Valter Hugo Mãe

À distância


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

O mundo das montanhas pouco sente do que fabricam em Lisboa. Pouco do que aqui se vê nos faz lembrar o país de Lisboa e seu alvoroço, sua ansiedade e avidez.

Desde as alturas de Vimioso, a urgência do país de Lisboa parece menor, uma realidade paralela. Que as eleições tenham acontecido e se tenha desenhado outra política não acontece em coisa nenhuma destas plantas resistindo ao frio, a cor da terra por toda a parte, a impressionante vastidão que nos deixa ver até Sanabria. O mundo das montanhas pouco sente do que fabricam em Lisboa. Pouco do que aqui se vê nos faz lembrar o país de Lisboa e seu alvoroço, sua ansiedade e avidez.

Acordar no Hotel de Nossa Senhora de Pereiras cria-nos a convicção de que o sol é inventado pelo esforço das cozinhas e levantado por sobre os telhados para vir lentamente iluminar as salas. Vem do lado do primeiro trabalho das casas, ainda espio, silente, prévio a qualquer fidalguia. Para quem acorda do lado das salas, peito dado à paisagem, o Mundo é à disposição e o que há é um certo absoluto onde nada do que não está parece faltar. As montanhas são completas em seus sóbrios tamanhos, suas alturas e seus declínios, seus silêncios.

Discute-se que a Rosa Mota teve bem bravura para se adiantar às palavras em alemão de Rio procurando humilhar um jornalista. Discute-se que o Jardel suplica por um milagre na televisão mas não se compromete nem com Deus nem com o Diabo. Diz-se que se pode ir daqui a Lisboa numa mota em menos de hora e meia. Há um moço que o fez para beber um copo entre as gringas. Tudo quanto se diz adquire a importância vaga das histórias da televisão. Depois, diz-se que Sócrates é que haverá de importar aos transmontanos. O que mudou à vida dos povos atrás dos montes é uma contabilidade concreta. O túnel implica na felicidade dos de aqui com fulgor. Isso, sim, foi manter as terras juntas, pertencentes a uma mesma intenção de país.

Os desafios são os mesmos de sempre e acabam por insistir numa obsessão muito específica: a de partir. Partem os miúdos, que aqui só têm escola até ao 9.o ano. Há que rumar a Bragança, e tantos vão já para o Porto, apontados também à universidade que nem Bragança oferece. Também se torna quase obsceno o regresso. Quem o faria depois de encontrar nas grandes cidades a fortuna de todas as culturas, tantas amizades, os amores livres e sem número, a muitíssimo maior oportunidade de emprego? O Interior, com suas aldeias de terna nostalgia, produz um povo em debandada. Um povo que padece para sempre de meio coração, entre estar num lugar e saber ser de outro, como quem procura água por uma raiz à distância.

A Marinela diz o nome de Graça Morais e não se pode estar nas montanhas sem amar Graça Morais. A arte, nem que por um instante, perspectiva sempre o sagrado. Ocorrer-nos a obra da Graça Morais quando a terra toda se estende com seus dignos animais de lavrar é estarmos subitamente completos, na pura revelação. A Laurinha da biblioteca sorri. A sua timidez é uma explicação vasta de como prestar atenção sem fazer alarido. Fomos ver como o arquivo já foi lugar de um castelo e de um cemitério. Como nos castelos e nos cemitérios, arquivamos aquilo que precisamos defender e que, mesmo morto, sepultamos sem poder imaginar que lhe percamos o lugar. O exacto lugar de onde esperamos a presença da alma. Assim estamos. Na presença da alma.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)