As musas que escrevem o que não conseguem dizer

Dez raparigas que vivem num patronato em Chaves partilham pensamentos e histórias. Escrevem poemas, cartas, contos. Espremem memórias, desatam nós, arrumam emoções, procuram o seu lugar na vida e no Mundo. A experiência, densa e transformadora, revela-se num livro e ganha luz numa instalação. A escrita como provocação. A escrita como libertação. A escrita no feminino.

Tenho memórias que não queria lembrar. Alguma coisa virada para longe.” Ana escreveu as duas frases que se interligam e separou-as com um ponto final. Não prolonga o seu significado, não precisa de o fazer, as palavras são suas, só a si dizem respeito. Ponto final. Ana tem 20 anos, mora no Patronato São José, em Chaves, foi uma das dez meninas, jovens e mulheres, dos 12 aos 31 anos, que ali residem e que participaram numa oficina de escrita pensada no feminino.

Ana, sorridente e envergonhada, o riso que lhe disfarça a timidez, vai buscar o caderno onde escreveu o que o coração ditava e a mão imprimia a esferográfica azul. Não foi fácil, ao princípio. A relutância acabaria por ceder, as páginas, não todas, foram sendo preenchidas. “Eu disse ‘não sei, não faço’, acabei por fazer e gostei”, conta. Sente que valeu a pena. “Fiz uma coisa que nunca pensei fazer na vida”, confessa. Escrever o que lhe saía das entranhas.

Na primeira página do caderno A5 de capa preta e folhas brancas, Vera, de 22 anos, escreveu a lápis: “As mulheres são usadas como submissas.” Foi a primeira frase que escreveu na oficina de escrita como se ali estivesse espremido e condensado o seu pensamento. Letra direitinha como se houvesse uma linha por baixo. “São memórias mais pessoais e mais tristes”, diz. Vera fala, fala e fala, engata frases atrás de frases como se tivesse um mundo a querer sair-lhe do peito, ora de cara séria, ora de cara divertida. Gosta de ler, mas não gosta de escrever, diz que a sua letra é horrível, mas não é. Lê Nicholas Sparks e vai começar “Encontro com o destino” de Lesley Pearse. “Gosto de romances baseados em factos reais. Nos romances de amor, há sempre uma história entre duas pessoas, mas acaba sempre por haver tristeza, acaba sempre por haver dor. Quando o amor é verdadeiro, lutam e lutam, e isso é bonito.”

Gi, 14 anos, olhos verdes, pulseiras e fitas nos dois pulsos, unhas pintadas a preto e vermelho – acha que não ficaram lá muito bem, podia ter pintado melhor, já se nota o branco do inevitável crescimento rente à pele – é uma das mais novas do grupo de meninas-mulheres. Leu o livro “A culpa é das estrelas”, agora quer ver o filme, gostava de experimentar jogar futsal, confessa entredentes, quase para dentro, que dá uns toques na bola. “Escrevi sobre mim”, diz depois de entrar na conversa. Recua quatro anos, tinha dez, estava no 5.º ano, não teve autorização para ir a uma visita de estudo de dois dias a Lisboa. Não deixou que o dentista lhe mexesse nos dentes. Conta, escreve, relembra. “A verdade é que tinha medo daquilo que ele me pudesse fazer. Tinha medo que me magoasse e não conseguia abrir a boca.” Havia uma razão, várias até. Pensou melhor com o passar do tempo. “Hoje arrependo-me porque sei que posso deixar que me tratem os dentes sem que me magoem.” Só que a dor está lá. “Mas ainda estou triste por não me terem deixado ir ao passeio. Sinto que o castigo foi injusto.” Gi relê o seu texto nas provas do livro colocado sobre a mesa do patronato. “Musas” é o título desse livro coletivo construído e escrito a várias mãos de meninas, jovens, mulheres.

