Podemos acreditar no futuro?

O Mundo é um laboratório e a liberdade esvazia-se de sentido. A pandemia destapa vulnerabilidades e a vida ganha outro significado. O terreno é instável. Como confiar nas instituições, na política, na ciência, nas restrições, nas promessas? Como acreditar no que há de vir? Que país seremos depois de tudo isto?

Não é necessário usar máscara. É obrigatório usar. Duas, provavelmente, ainda está em análise. Distanciamento social. Mãos desinfetadas. Sem beijos, sem abraços. Fechar escolas, reabrir, encerrar. Hoje é assim, amanhã talvez não seja. Os números dos mortos, infetados, internados, hospitais a abarrotar. Todos os dias, a toda a hora. O medo do outro. O medo de morrer. E os dias sucedem-se. Restaurantes fechados, cultura cancelada, economia a agoniar. Uns em teletrabalho, outros expostos ao risco. Multas. As incertezas da ciência. Indicadores que chegam com sete dias de atraso, medidas, esperar por resultados, reagir. A sociedade expectante, dividida, assustada. O país em estado de emergência. Destapam-se fragilidades. As vulnerabilidades de todos. As contradições emergem. A repressão terá consequências. Podemos confiar no futuro? Haverá uma vida a.C (antes da Covid) e d.C. (depois da Covid)?

José Manuel Mendes, coordenador do Observatório do Risco do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, sociólogo e investigador, professor da Faculdade de Economia de Coimbra, está habituado a analisar impactos de catástrofes naturais. O que é novo agora, avisa, é a escala. A escala é global e afeta todos. A ciência é feita ao vivo, a decisão política é tomada no momento, de forma reativa, muitas vezes, as probabilidades passam a inevitabilidades num segundo.

Um vocabulário solto impregnou-se no quotidiano. “Ouvimos falar em cercas sanitárias, um termo mais usado para animais – zona de proteção seria mais adequado para humanos. O distanciamento social foi adotado como forma de impor cooperação. É uma dinâmica repressiva que vai ter consequências”, refere.

As imposições têm repercussões a vários níveis, na confiança também. “Isto é estrutural: a maneira como o Estado se relaciona com os seus cidadãos, numa lógica de soberania sanitária.” “Há vários fatores que vão ter impacto na forma como vivemos com os outros”, alerta. O sociólogo fala dos rituais de interação que já não acontecem. Netos que não veem avós, alunos que não estão com colegas e professores, famílias que não se encontram. Tempos que não se recuperam.

Uma pandemia fragiliza instituições e corrói a confiança. Elísio Estanque, sociólogo, professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, investigador do CES da mesma faculdade, não tem dúvidas. A população tem de ser ouvida, não pode ser encostada num momento como este. “Precisamos de maior coerência, consistência e transparência das instituições, de modo a abrirem-se às contribuições que a sociedade civil pode dar para melhorar as suas corrosões”, defende. O sistema tem de ter consciência do desgaste do seu povo, encarar esta crise, assumir-se como mediador que proteja os mais pobres e vulneráveis, os mais expostos à pandemia.

(Foto: Álvaro Isidoro/Global Imagens)

O Estado não pode ficar cego, surdo e mudo. Tem de dar respostas, ter sensibilidade e demonstrar, segundo Elísio Estanque, uma atitude de maior humildade. “Um discurso que assuma as fragilidades do sistema democrático”, especifica. A economia está frágil, os pedidos de bens alimentares aumentam, os indicadores negativos dispararam. “É uma pequena janela de oportunidade de se repensarem determinados tipos de políticas.” Dialogar e envolver os cidadãos. “Confiança exige da parte dos políticos um discurso claro e de pedagogia, para explicar as dificuldades partilhadas que estamos a ver e, ao mesmo tempo, incutir esperança.” Para Elísio Estanque, é preciso reinventar uma série de práticas e hábitos. “A esperança não pode desaparecer, como é evidente. Mas a confiança não se conquista com a demagogia.”

