Planta orgânica
Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
A camisola, nas costas, é colorida, com a imagem de uma menina sentada numa laranja gigante e as legendas Perfect the Food e Plant Organic. Os pés, no entanto, são cascos negros chinelando havaianas que poderão ter sido azuis. A rapariga no banco dos réus andou a roubar, deram-lhe segunda oportunidade, voltou a furtar e desapareceu do radar da reinserção social. Fala alto, escorrega-lhe a máscara e logo o nariz de fora, quilha sem rumo.
– Senhora meretíssima, eu peço desculpa, desorientei-me, porque eu andava a tomar medicação e deixei de tomar.
– Mas isso foi uma opção sua.
– Sim, foi uma opção minha. Mas eu agora estou a trabalhar numas limpezas, estou a fazer horas, e eu hoje… hoje, não… sexta-feira às 10 horas ia falar com a senhora da reinserção e…
– Tem de puxar a máscara para cima, diz a juíza.
– Peço desculpa. Mudei de casa, mas a senhora da reinserção sabia que eu estava num quarto. Eu pensava que esse processo era do furto de uma… de uma… de uma senhora de idade, e não compareci. Porque eu estive muito doente.
– Mas porque praticou um furto com uma pessoa de idade, é?
– Não, agora não.
– Foi a senhora que disse, que achava que este processo era de um furto com uma senhora de idade.
– Pensei que era uma coisa de antes, mas não. Estou a trabalhar, estou melhor, já posso comparecer…
– Oiça, se fosse por um furto de uma pessoa de idade, não comparecia porquê?
– Não! Porque estive doente, eu tive diarreia e não conseguia.
– Mas teve diarreia durante um ano?…
– Não, meretíssima, convocaram-me e eu não sabia.
Nem sempre vai à rua onde chegam as notificações dos processos.
– Senhora arguida, essa desculpa é de mau pagador, como se costuma dizer.
– Desculpe, senhora meretíssima.
– O tribunal não tem de andar atrás de si. Não comparece… a arguida é que tem de comunicar a sua localização. A falha é sua: não foi, foi porque não quis! Agora explique-me lá como é que justifica que esta pena satisfez as suas finalidades. A arguida praticou um crime e ainda por cima não ligou nenhuma à senhora técnica.
Está na sala uma técnica de reinserção, que explica:
– Peço desculpa, a Tâmara é uma pessoa muito confusa. Só apareceu nos nossos serviços em Novembro de 2020. Tentámos contactar a Tâmara, estava sem-abrigo, depois estava numa instituição na Mouraria mas tinha tido conflitos com a técnica da instituição e deixou de aparecer. E foi internada compulsivamente entre 28 de Agosto e 26 de Outubro de 2020, ao abrigo da lei da Saúde Mental no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa. Ficou internada com diagnóstico de perturbação afectiva bipolar e também perturbação do uso de substâncias. Ela está muito confusa.
– Antes de 2020, o que é que andou a fazer?, volta a juíza.
– Acho que não tive mais nada, senhora doutora. Olhe, estive num curso de educadora de infância, ou o que é que foi, e estive lá uma horas, prontos.
– Umas horas.
– Três horas.
– Mas neste período… para já, puxa a máscara para cima!
– Peço desculpa.
– Neste período, a senhora arguida não podia praticar nada e praticou um crime de furto.
– Não sei como é que aconteceu, eu não andava bem. Estou, como é que se chama?, com esquizofrenia bipolar.
Tratamento: injecção e comprimido mensais.
– Levante-me a máscara, se faz favor! Porque é que faltou na sexta-feira?
– Porque estive doente!
– Porque é que não avisou?
– Não tenho telefone
– Não me esteja sempre a mexer na máscara!
– Ah, peço desculpa.
– Temos aqui a funcionária ao pé de si e ela não tem culpa.
Mas vendo aquela rapariga sente-se culpa, não sabe bem uma pessoa de quê.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)