Uma viagem com sete paragens

Os sábados de manhã dos meses de março e abril deste ano, das 10 às 13 horas, foram momentos de escrita numa sala de estudo do patronato, no âmbito do projeto artístico “Musas” promovido pela Câmara de Chaves, concebido e produzido pelo Bairro dos Livros, composto por uma equipa que trabalha no setor cultural que usa o livro, as artes e a cultura para contar histórias. A mulher tem de ser musa de si própria, mote de Elke Heidenreich, escritora alemã, funcionou como ponto de partida para juntar Ana, Gisela, Gi, Filipa, Débora, Cândida, Vera, Bia, Isabel e Beatriz no ateliê de escrita. Raquel Patriarca, escritora, bibliotecária, documentalista, investigadora, coordenou a oficina, ensinou técnicas de produção literária, sentiu-se cronista e testemunha de uma história que descreve como uma viagem com sete paragens. Juntas viajaram pela memória, crónica, verbete, aforismo, carta, poema, conto. Sete pausas nessa caminhada. Conduziu e foi conduzida. “Levamos algo, mas também trazemos muito”, garante. Levou palavras de Ana Luísa Amaral, Maria Teresa Horta, Cláudia Lucas Chéu, Maya Angelou, Erykah Badu, entre outras mulheres. E a escrita foi-se tornando num lugar de encontro de raparigas, umas com as outras, com textos e palavras suas e de outras, e consigo próprias. Uma viagem feita de esforço, obstáculos, barreiras, conquistas. Lágrimas e gargalhadas. Estruturam-se pensamentos, destrinçaram-se nós, arrumaram-se ideias e emoções. Sem juízos de valor “Há um momento de sair a rolha e fez-lhes bem essa partilha de coisas menos boas e mais dolorosas”, revela Raquel Patriarca. Partilharam-se boas e más memórias, episódios cómicos e divertidos, coisas passageiras.

A instalação artística partiu da ideia de construção, com materiais em bruto, luzes, painéis com frases das raparigas

Vera sabe e di-lo. “Ler ajuda-nos a descontrair.” Escrever ajudou-a a escrever muitas palavras. “Espécie de boca escura falando com o nosso coração virado para nós. Mão de um livro com este murmúrio dentro. Este rosto ainda não existe então, é como um livro.” Vera diz em voz alta no meio de uma conversa a propósito de tudo, a propósito de nada: “Odeio o preconceito.”

Vera anotou referências de livros, palavras, nomes de autoras no seu caderno preto onde escreveu: “Vivemos para receber e dar amor. As pessoas nascem para viver. As pessoas só são felizes vivendo em liberdade. Vivemos para morrer.” Vera quer ser enfermeira ou fisioterapeuta, vai estudar termalismo e bem-estar. “Onde é preciso mais ajuda?”, pergunta sem esperar pela resposta. “É na saúde.”

Minês Castanheira e Catarina Rocha, do Bairro dos Livros, dão os últimos retoques na instalação artística dedicada às meninas-mulheres. Encaixam a palavra musas no centro do vídeo que mostra as mãos que escreveram os textos, as frases, o livro. “Há mulheres que são tudo.” “O vento nos cabelos que ouço.” “Mas levantei-me e voltei à corrida.” “O que serei?” Cada letra foi desenhada à mão porque é preciso sentir essa escrita em que a mulher está presente em todos os tópicos, em todos os momentos. É necessário sentir os movimentos do pulso. “São histórias de vida muito diferentes, idades muito diferentes”, refere Minês Castanheira que adianta que o projeto não se resume a uma oficina de escrita. É muito maior do que isso. Um espaço de liberdade e de reflexão, de memórias e de provocação, de criação e de redenção. Para pensar no papel da mulher e o seu lugar no mundo, um gatilho para uma reflexão coletiva. Um percurso sempre aberto, nunca fechado. Minês Castanheira explica. “Que não fosse só um registo, mas um processo transformador. As musas de si próprias, o lugar da mulher, o que acontece quando ninguém está a ver.”

Minês Castanheira, do Bairro dos Livros, salienta o processo transformador do projeto. O caminho percorrido, os textos

As palavras estão em painéis que refletem sombras com luzes apagadas e focos cirurgicamente direcionados com cores fluorescentes – rosa, laranja, verde, azul – que evidenciam a frescura e a força da juventude e remetem para um universo pop. Há cavaletes de madeira, acrílicos, peças de metal. “A instalação nasce de uma ideia de construção, de identidade, muitas vezes. Dos materiais em bruto e das palavras que se constroem e que formam este corpo, que trabalham em conjunto”, revela Catarina Rocha. A ideia de construção está sempre presente. “A ideia de crescer em algum sentido, o processo de construção do ser”, acrescenta. Nada é colocado ao acaso na instalação inaugurada neste sábado de manhã, dia 2, no Museu da Região Flaviense, ao pé do castelo, na parte alta da cidade de Chaves, juntamente com a apresentação do livro “Musas”. Livro que circulará de mão em mão. A instalação está aberta ao público e pode ser visitada até 29 de julho.

