grandes questões, em relação a estes doentes, é que muitos deles terão hoje maior dificuldade em sair de casa. Porque quando começou a pandemia os serviços de reabilitação deixaram de funcionar e nalguns casos os doentes estão parados desde essa altura. Há competências motoras que foram perdidas e que já não vão ser recuperadas.”

A questão coloca-se também em relação aos mais idosos. Que o diga Carlos Joaquim, 77 anos, marido de Rosa Maria, 74, há mais de 50 anos. Um ano antes da pandemia foi-lhe detetado um problema oncológico, lutou, foi operado, venceu. Passou a andar de canadianas, é certo, mas continuava a sair e a fazer a vida dele. Só que depois veio a covid, que os fechou em casa e o impediu de prosseguir com a fisioterapia. O resultado foi o esperado. Perdeu massa muscular e a mobilidade foi-se de vez.

“Antes saíamos todos os dias logo de manhã, o Carlos conduzia, íamos ler o jornal, ter com os amigos, tínhamos muitos amigos. E tínhamos a família, os filhos, juntávamo-nos aqui, íamos às festas de aniversário, passávamos férias no Alentejo em casa da irmã do Carlos, éramos muito rapioqueiros. Agora perdeu-se tudo”, lamenta Rosa, o pessimismo entranhado de dois anos de pandemia a querer levar a melhor.

“Sentimo-nos muito sozinhos, estou desanimada, já não auguro nada de bom daqui para a frente”, reconhece Rosa Maria
(Foto: Fernando Fontes/Global Imagens)

Agora, vai saindo aqui e ali, vai à farmácia, faz umas compritas no minimercado, sempre de fugida. “Não gosto de deixar o Carlos sozinho porque ele às vezes afoita-se”, justifica-se, num doce tom de preocupação. Mas também já nem lhe puxa para sair. “Antes ia a algum sítio e ainda me vinham as recordações todas, agora quero é vir para casa. Eu gostava era que o meu Carlos pudesse vir comigo.”

Mas não pode. Porque está agarrado a uma cadeira de rodas e o prédio em que vivem, na baixa de Coimbra, nem elevador tem. “E chamar a ambulância só para ir passear é chato”, acrescenta Carlos, com uma nota de humor. Mesmo os filhos, pouco aparecem, porque têm medo de os infetar. Por isso, passam os dias enfiados em casa, sozinhos. Veem televisão, leem um pouco, Rosa vai pegando no tablet para ver o que os filhos vão partilhando, vai falando ao telefone com uma irmã de Cascais.

“É o que me vale, que o meu Carlos não é muito de falar.” Mas o desânimo insiste em pautar-lhe os dias. “Sentimo-nos muito sozinhos. Estou desanimada. Já não auguro nada de bom daqui para a frente.” Jura até já se ter resignado. “Já nem tenho sonhos”, atira, fatalista.

A pouca companhia que vão tendo é feita pela equipa do gabinete de ação social da União de Freguesias de Coimbra, que diariamente os visita. Levam almoço, ajudam na higiene, são um ténue bálsamo para a solidão. O projeto, explica Ana Madeira, assistente social responsável por esse serviço, data do início da pandemia. “Na altura, tínhamos sinalizadas, na nossa base de dados, cerca de mil pessoas acima dos 65 anos. E então começámos a contactá-las para saber o que estavam a viver, de que precisavam, a disponibilizar apoio. E começámos a comprar-lhes os alimentos e a medicação de que precisavam.”

Ao todo, estima que terão apoiado perto de 300 famílias, entre idosos e pessoas com algum tipo de patologia. E o isolamento a que grande parte dessas pessoas ficaram votadas não lhe sai da cabeça. “Muitas vivem em casas antigas, com muitas escadas, saem uma vez por ano, costumavam até alugar quartos a estudantes. Entretanto veio a pandemia e ficaram completamente sozinhas. Fomos percebendo que estavam mais deprimidas e nalguns casos com muito receio de sair à rua, mesmo para tomar a vacina. Isto deixa marcas.”

O retrato traçado por Sónia Vinagre, presidente e diretora-técnica da Associação Nacional de Apoio ao Idoso, não é mais animador. “Quando reabrimos o nosso centro de dia, notámos que as pessoas regressaram muito mais dependentes, em termos de mobilidade, em termos cognitivos, com processos demenciais muito mais acelerados. Muitas deixaram de se levantar da cama porque deixaram de ter uma perspetiva de vida animadora. Tive um idoso, que agora voltou a estar aqui connosco no centro de dia, que dizia que se atirava de uma janela. Porque vivia sozinho, os filhos estavam emigrados, o centro de dia era a companhia dele e deixou de a ter.”

Mais deprimidos, mais lentos, mais confusos

Os efeitos negativos do isolamento estão também plasmados nas conclusões de um estudo coordenado por Sandra Freitas, investigadora do Centro de Investigação em Neuropsicologia e Intervenção Cognitivo-Comportamental, da Universidade de Coimbra, e diretora clínica do Simplesmente, centro clínico de reabilitação que foi precisamente um dos principais promotores do estudo – que, por falta de financiamento posterior, abrangeu apenas o primeiro confinamento.

Ainda assim, as conclusões obtidas, a partir de uma amostra de 250 pessoas acima dos 50 anos, cujos níveis de bem-estar emocional e desempenho cognitivo foram comparados com os que tinham sido registados um ano antes, são reveladoras.

