A nova vida de Carlos Leitão, paraplégico, oito vezes campeão de ténis em cadeira de rodas

Carlos Leitão tem uma campanha de angariação de fundos para participar nos Jogos Paralímpicos Paris 2024

Aos 24 anos, a tentar tirar uma bola do teto falso do pavilhão, onde treinava futsal, desequilibrou-se, caiu, ficou paraplégico. A incontinência urinária foi uma das consequências diretas do acidente. Vive, há seis anos, com um neuromodulador, já não precisa de algália, já não tem infeções. Hoje, aos 50 anos, Carlos Leitão, oito vezes campeão nacional de ténis em cadeira de rodas, prepara-se para os Paralímpicos Paris 2024.

Em 1995, Carlos Leitão trabalhava em hotelaria e praticava desporto, jogava futsal num pavilhão em Pombal. Nesse ano, no dia 29 de novembro, tudo mudou de repente. “Num treino da equipa, a bola foi para cima de um teto falso, fui buscá-la, caí para trás, bati com a coluna numa mesa, e fiquei paraplégico”, recorda. É o resumo possível daquele mau dia. Tinha 24 anos, na altura, caiu, não perdeu os sentidos, esteve sempre consciente, não imaginava os danos do acidente, do que lhe tinha acontecido. “Simplesmente, não me conseguia mexer.” Vinte e seis anos depois, o campeão nacional de ténis em cadeira de rodas, por oito vezes, prepara-se para os Paralímpicos em Paris em 2024.

Carlos Leitão jogava futsal

A recuperação foi complexa, demorada, foi operado nove vezes no Hospital dos Covões, em Coimbra. Colocaram-lhe barras de fixação da coluna presas por ganchos que saltavam sempre, depois uma placa, via interna, fixada na coluna. Ano e meio em vários hospitais, passou também pelo Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão. Quando saiu, casou-se, a companheira estava grávida quando o acidente aconteceu. O casal tem um filho de 26 anos. Carlos Leitão continuou a sua vida. Tirou um curso de serviços administrativos durante quatro anos, não arranjou trabalho na área quando terminou a formação, esteve ano e meio em artes gráficas, depois numa empresa de materiais de construção e produtos fitofarmacêuticos a tratar da faturação durante 15 anos, saiu há cinco. Agora toma conta de um café em Pombal, com a mulher e o filho, é um negócio familiar.

Carlos Leitão com a esposa

Em 2000, decidiu experimentar jogar ténis no Clube de Ténis de Pombal, já tinha dado uns toques no basquetebol e no andebol. Começou a praticar numa cadeira normal, o que era complicado, até ter a sua cadeira de ténis adaptada ao jogo. Em 2008, o primeiro título de campeão nacional de ténis em cadeira de rodas. Soma mais sete. Anda em torneios internacionais para ganhar pontos, não pára, treinos de segunda a sexta-feira, competições aos fins de semana. E ainda toma conta do parque de merendas do Cotrofe, em Pombal, tem um bar de apoio, trata das reservas. Não pára, portanto.

A queda provocou-lhe várias mazelas, a incontinência urinária foi uma delas, consequência direta do acidente. “O acidente danificou-me a parte urinária”, conta. Teve de se algaliar durante anos, infeções urinárias atrás de infeções urinárias, medicação, antibióticos. “Algo estranho dentro do nosso corpo causa sempre problemas”, refere. Foi o que lhe aconteceu.

Carlos Leitão com o filho e a esposa

Em 2016, trocou a algália por um neuromodulador, que estimula os nervos do pavimento pélvico, e a sua vida mudou. Ganha qualidade de vida, mais autonomia, maior controlo sobre o próprio corpo. “Fiz vários exames, não sabíamos se ia dar.” Um mês na expectativa, correu bem. “Até à data de hoje nunca mais tive uma infeção urinária”, revela. E é mais independente. Carlos Leitão continua a treinar e tem uma campanha de angariação de fundos para participar nos Jogos Paralímpicos Paris 2024, assumir a candidatura ao estatuto de atleta paralímpico, melhorar a sua posição no ranking nacional, e recuperar o título de campeão nacional.