Confiar é ter fé. José Adelino Maltez, professor universitário, investigador de Ciência Política, vai à raiz etimológica da palavra para resgatar esse contrato de fé. “O sistema político é um contrato social que só existe se há confiança entre quem manda e quem obedece, obediência pelo consenso.” Obediência pelo consentimento, nunca pelo temor. José Adelino Maltez vê um povo que está com medo de morrer. “Em janeiro, assistimos ao maior desastre de saúde pública desde que há saúde pública em Portugal, há 100 anos, portanto. Meditemos sobre as circunstâncias.”

Escutar, envolver, acreditar

Depois da crise financeira de 2008, os níveis de confiança na generalidade das instituições democráticas e políticas foram-se desgastando por toda a Europa. “O diagnóstico está feito. O problema é passar dessa consciência aos atos”, repara Elísio Estanque. Terá o Governo coragem política para perceber e levar em conta o desgaste no bem-estar da população? O cidadão comum precisa de sentir que as suas condições de vida vão mudando e melhorando e que há coerência entre o que se diz e o que se faz. O que nem sempre acontece.

(Foto: Henriques da Cunha/Global Imagens)

“Se não há rituais de interação não há solidariedade. A solidariedade só acontece com rituais de interação face a face. Os mais velhos são fundamentais para criar futuro com base no passado.” José Manuel Mendes volta aos rituais. Em seu entender, há um capital de confiança, nos bombeiros, nos profissionais de saúde, no INEM, que deve ser aproveitado. A mensagem, neste tempo de pandemia, não deve estar na voz dos políticos, mas sim, sustenta, num “conjunto de mediadores de opinião que permita a construção de futuro”. Pessoas respeitadas que sejam ouvidas por velhos, adultos, jovens, crianças.

Gente que chegue a diversos segmentos da população. “Uma ação concertada de construção de confiança pelos cidadãos – e isto não é utopia”, sublinha.

O futuro? “Nada vai ser igual na relação com o outro. O outro é um risco”, antevê o coordenador do Observatório do Risco. Haverá outras dinâmicas e é preciso capacidade de acreditar e construir a confiança participada com base na cidadania. Porque confiança é bem-estar pessoal, psicológico, físico, é segurança profissional e económica.

É o ganha-pão, também. Ana Veloso, psicóloga, professora da Escola de Psicologia da Universidade do Minho, investigadora do Centro de Investigação em Psicologia da mesma universidade, lembra que confiar implica riscos e que a confiança organizacional é feita de competência, de credibilidade, de arriscar. Tal como um animal que só oferece o seu pescoço quando confia.

(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

O momento é de muitos medos. Medo de perder o emprego, ficar sem salário, sem rendimento. “Em situações de crise, se a organização quebra algumas das promessas que fez, há uma quebra de confiança que nunca mais é recuperada”, observa a investigadora. “O sentimento de estar sempre em perigo cria uma grande ansiedade às pessoas”, acrescenta. Restaurar uma relação de confiança é muito difícil.

Rui Gaspar, psicólogo social, professor da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, concorda. “A confiança sofreu alguns abalos e é difícil restaurá-la. É mais fácil perdê-la do que ganhá-la.” Pensar no futuro passa por confiar no presente. Criar as bases e as fundações da confiança agora. “Para alcançarmos a confiança no futuro temos, primeiro, de confiar no presente”, vinca.

O plano de vacinação, por exemplo. O Governo garante que 70% da população estará vacinada depois do verão. “Devia comunicar outros cenários possíveis em que não possa ser alcançado esse valor”, comenta Rui Gaspar. Se promete e não cumpre, a confiança futura é destruída com base no que é dito no presente.

Confinar, desconfinar, confinar outra vez. Achatar a curva da pandemia. Pareceres técnicos e muitas opiniões de especialistas epidemiologistas, infeciologistas. Decisões políticas, mensagens que não se percebem, cacofonia comunicacional. Os recados dos políticos para os cientistas. Os recados dos cientistas para os políticos. A vacinação, os abusos, vacinar políticos. As vacinas chegarão para todos?