“Por um lado, os adultos e idosos tinham níveis de sintomatologia depressiva muito mais significativos. E, quando fomos tentar perceber porquê, isso estava associado à perceção de uma menor qualidade de vida. Percebemos também que as pessoas que tinham mais qualidade de vida prévia conseguiram mantê-la mais, tiveram uma menor perceção de perda, estavam menos deprimidas.”

A nível cognitivo, também houve alterações substanciais. “Por um lado, um pensamento mais lentificado, com diminuição da velocidade de processamento de informação. Por outro, o aumento das queixas cognitivas. Ao fim de poucos meses, as pessoas já se queixavam que o isolamento as deixava mais lentas, mais confusas e com menor capacidade de raciocínio. E nós comprovámos isso nas provas de desempenho.”

De resto, alerta Renata Benavente, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos, ainda faltam estudos que permitam perceber a real dimensão dos danos causados por “experiências mais prolongadas de isolamento”, mas há tendências que vão emergindo de forma muito visível.

“A ansiedade, o medo, a dificuldade em preservar relações sociais e nalguns casos em reatá-las. Pessoas que se acomodaram em relação ao facto de não estarem com outras e que agora revelam pouca energia e iniciativa para retomar o contacto”, descreve a psicóloga, ressalvando que tudo depende das características da personalidade de cada um, porque “haverá sempre quem se adapte com mais facilidade”.

E isso provavelmente explica o facto de Isabel Soares, matosinhense de 52 anos, gestora de conta de cliente numa empresa de representações têxteis, garantir que se tem adaptado bem ao isolamento a que se tem obrigado, por causa da síndrome antifosfolipídica de que sofre, uma doença autoimune que aumenta em muito a probabilidade de formação de coágulos e por consequência de desenvolver tromboses.

Por isso, controla os níveis de coagulação do sangue. E toma medicação diária para este ficar mais fino. Por isso, tem de evitar a todo o custo cortar-se. Ou fazer atividades demasiado radicais. E se ocorrer uma pancada tem de fazer gelo de imediato, “porque um hematoma também pode gerar um coágulo”. Além de que está altamente limitada em termos de medicação. O que também contribui para que seja incluída no grupo de risco da covid. “No hospital, o que me disseram foi que por uma questão de segurança achavam melhor estarmos precavidos e um bocadinho mais isolados.”

“À medida que as coisas foram evoluindo fui relaxando mais. O medo castrador foi-se dissolvendo até se transformar só em cuidado”, explica Isabel Soares
(Foto: André Rolo/Global Imagens)

Nos primeiros dias, ainda ficou a trabalhar no escritório, mas o chefe insistiu que se mudasse para uma sala onde só ela estava. Depois, foi para casa. E por lá ficou. “Estes dois anos foram passados basicamente em casa. Deixei de ir ao ginásio, aos supermercados, os aniversários praticamente deixaram de existir.” As viagens de longo curso, que faziam duas vezes por ano, foram substituídas por umas férias numa casa isolada, com outro casal previamente testado. Pontualmente, ainda foi ao escritório. Mas pouco. E até os jantares fora só regressaram recentemente, mesmo assim sempre em restaurantes de familiares ou conhecidos, para saberem que as regras de distanciamento e higienização são cumpridas.

“E no início tinha muita atenção a tudo o que viesse do exterior, tinha que ser tudo desinfetado, até as embalagens de arroz eu lavava. À medida que as coisas foram evoluindo fui relaxando mais. O medo castrador foi-se dissolvendo até se transformar em cuidado. Continuo a ter respeito, o mesmo que tenho por outra doença infeciosa, e vou continuar a fazer tudo o que estiver ao meu alcance para não me expor. Mas não preciso de andar a fugir. Durante o primeiro ano da pandemia, eu fugia mesmo.”

Ao ponto de, nos primeiros meses, ter chegado a estar 76 dias (sim, contou-os) sem sair de casa. “Depois, o meu marido começou a achar-me saturada e a insistir para sair porque precisava de ver gente.” E ao fim dos tais 76 dias, por volta das sete da tarde, lá saiu para ir ao pão. “Toda embrulhada, em máscaras, em gel, em luvas, sem tocar em nada. E foi espetacular.” Já estava tão desabituada que até chegou a casa com tonturas. Desde então, o confinamento nunca foi tão longo.

“Mas até há bem pouco tempo era muito fácil passar 15 dias sem sair.” Na última segunda-feira, Isabel voltou, por fim, a trabalhar no escritório, o que, não nega, “soube bem”. “Se quer que lhe diga não tenho noção de que foi um período de isolamento tão longo. Não me pareceram dois anos, pareceu-me muito menos. Acho que ter estado tão embrenhada no trabalho também me ajudou muito.”

Mas uma experiência de isolamento prolongado deve inspirar atenção constante, tanto por parte da pessoa confinada como dos que lhe são próximos. Renata Benavente, da Ordem dos Psicólogos, alerta para isso mesmo. “Às vezes é difícil termos a perceção de que não estamos bem. Entramos num quadro de desesperança e alimentamos a ideia de que não é preciso pedir ajuda. Nestes casos, é muito importante o papel dos amigos e da família, no sentido de impulsionarem processos de mudança que por vezes não são intrínsecos.”

E se é certo que o isolamento deixa marcas – particularmente os casos de isolamentos duradouros como os que desembrulhamos nestas linhas -, Sara Moreira, psiquiatra do Centro Hospitalar do Porto, prefere ver o copo meio cheio. “Uma das poucas vantagens da pandemia é que trouxe para a linha da frente a importância da saúde mental. E isso abre todas as portas para que o trabalho nesta área possa ser melhorado daqui para a frente.”