Relações que alimentam a vida

Alfredo ainda tem ciúmes de Ermelinda, aos 97 anos, depois de quase oito décadas de casamento. Nuno e Carlos não querem largar o médico que lhes mudou a vida, mesmo que Rui Vaz se reforme. O padre Valério é família para Ana, que viu a fé ser baleada. São uniões que acumulam dias infinitos no calendário, que não contam o fim, e que são o oxigénio que corre nas veias.

Os ouvidos não são os de outros tempos, mas ainda permitem a Alfredo Milhazes abrir o peito para cantar, com a força de uma voz grave, a entoar pelos corredores do lar da Santa Casa da Misericórdia da Póvoa de Varzim, pelo amor da vida inteira. “Ermelinda, meu amor. Vem que o meu peito palpita só por ti.” É a serenata que lhe cantou em miúdos, ainda a sabe de cor. Foi assim que conquistou a sua morena de olhos claros. Canta-a hoje, já de rugas cravadas na cara e cabelos brancos penteados para o lado, como há oito décadas. Nas contas da vida, um e outro somam 97 anos. Feitos a 29 de janeiro, os dois.

“Nascemos no mesmo dia e fazemos a mesma idade. As festas eram grandes, com pouca coisa, mas com a família toda. Não era preciso muito para a gente ser feliz.” É Ermelinda Milhazes quem lembra, sentada de manta rosa sobre as pernas, a combinar com o laçarote grande que traz ao pescoço. De mão agarrada a Alfredo. A coincidência da vida não seria o que os haveria de juntar. Casaram contra tudo e contra todos, numa juventude inquieta em que o dinheiro não venceu, afinal, o amor. Com os cabelos branquinhos, lisos, a bater nos ombros e uma bandolete preta, a matriarca arregala os olhos para contar, com a voz marcada por rouquidão doce, que ainda não tinham 14 anos quando se apaixonaram. Ela era de boas famílias, ele de uma família falida, filho de pai divorciado, acabada de se mudar para a rua onde Ermelinda vivia desde sempre, na Póvoa. “Foi aí que nos conhecemos, foi amor à primeira vista”, conta ela a rir que nem catraia. “Nunca mais nos largamos. Os meus pais não achavam graça. Toda a gente era contra. Cheguei a levar bofetadas. Mas gostava dele. Era meigo, simpático, com um cabelo bonito todo ondulado.”

Alfredo chama-lhe pequenina, ainda. Diz que tem que a procurar para a encontrar na cama. Sentado na cadeira de rodas, a idade não lhe põe travão no sentido de humor. “A madame que está aqui é que andava atrás de mim”, atira em brincadeira. Casaram com 19 anos, eram menores à época, já depois do primeiro filho nascer. Nem a vergonha de ter um filho nos braços sem a aliança no dedo quebrava os pais. Acabaria por acontecer. “O meu pai acreditava que mais valia criar o filho solteira do que ser infeliz. Disse-lhe que gostava mesmo dele. E ele lá deu o consentimento”, recorda a “pequenina”. 26 de abril de 1943, plena Guerra Mundial. As alianças eram emprestadas, não tinham dinheiro para as comprar nem ninguém lhas ofereceu. “Fui com um fato bordeaux clarinho, que a minha madrinha de casamento me fez. Era saia e casaco. Ficava-me bem. E um véu.” A memória, quase 78 anos depois, é tão clara que chega a surpreender.

Os quatro meses que Alfredo passou a fazer a instrução na tropa, logo depois de casarem, antes de o padrinho o livrar do serviço militar, bateram o recorde de tempo que passaram separados. Um tempo carregado de saudades. Nas empreitadas da vida, criaram três filhos. Alberto, Manuel e Dores. Tiveram cinco, só que dois faleceram em bebés. Apenas uma rapariga, a mais nova, que Alfredo só confiou ser menina depois de ver com os próprios olhos, numa alegria que ainda hoje o consome ao vê-la, “estudada”, farmacêutica, uma raridade naqueles tempos, sobretudo para uma mulher. Ele, vaidoso, preferia dar-lhe um diploma, “que ela fosse doutora”, a uma casa.