(Foto: Rui Oliveira/Global Imagens)

Rui Gaspar defende um trabalho árduo a começar já hoje. Aumentar a literacia científica dos cidadãos é uma forma. “Ajudar as pessoas a compreender e a clarificar que a ciência é feita de incertezas. Explicar que o que funciona num determinado momento pode não funcionar mais tarde.” E assim se constrói a confiança. Há recursos psicológicos que facilitam como a esperança, o otimismo, a resiliência. Mas não bastam. “Não podemos só esperar que as pessoas sejam otimistas e ponto final. É preciso reduzir as exigências com que se confrontam”, diz o psicólogo social.

A pressão, a pedagogia, a comunicação

A pandemia invadiu a agenda mediática em todos os meios, em todos os canais, em todas as horas. Felisbela Lopes, doutorada em Ciências da Comunicação, investigadora nas áreas do jornalismo televisivo, cobertura mediática em temas de saúde, professora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, tem uma posição clara. “Os media devem estar centrados na pandemia, neste momento. Devem refletir a realidade. Se a realidade é dura, têm de mostrá-la tal como é.” Falar permanentemente da pandemia, em seu entender, ajuda. “Os media de natureza noticiosa tiveram um papel preponderante como arma de combate a esta pandemia”, afirma. Como pressão, como pedagogia.

O jornalismo ganhou um papel preponderante, a sociedade agarrou-se aos media, mas a comunicação institucional tem sido “errática”, segundo Vasco Ribeiro, professor e diretor do curso e mestrado em Ciências da Comunicação da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, doutorado em Ciências da Comunicação. “Antes da covid, tínhamos uma opinião pública muito fraturada, quando rebentou a covid, voltámos, outra vez, a prestar atenção ao jornalismo de uma forma mais evidente, e a televisão ganhou um novo foco como um media poderoso”, assinala.

(Foto: Paulo Alexandrino/Global Imagens)

O problema é a comunicação de crise. “Temos assistido a um comportamento errático por parte das autoridades portuguesas e mundiais na comunicação pública”, constata. A comunicação de crise tem regras. “Qualquer informação negativa deve ser antecipada para o espaço público.” Escondê-la pode ter consequências bastante graves. A ausência de informação não é boa ideia e os boatos também não porque só emergem em organizações que não são transparentes. A informação tem de ser precisa, tranquilizadora para não criar pânico. A veracidade é um pilar fundamental. “Em situações de crise, nunca, jamais, se pode mentir. As pessoas estão hipersensíveis e não toleram a mentira”, avisa Vasco Ribeiro.

José Manuel Mendes não percebe qual é a estratégia de comunicação institucional. “Qual é a estratégia? Quais são os mecanismos? Não se vê nada em concreto.” As mensagens não são claras, não são compreendidas, não se assumem responsabilidades. “A ciência não se faz sem cidadania e não se faz cidadania com o medo.”

Além da parte biológica, há a componente social, nem tudo se resume à soberania sanitária, realça José Manuel Mendes. Ninguém quer ficar doente, ninguém quer contaminar o outro. No início, os portugueses portaram-se bem, 40% autoconfinaram-se. No verão, o primeiro-ministro é visto na praia, a apanhar sol e a molhar os pés no mar. No Natal, as restrições suavizaram, em janeiro todos se portaram mal. Um pára-arranca sem fim. “A culpabilização não mobiliza e só há confiança com responsabilidade.” As pessoas são resilientes, mas tem de haver uma estratégia explícita. “Não se constrói confiança para o futuro com a ciência tout court, mas com a participação das pessoas, e isso não é novo”, enfatiza o sociólogo.

