Valter Hugo Mãe

A tia Fatinha


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Ando a suspeitar que este Inverno não chove porque bastam as lágrimas por tantas dores.

Ainda que fosse a mais nova de entre todos os filhos da avó Maria dos Anjos e do avô Alves, a tia Fatinha foi a primeira a partir. A ironia não é surpresa para quem lhe conheceu o destino. A tristeza redobra exactamente por ter parecido fadada a suportar mais azar do que é razoável.

A tia Fatinha, talvez por ser a menina, falava sempre a divertir-se, ria muito, gostava de andar por temporadas nas casas das irmãs, acompanhando e inventando almoços alegres e festivos. Enviuvou muito cedo. O tio Carlos ficou a parecer um homem antigo de ter morrido em tão breve vida, há tanto, tanto tempo.

Desde pequenino que me lembro das doenças da minha tia, mil operações cirúrgicas, atropelamentos, quedas ao rio, maleitas de toda a ordem que nem sei. Por alguma maldição, definhou há uns anos e perdeu autonomia. A menina foi a que agravou primeiro. Quando se ouvia dizer mais isto e aquilo de suas corridas aos médicos, já era tudo do foro de um anedotário trágico, porque se tornava parte do seu próprio humor. Ela contava dos hospitais como quem tinha ido de férias. Conhecia porteiros e enfermeiros, o pessoal da limpeza e os doutores mais empertigados. Da Casa de Saúde da Boavista ao Santo António ou São João, era freguesa de toda a parte e dava indicações. Quando alguém conhecido tinha um treco e se via internado, ela era a primeira a visitar porque lhe davam passagem de funcionária. Era da casa. De todas as casas.

Ainda assim, resistia pela simples fortuna de conversar e rir e desgraça nenhuma lhe tirava esse ímpeto para criar alegria. Fazia sempre votos pelo amor das filhas, se chorasse era invariavelmente por louvar as filhas, amar as filhas de qualquer jeito.

Os tempos vão numa violenta tristeza para os mais velhos. Único modo de isto ser humano é reiterar a memória. Jamais esquecer o quanto quiseram que nos mantivéssemos bem e juntos. É talvez o que mais sei da minha tia Fatinha. Que urgia em manter as filhas bem e juntas. A lição mais esplendorosa do amor.

Ando a suspeitar que este Inverno não chove porque bastam as lágrimas por tantas dores. Os dias baixaram as temperaturas mas a luz perdura, perdura a claridade calma que nos favorece o pasmo, a impressão de estarmos paralisados diante de uma questão a que não se responde, um lugar mental de onde não se sai. Estamos todos à espera, ainda que nos movamos já impacientes à procura de uma saída que nos devolva certa impunidade, certa liberdade adiada.

Enquanto esperamos, o tempo debita gente que amamos. A minha tia, de tão frágil, ficou protegida da pandemia com maior rigor. A pandemia impediu muitas visitas e ofereceu muito medo. Agora, há só a intensa sensação de termos sido fintados. O quanto esperámos também foi o quanto nos diminuímos uns dos outros. Sinto como se houvesse morrido longe. Num lugar mais para lá, num tempo também mais antigo. Posso apenas fazer votos para que a morte, ampla, seja sobretudo a revelação da mais gentil companhia. Uma cura total. Uma cura para sempre. Que a tia Fatinha bem a merece.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)