Mas a pele engelhada e os olhos emocionados de Ermelinda, que era o pulso firme na gestão da casa a contrastar com um Alfredo dado às meiguices e de espírito aberto, contam muito de uma história que atravessou guerras, ditadura, pandemia. Desdobra-se em relatos. “Durante a Segunda Guerra e a ditadura faltava comida. Tínhamos que ir com senhas para a porta da Legião Portuguesa buscar açúcar, arroz, pão. Era tudo racionado.” Ainda agora Ermelinda poupa os fósforos. Ele ganhava pouco e ela “fazia malhas para fora para ajudar”. Alfredo trabalhava na indústria têxtil antes de se dedicar às antiguidades e acabar a negociar por contra própria para a vida dar um salto e sorrir a um amor que resistiu a tanto, e que até sobreviveu aos ciúmes dele. Ainda é ciumento. Mas estica o tronco para negar convicto, alto e bom som: “Depois de velho vou ter ciúmes?”.

Diz ter lutado “até à última” pela família, ter feito uma “fortuna”, todos os filhos estudaram para lá da 4.ª classe. E levou Ermelinda pela Europa fora. Canárias, Londres, Ibiza, Benidorm, Açores, Palma de Maiorca. O passaporte da vida está carregado. Ela abre-lhe o sorriso. “Isso foi depois, quando tínhamos dinheiro.” Eram os novos-ricos e nem isso os fez largar a terra da vida toda, a Póvoa de Varzim. Já contam tantas bodas, de prata, ouro, diamante, que é de perder a conta. Foram sempre à igreja. E depois a festa estendia-se, quase como quando eram pequenos e ela rodopiava pelas danças de roda na rua, à volta de fogueiras, com ele a vigiar.

Alfredo e Ermelinda foram infetados pela covid-19 em novembro e nem isso os derrubou. Já foram vacinados
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Só largaram a casa dos dois em 2020, em plena pandemia, para irem morar no lar onde adoram estar. No final do ano foram apanhados pela covid, no meio de um surto. Ganharam aos confinamentos forçados e ao vírus que não foi capaz de lhes roubar o tempo que resta. Já foram vacinados, juntos, como sempre. São unha com carne. “Nós vivemos um para o outro. Não passamos um sem o outro. Primeiro ele, depois eu. Pode haver muitos defeitos, mas o amor suporta tudo”, frisa ela. Alfredo ouve-a, vira a cara para a olhar, estende a mão à procura da sua Ermelinda: “Foi uma grande companheira, uma grande mãe. Só tem um defeito, que é ser pequenina. Com ela é até ao fim da vida. Daqui não saio, daqui ninguém me tira”.

É hora de almoço no lar, para felicidade de um guloso que aos 97 ainda preocupa Ermelinda. “Pois é, rapariga, vamos comer?”, pergunta ele. “Vamos, senhor doutor.”

O médico que mudou a vida dos gémeos

No meio do felizes para sempre, há relações que se cimentam em cima da confiança e que são o fio que nos agarra à vida. Onde nem sempre entram alianças, mas onde também cabe amor. O neurocirurgião Rui Vaz está sentado num pequeno consultório, no Porto, a falar para o computador. Ou melhor, a falar com os dois gémeos que lhe agradecem a vida. Já lá iremos. O ecrã divide-se em dois. “Como é que vai isso em Nova Iorque, Nuno? Está bom tempo aí?” Do outro lado do Mundo, Nuno Moreira é rápido: “Está a nevar”. É consultor na McKinsey, prevê ficar nos Estados Unidos pelo menos até 2022. O irmão gémeo, Carlos Moreira, é diretor na EDP, está em Lisboa. Distinguem-se pela barba e cabelo, Carlos tem-nos compridos. “A maior piada é que estes miúdos tiveram uma grande carreira profissional.”

Rui Vaz ainda os trata por miúdos, como quando os conheceu tinham eles cinco anos. Já têm 30. Piada, diz ele, porque os gémeos nasceram com uma malformação congénita, na articulação entre a cabeça e a coluna. Carlos nunca teve sintomas, Nuno sim. Esteve ligado a um ventilador não invasivo e a uma máquina para monitorizar a respiração. Tinha apneias, deixava de respirar. Dores de cabeça agoniantes. Vómito em jato. Alguns médicos contaram-lhe os dias de vida. A mãe, Gabriela Magalhães, ouviu que o filho ia morrer. E virou o Mundo do avesso. Londres, Marselha, Nova Iorque. Correu médicos de topo. Operar trazia a reboque altos riscos e deixava mazelas para sempre na mobilidade. Descobriram o “professor” Rui, como os gémeos lhe chamam, há 25 anos, ao pé de casa. “Foi a tábua de salvação da minha família. É uma relação única, deu-lhes alta aos 18 anos, mas foi um marco tão importante que continuamos a recorrer a ele”, sublinha a mãe, que, segundo o professor, “estudou tudo o que havia para estudar, sabia mais da doença do que muitos médicos. É uma patologia muito rara”.