Risos e lágrimas, confiança e cumplicidade

Vera torceu o nariz à oficina, admite a rabugice, a pouca vontade para escrever no início, imaginou que seria uma chatice, uma seca. Mudou de postura pouco a pouco e agora dá o braço a torcer. “A Raquel puxou por nós, incentivava, incentivava e conseguia. Ia à pesca, ficava ali, e íamos desabafando o que nos ia na cabeça e na alma.” Vera pensou na avó e nos tempos nada iguais. “No tempo antigo, as mulheres eram escravas, eram criadas. Hoje somos livres e decidimos o que queremos.” “O homem desiste logo. A mulher vai, vai.”

Raquel Patriarca sentiu a camada de resistência, a desconfiança, a defesa e a autoproteção imediata e automática de meninas-mulheres que se juntaram num patronato por circunstâncias difíceis. “O processo de escrita em partilha, em comunidade, é sempre um processo doloroso para quem está a começar. É preciso confiança, abertura, cumplicidade.” O que é escrito tem de sair de dentro, uma palavra de cada vez, uma ideia a seguir à outra. “Tecendo e bordando a teia que conta uma história. A teia que acompanha uma vida.” A resistência acaba por ceder. “Depois acontecem os tais milagres, o grau de confiança e cumplicidade num final de lágrimas e abraços na despedida”, recorda.

A rapper Capicua e a poeta Judite Canha Fernandes, ativistas femininas nas palavras e na voz, no sangue que lhes corre nas veias, participam no livro. Leram as palavras da meninas-mulheres do patronato, sentiram-lhes os cheiros, as alegrias e tristezas, os seus poemas. E escreveram também. Capicua resgata uma frase da pintora mexicana Frida Kahlo para lembrar a luta pela autodeterminação das mulheres como “uma batalha simbólica” sem sossego e com sentido “em que cada cicatriz pode ser um trauma, ou uma pérola.” As mulheres que mordem a vida com os dentes todos, como escreve. Ou as mulheres que são vime, no texto de Judite Canha Fernandes, que são água e vento, sol e noite, semente e terra.

Entra em diálogo com a divindade da memória da mitologia grega que pariu nove musas inspiradoras, “mestras de todas as artes”, sempre à mercê dos sonhos dos outros. Musas que inspiram ou musas de si próprias. “Selvagens, graças à boa fortuna. Também pobres, precárias. Apesar disso, sempre a trabalhar. Nunca se esgotam, é um milagre”, escreve. Mulheres que são tudo. Deusas, abelhas, serpentes, vinho, trigo, rochedo. E vime.

Oficina de escrita, momentos de partilha, espaço de encontro. Palavras que contam histórias e emoções

Raquel Patriarca escreve sobre a experiência no livro. “Uma viagem em que a escrita nos serviu de mapa imperfeito e de pretexto para chegar mais perto desse lugar de encontro. Uma viagem que começou em negação e terminou em abraço. Que se fez entre mulheres desencontradas, coincidentes circunstanciais no espaço e no tempo, mas também na descoberta da escrita como um lugar de encontro.” Meninas-mulheres juntas numa oficina de escrita. E a ideia de musa encaixou na perfeição. “Como uma súmula, uma síntese perfeita para as raparigas a quem a vida foi muito desamparada, que precisam de se bastar a si próprias, além da dimensão da literatura. Não é só o conceito de musa literária, é garra, é uma força interior que precisa de ser transversal a tudo”, comenta a escritora.

No seu caderno, Ana guarda fotocópias dobradas a meio de poemas, frases, excertos das mulheres-poetas, mulheres-músicas, mulheres-mulheres que Raquel Patriarca partilhou ao longo dos sábados. Juntou com um clipe os retângulos com palavras de um exercício que fizeram para construir frases. Guardou tudo. Dentro e fora de si. “A história de vida é sempre complicada”, desabafa. “Continuar a escrever? Não sei. Talvez um dia. Não sei.” Musa de si própria, musa por inteiro.