“Carlos Leitão é daqueles que somou as partes, não se distraindo em subtrações e deu a volta às circunstâncias mais adversas… bom na realidade, esse é um trabalho que ele continua a fazer diariamente”, lê-se na sua campanha de angariação de fundos

Este ano, a Semana Mundial da Continência assinala-se de 20 a 26 de junho. A incontinência urinária é, por definição, a perda involuntária de urina. Pode acontecer em homens, mulheres e crianças, em qualquer altura, em qualquer idade, dos 8 aos 80 anos. É um problema sério que não deve causar vergonha. “É uma doença que tem um impacto grande na qualidade de vida. Mexe com uma parte íntima da vida das pessoas, algumas têm vergonha de falar sobre isso, outras pensam que é uma inevitabilidade, que faz parte do envelhecimento, que não vale a pena falar do assunto, e isso é profundamente errado”, refere Paulo Temido, urologista no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, médico que acompanha Carlos Leitão.

Entre ter vergonha ou achar que não vale a pena, que o envelhecimento explica tudo, chegam a passar-se nove anos. Esconder, olhar para o lado, fazer de conta, não tentar resolver, não leva a lado nenhum. Paulo Temido sublinha que esta condição tem solução, tem tratamentos com níveis de eficácia acima dos 80%. “Não há que ter medo e vergonha.” Essa é uma mensagem que é preciso passar e fazer entender. Acabar com o silêncio, com a vergonha, com a humilhação.

As disfunções do pavimento pélvico, em particular a incontinência urinária, afetam cerca de 20% da população portuguesa com mais de 40 anos

Não há apenas um tipo de incontinência urinária e as que existem não ocorrem da mesma forma em homens e mulheres, adultos e crianças. Cada caso com as suas particularidades. Um dos tipos mais comuns é a incontinência urinária de esforço, típica das mulheres, causada pelos movimentos do corpo, pela tosse, espirros, menopausa, cirurgias ginecológicas, gravidez e parto, entre outros motivos. Nos homens, é muito menos comum e surge como consequência de uma cirurgia à próstata.

A incontinência urinária de urgência, associada à bexiga hiperativa, é outro dos dois tipos mais comuns. Acontece em homens e mulheres, sobretudo a partir dos 40 anos, embora possa acontecer mais cedo. Cerca de 17% da população sofre de bexiga hiperativa, ou seja, um em cada cinco portugueses, que pode provocar incontinência urinária. Neste caso, tenta-se, em primeiro lugar, segundo Paulo Temido, “domesticar a bexiga”, urinar a horas certas, não passar muito tempo sem ir à casa de banho, sensibiliza-se para hábitos que evitem cafeína, bebidas com gás, bebidas alcoólicas, tabaco, excesso de peso.

A incontinência urinária de esforço trata-se com uma cirurgia minimamente invasiva. a fisioterapia pode ajudar em alguns casos

Na incontinência urinária de esforço, há tratamentos farmacológicos eficazes, medicação que resolve. Caso não haja avanços, há uma segunda linha de tratamento, a neuromodulação sagrada, no fundo, o que aconteceu com Carlos Leitão. Colocar um neuromodulador dentro da bexiga. Paulo Temido adianta, por outro lado, que há doenças neurológicas, como AVC e algumas demências, que provocam incontinência ou retenção de urina.

Colocar um neuromodulador implica uma cirurgia simples, feita em ambulatório, não necessita de internamento. Paulo Temido explica o que acontece. Como um pacemaker regula o funcionamento do coração, um neuromodulador regula as funções do pavimento pélvico. Um aparelho com elétrodos colocados em contacto com os nervos onde a coluna termina. Tem um gerador, bateria, uma pilha. A sua missão é estimular os nervos que influenciam as funções do pavimento pélvico. É regulável e monitorizado à distância, adaptado à condição de cada pessoa, servindo também para a incontinência fecal. Sem silêncio e sem vergonha, tudo se resolve quando a incontinência urinária vira a vida de pernas para o ar.