Gabriela sempre teve o telemóvel pessoal do neurocirurgião. Perderam meses demorados em discussões. A mãe ligava-lhe sempre que tinha que recorrer à urgência. Os dois, lado a lado, decidiram não operar Nuno. Combinaram, como diz Gabriela. Era mais fácil atirar a decisão para o colo da mãe, o médico não o fez. E a ligação resistiu ao tempo e à lonjura. “Há cinco anos tive crises de enxaquecas e o professor foi a primeira pessoa a quem recorri. Ainda recentemente comecei a praticar surf e partilhámos isso com ele. Ficou logo preocupado e mandou-me fazer exames. Qualquer coisa que aconteça, o professor é a primeira pessoa com quem falamos. Acima de tudo, porque há uma relação de carinho”, assinala Nuno, que ajustou o fuso horário só para abraçar virtualmente o médico que lhe mudou o rumo da vida. Carlos também se lembra, e bem. “Faz parte da nossa vida há tanto tempo. Esteve sempre disponível, qualquer que fosse o momento. Sempre nos fez sentir muito normais. E sei que ele vai arranjar sempre tempo para nós.”

Nuno Moreira está em Nova Iorque e Carlos Moreira em Lisboa. São gémeos. O neurocirurgião Rui Vaz conheceu-os tinham eles 5 anos, devido a uma malformação congénita rara. Ainda hoje, aos 30 anos e mesmo longe, mantêm o contacto
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Por baixo dos óculos, os olhos azuis do neurocirurgião com décadas de experiência brilham a olhar para o ecrã. A ouvir os gémeos. Nas cambalhotas da vida, eles mandam-lhe mensagens quando o veem na televisão. E o médico a eles, pelas conquistas, como quando os viu na capa de um jornal, num “orgulho” que não lhe cabe nas palavras. “Eles também são um bocadinho meus.” Na verdade, a idade camuflou muita coisa, por obra da mãe e do especialista, mas Nuno sabe que “o professor tinha a postura oposta a muitos médicos”. “Respondia às dúvidas, chegou a partilhar autênticos calhamaços com a minha mãe. Há 25 anos, encontrar um médico assim foi libertador. Ele é gigante. Há uma relação de família.” Uma relação que se cumpre religiosamente todos os anos com uma visita, um ritual pelo Natal, mesmo os dois estando longe. Oferecem-lhe sempre uma imagem de família, da Vista Alegre. Rui Vaz já quase não tem espaço na prateleira.

E, aqui, não há prazo. A quilómetros de distância, os gémeos avisam que nem depois da reforma o médico se há de livrar deles. Rui Vaz, que já vai nos 67, sorri, também ele foi crescendo com os “miúdos”. E põe os olhos numa mãe embargada, de ritmo acelerado, ali mesmo ao seu lado, sem ecrãs pelo meio. Ela, de cabelos loiros, estica o dedo indicador na direção dele. “A nossa energia motora foi o professor. Tratou-nos como seres humanos. Viu para além da doença, viu a dor, o terrível sentimento da perda. Foi capaz de sair do seu ego de médico e nunca se impôs. Deu-nos a mão, caminhou ao nosso lado. Os meus filhos são o que são porque têm um alicerce chamado Rui Vaz. Devo-lhe tudo.” Se a palavra confiança falasse, talvez fosse isto que diria.

Reencontrar o caminho para a fé

No dicionário, é a “fé que se deposita em alguém”, “esperança firme”, “familiaridade”. Uma fé que Ana Costa continua a ter, graças ao padre jesuíta António Valério, mesmo depois de ser atropelada pela vida, numa luta ingrata contra um neuroblastoma, um cancro agressivo e invasivo, do pequeno Tomás, de sete anos. Descobriu dias depois de a filha mais nova nascer, em setembro de 2019. É o auge da felicidade a bater de frente com o Mundo a desmoronar. São 6.45 horas, domingo. O sol ainda não nasceu. Ana está a enfiar tudo na mala do carro, à porta de casa, em Braga. Vai arrancar para Barcelona com o filho, tentar mais um tratamento ao “bicharoco”. Não sabe quando regressa. O padre Valério está lá. Para abençoar a viagem e abraçar, com a distância pelo meio, uma Ana que não se rende à desesperança. Ela já conta 36 anos. Tinha 17 quando se conheceram, ainda ele não era padre, estava em formação.