Democracia, honestidade e transparência

A maior crise de saúde pública veio, de alguma forma, destapar o que acontece de forma sistémica. “Politicamente, a democracia tem permitido que as instituições ganhem feição autoritária”, nota Cristina Sarmento, coordenadora do Observatório Político, doutorada em Ciência Política. Se falta democraticidade nas instituições, falta confiança por parte dos cidadãos. Caminha-se para uma hierarquização mais apertada sem controlo cívico. “Há uma confusão explícita entre ciência e política que é desmontada diariamente pela comunicação social”, resume. “O sistema político-partidário não dá espaço a planeamento e não dá espaço à confiança institucional. E a ciência precisa de debate e de espaço de liberdade crítica”, adiciona. Para Cristina Sarmento, o estado de Direito está numa situação de fragilidade. “A pandemia abriu a porta a um certo autoritarismo de Estado, que provavelmente seria necessário, mas que é perigoso.”

(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

O que vai acontecer? Um renascer de novo com mudanças de fundo, advoga José Adelino Maltez. A confiança quebrará em relação à ciência e à política. “O poder instalado, político e mediático, brincou aos cientistas. Toda a gente andou a ver a árvore sem ver a floresta.” Em seu entender, brinca-se nas reuniões do Infarmed, escolhem-se cientistas avulso, há apenas declarações políticas no final dos encontros, e tudo mostrado até à exaustão, o exagero da informação. Tudo isso, em sua perspetiva, matou a autoridade da ciência, a confiança do homem comum nos aparelhos científicos. “Vamos pisar um terreno extremamente desconhecido”, considera. O futuro? “Chegará a voz dos políticos, das críticas, das autocríticas, das denúncias. Tudo vai ser novo. Com o cair da folha, talvez consigamos respirar melhor.”

Ana Veloso puxa a honestidade e a transparência para a conversa. “Os políticos estão a lidar com pessoas inteligentes, independentemente das suas funções e habilitações literárias.” Há falhas na vacinação, abusos na toma? É melhor assumir o que se passa. “O Estado mostrou que num recurso muito valioso, como o são as vacinas, não soube gerir de uma forma competente, e isto quebra a confiança e é muito difícil desenvolvê-la.”

A incerteza é uma das marcas que ficam da pandemia e a confiança fica toldada. São tempos de muitas questões sem respostas. Felisbela Lopes não vê, por enquanto, terreno seguro que mostre um futuro com confiança. Por várias razões. Estilos de vida completamente alterados, fronteiras entre espaço público e privado diluídas, o lazer deixou de ser o que era. Quem entra agora num avião para uma viagem de longo curso? A economia a entrar numa crise profunda com áreas que tinham futuro e que podem desaparecer. A cultura afetada. Como se regressa aos concertos e às multidões? O desemprego jovem é preocupante, as interações não acontecem.

(Foto: Paulo Spranger/Global Imagens)

“A nossa confiança vai ficar desequilibrada por muito tempo. O tempo de confiança não é ainda este. É um tempo de um vírus completamente descontrolado, com hospitais em dificuldades. Não temos bases para termos confiança, não temos soluções governativas que nos deem confiança porque são altamente instáveis”, desbobina Felisbela Lopes. O tempo para recuperar será mais para a frente. “Será difícil regressar à vida de janeiro de 2020 imediatamente, vamos ter medo das multidões.”

Há uma vida antes do coronavírus e há outra vida depois do coronavírus. Vasco Ribeiro não duvida que assim seja. “Há uma transformação.” Confiar, sem dúvida, mas haverá mudanças nas instituições, nas empresas, na organização do trabalho. “Depois disto passar, acredito que a humanidade, mais uma vez, se vai saber adaptar, e que o Mundo será melhor depois da pandemia. A humanidade sempre soube agarrar nas diferentes crises e superá-las”, prossegue o professor de Ciências da Comunicação.

Ana Veloso acredita que é possível confiar no futuro, que a sociedade não aguenta tanta incerteza, tanto conflito, o stresse acumulado do desconhecido. A sociedade precisa de estabilidade e tranquilidade. “Nada será como dantes. Acreditar em algo positivo ajuda a equilibrar e a ter algum controlo sobre a vida.” Acreditar para confiar. Com fé e esperança.