“Eu e o Valério fazíamos parte do mesmo coro da Basílica dos Congregados. Como estava prestes a entrar para a faculdade, ele convidou-me para ir para o Centro Académico de Braga”, um centro pastoral universitário. Foi animadora lá. Antes de ser guia espiritual, orientador, o padre Valério tornou-se amigo, num grupo que vai para lá da oração e se faz de fins de semana cheios. “Havia uma relação de amizade já antes, em que era indiferente ser ou não ser padre. Era o António Valério com amigos com quem partilha a vida”, explica o clérigo.

Na verdade, a fé sempre andou de mãos dadas com Ana. A família era muito católica, frequentou colégios religiosos. A vida empurrou-a para a “espiritualidade inaciana”, numa “igreja mais próxima, que não é tão desfasada dos desafios atuais”. “É por isso que os jovens se ligam tanto aos jesuítas.” Mesmo com os tempos que Valério passou fora, nomeadamente em Roma, nunca desligaram um do outro. Ela esteve no momento em que ele foi ordenado padre, em 2009, conheceu-lhe a família, os pais, os irmãos. Ele acompanhou-a na preparação para o casamento, batizou-lhe o filho.

Na vida que foram partilhando, foi a doença de Tomás que adensou uma relação na hora de “questionar tudo, as crenças, as fragilidades, as forças”. Num sentimento devastador, no medo que se agiganta, na angústia, nos porquês. Ana segura o fôlego para falar. Pediu provas a Deus de que ele estava ali. Foi quando bateu no fundo que Valério a segurou, a ela e a Ricardo, o marido. Chamou-os para uma conversa, era fim de semana. “Tivemos a felicidade de o padre Valério ser um amigo e isso ajudou-nos muito. A perceber que Deus está nesta luta connosco, que a minha missão é fazer caminho com o meu filho. Na vida, há turning points. E num caso destes é algo muito visceral, percorre-nos em todas as dimensões”, relata Ana, que aguenta a emoção debaixo da capa de supermãe e dos óculos embaciados. “O Valério foi uma luz no meio do Inferno.”

Quando a fé foi abalada pelo cancro do filho, foi o padre jesuíta António Valério que ajudou Ana Costa. Conhece-a desde os 17 anos. Ele é seu guia espiritual e, mais do que isso, um amigo que se faz presente em todos os momentos
(Foto: Gonçalo Delgado/Global Imagens)

Ele, num sorriso meigo rodeado de barba, diz sentir-se “pequeno” ao vê-la remar contra a doença “injusta”. Sente-lhes o sofrimento. “São família. Ela sabe que basta dar uma ordem e eu estou presente.” O padre ajudou a divulgar a angariação de fundos para Tomás ser tratado por um dos maiores especialistas mundiais em neuroblastomas, dinamiza uma oração todas as quartas-feiras entre amigos. Ana confidencia-lhe a vida, porque Valério se fez próximo, não se fez um padre de púlpito, fechado na igreja, de reverência. A covid impede-os de estar, verdadeiramente estar. Colmatam com zooms, mensagens, telefonemas.

Até uma supermulher não está estanque e forte a todo o momento. Longe disso. Mas é “determinada, não desiste, tem ideias claras, não há coisas grandes ou pequenas para ela”. É Valério quem o afirma, o padre que “tem o coração no lugar certo, que abraça o pior lado de cada um sem julgamentos”. O pequeno Tomás interrompe Ana, entre brincadeiras. Trata Valério por tu. É família. “A relação com o Valério é para o resto da vida.”

Já dizia Saint Exupéry que nos tornamos eternamente responsáveis por aquilo que cativamos. Aquilo ou aqueles. Seja marido ou mulher, médico ou doente, padre ou fiel. Em uniões que nem as enfermidades quebram, que acumulam décadas no calendário, e que dão oxigénio à vida.